terça-feira, outubro 14, 2003

A morte de uma referência


A Porto Editora há muito que é um caso de sucesso no ramo editorial didáctico. Os seus manuais escolares são adoptados por inúmeras escolas e muitos dos que eu próprio tive, nos idos de 70 e 80 eram da sua responsabilidade. A forma como trabalha a relação com os professores é um exemplo de boa gestão empresarial e tem estado atenta às novas tecnologias de informação, sendo das primeiras a lançar conteúdos em CD-Rom e a publicar sites próprios na Internet. Na base de tudo isto, não o esqueçamos, continua a estar o Dicionário da Língua Portuguesa, hoje na sua enésima edição, embora a sua manufactura seja bem inferior às fabulosas encadernações dos anos 60...
Um bom exemplo, portanto. Ou não?...

A julgar pelo recente caso "Big Brother" (ver entrada "Bredaguês", n'A Sombra), que resulta da edição do manual do 10º ano "Comunicar" pela própria Porto Editora, não estamos já perante um bom exemplo, no que respeita às edições didácticas e, particularmente, escolares desta editora.

Vasco Teixeira (filho), seu administrador e filho do fundador homónimo, explica como pode um manual escolar deste calibre ser editado pela sua casa:
"O manual cumpre o programa. (...) [É normal que os autores destes livros escolares] façam experiências pedagógicas. O concurso [Big Brother] existe, está na televisão e é bom que os alunos conheçam o seu regulamento."
Leram bem.
Vem escrito no Diário de Notícias de hoje (DN, 14Out2003, p.22).

Para o responsável máximo da Porto Editora, assim, é absolutamente normal e, mais, "é bom" que este facto se verifique. Mais ainda, afirma que "está na televisão" e pronto. Ainda veremos manuais escolares da Porto Editora com textos sobre o "Herman SIC" com perguntas do género "porque achas que o tio Herman perguntou ao Valentino se ele era limpinho"? Talvez.
Para quem não conhece a Porto Editora por dentro, este facto poderá parecer um mero percalço; as afirmações de Vasco Teixeira um simples acto de Relações Públicas, destinado a controlar os danos causados por um incidente isolado que instalou a polémica na praça pública. Não é bem assim.

A Porto Editora aparenta ser uma empresa moderna e dinâmica, aberta à inovação e às novas tendências, de espírito liberal, na verdadeira acepção da palavra. Na realidade, porém, trata-se de um reduto industrial do século XIX, que convive muito mal com a concorrência, e um dos paradigmas do conservadorismo empresarial português.
Vasco Teixeira, aliás, não é um qualquer administrador da Porto Editora. Ele é a Porto Editora. Nessa perspectiva, as suas declarações assumem uma proporção insólita.

A adaptação desta editora à realidade social portuguesa é manifesta na edição deste escabroso "Comunicar", com o mesmo à vontade com que as televisões editam um qualquer reality show de bosta. O povinho gosta, o povinho compra, o povinho fica satisfeito. E volta. Sobrevivência?

A Porto Editora é considerada, ainda e de forma geral, uma referência na edição de manuais escolares e didácticos, mas as afirmações de Vasco Teixeira trazem à luz do dia algo que há muito é familiar a quem conhece melhor a sua editora; uma empresa que adoptou a política de produção conduzida pelo mercado, por oposição à que molda o mercado. Este facto tornado público, finalmente, pode bem ser o anúncio da sua morte enquanto tal. Não sei o que fará a Porto Editora para recuperar deste escândalo editorial, mas Vasco Teixeira, a falar assim, em nada ajuda a essa recuperação.

Já há muito que verifico e reverifico o conteúdo de qualquer edição da Porto Editora que deseje adquirir (dicionários incluídos), mas esta situação foi a gota de água. Agora terei de verificar uma terceira vez, ainda. E se um dia me surgir no monitor do computador uma janela onde me é perguntado se devo confiar sempre nos conteúdos a carregar com origem na Porto Editora, vou responder "não, muito obrigado".

Assim se mata uma referência.


Rui Semblano
Porto, 14 de Outubro de 2003


nota:
Há muito, muito tempo, numa Galáxia semelhante a esta, colaborei como ilustrador e maquetista na Porto Editora e para a Porto Editora e continuo a considerar as minhas reuniões com os autores e as autoras dos manuais escolares em que trabalhei como das experiências mais surreais por que passei, apesar de já ter passado por outras bem estranhas!
Nem vou tentar explicá-las aqui, pois não tenho talento que chegue para as retratar condignamente. Foram demasiado... intensas.

Sem comentários:

Enviar um comentário