quinta-feira, março 09, 2006

Fantasconto 2003 . Fantas' End


Fantasporto 2003
Ano de "2009 - Lost Memories"
e de "Plots With a View"

Rivoli / Bar do piso 3
25 de Fevereiro de 2003
(bem antes do encerramento)
sexto fantasconto



O 23º Festival Internacional de Cinema do Porto chegava ao fim. Noite de encerramento.
Como habitualmente, três quartos dos premiados não compareceram para receber o prémio, apesar de já nenhum ser entregue por Álvaro Costa. Beatriz Pacheco Pereira entrega o Grande Prémio da Secção de Cinema Fantástico a Luís Frois, representante da LNK, na vez do realizador do filme vencedor, por acaso europeu. As palmas esmorecem. É a sétima vez que o homem sobe ao palco. Um momento de silêncio de café antecede o discurso final de Mário Dorminsky.

O público aplaude, mais entusiasta, quando Mário começa enfim a subir os degraus de acesso ao palco do Rivoli. É quase uma da madrugada; a sessão de encerramento, um filme de Nick Hurran sobre duas estranhas agências funerárias que disputam o enterro de um cadáver que não está morto, está atrasada qualquer coisa como a sua própria duração. É normal, mas é mais o final da cerimónia de entrega de troféus que o público aplaude do que o Sr. Fantasporto quando Mário Dorminsky coloca a mão no microfone suportado por um tripé sobre o qual incide um foco luminoso, destacando-o da penumbra do palco.
- Muito boa noite.

O grande terraço da Praça D. João I está deserto. Já ninguém estaciona lá, nem em frente ao Rivoli, depois de quinze dias de reboques consecutivos, realizados a partir do momento em que a praça enchia de automóveis, perante o olhar divertido dos funcionários da CMP e da Polícia Municipal. Não havendo carros, os fiscais não se vislumbravam.
Descendo da noite, seis Blackhawk aterram na placa da praça, o negro das fuselagens contrastando vivamente com a claridade das lajes. Será a remodelada praça, afinal, um heliporto? As portas dos hélis abrem e, do seu interior, saltam equipas de assalto vestidas de couro e kevlar negros. Não trazem insígnias.

Rapidamente, mas sem correr, as automáticas Heckler & Koch G36 Compact com silenciadores e MP5 SD's em punho, dirigem-se às portas do Rivoli. O último a saltar para o solo parece ser o chefe do grupo. Empunha uma Beretta CX4 silenciada. Detém-se, apoiando a coronha da semi-automática na cintura, e observa a praça deserta. Antes de seguir os seus homens, dirige-se aos que permanecerão nos helicópteros, através do rádio codificado.
- Se aparecer algum escuteiro do Rio armado em herói cheguem-lhe um fósforo.
E avançou para o teatro, completando:
- Não se esqueçam de o regar com gasolina, antes.

Ao entrar no Rivoli, verificou que o lobby estava ocupado, bem como o foyer principal. Os "portas" da Culturporto, nos seus novos uniformes pretos, estavam em respeito, a um canto, controlados por um dos comandos. O chefe dirigiu-se ao patético grupo e perguntou a um dos desgraçados, de cabeça lisa como um ovo:
- Então? Não me perguntas se tenho bilhete?
O estúpido perguntou mesmo.
- Hah... O seu bilhete, por fa...
Não terminou a frase. O seu corpo mole abateu-se sobre o chão do foyer, a cabeça de ovo redecorada com um novo buraco, a meio da testa.
- Alguém mais quer ver o meu bilhete?
A resposta foi elucidativamente dada por uma das raparigas uniformizadas, na forma de um líquido amarelado que lhe escorreu pelas pernas e alastrou pelo solo, misturando-se com o sangue do excessivamente zeloso careca.
- Bem me parecia.

Por essa altura, várias vozes fizeram-se ouvir nos intercomunicadores de todos.
Piso zero, piso um, piso três e piso cinco seguros; corredores seguros; bastidores seguros, Régie segura, comunicações seguras.
- O scrambler para os celulares?
- Activo.
Sem mais uma palavra, todos se dirigiram às posições predeterminadas. Ouviam-se abafadas as palavras intermináveis de Mário Dorminsky, ainda a meio do seu discurso de encerramento. Blá, blá, blá...

A parte da audiência que ainda resistia de olhos abertos viu as cordas serem lançadas do tecto do palco, atrás de Dorminsky, que não se apercebeu de nada, excepto de um ligeiro aumento da atenção da plateia, a que correspondeu com um sorriso imodesto, ao mesmo tempo que dizia:
- Estou quase a acabar! Já vamos ver o filme.
E o público irrompeu num aplauso expontâneo! Mário sorria, maravilhado, enquanto nas suas costas, dez vultos negros com óculos de visão nocturna deslizavam em direcção ao chão.
Quando Mário se apercebeu de que estavam todos a olhar para trás dele, virou-se, encarando com os comandos imóveis. Imediatamente, pensou que era uma partida dos No Sell Out, esse grupo miserável que nunca ficava satisfeito com os filmes e fazia caricaturas em que era invariavelmente representado como um ogre!

De todas as portas, então, surgiram mais comandos de negro, indicando às pessoas que se mantivessem nos seus lugares. Na Régie, era aberta a frequência dos intercomunicadores, por forma a que as colunas do Grande Auditório emitissem as comunicações rádio. E ouviu-se uma voz tranquila e cínica.
- Mário, Mário, Mário...
Era o chefe do grupo que se dirigia ao palco, caminhando pelo corredor entre as duas alas da plateia. Dorminsky, a luz do foco ainda sobre ele, protegeu os olhos com a mão, procurando ver quem se dirigia a ele tão familiarmente.
O homem de negro subiu ao palco com um salto que o colocou frente ao presidente do Fantas, fazendo com que este recuasse dois passos, meio a medo, meio decidido a entrar na brincadeira, até porque o público estava em delírio, rindo e batendo palmas. A luz do foco acompanhou o seu recuo.

Então, protegido pela sua balaclava, o chefe da operação dirigiu-se ao público.
- Devem estar curiosos. - começou - Alguns devem já ter imaginado a razão da nossa presença; outros... Talvez tenham uma surpresa.
E apoiando a Beretta à cinta, anunciou, solene:
- Damas e cavalheiros, estamos aqui para matar o Fantas 2003!
Beatriz Pacheco Pereira estava boquiaberta e petrificada; pareceu-lhe que o mascarado lhe piscara o olho, e este, virando-se para os convidados estrangeiros que ocupavam a primeira fila da plateia, traduziu:
- Bitches & Gentlemen, we're here to kill Fantasporto 2003.
Ao pronunciar a última sílaba, acenderam-se dezenas de feixes luminosos rubros, percorrendo a obscuridade desde os seus pontos de origem até à cabeça de Mário Dorminsky, que parecia assim ter um ataque súbito de sarampo! Era uma cena tirada de "2009 - Lost Memories", uma produção sul-coreana inenarrável que passara naquele ano pelo Fantas.
A sala quase veio abaixo com as palmas!

O chefe da equipa de assalto voltou-se para Mário Dorminsky e aguardou que o clamor parasse. Então, a sua voz glacial ouviu-se através das colunas de som:
- Say goodnight, fatso.
Um só disparo abafado, na realidade dezenas em absoluta sincronia, e a cabeça de Mário Dorminsky explodiu, desintegrando-se, o corpo decapitado começando a correr pelo palco fora, jorrando sangue pelo pescoço como um porco!
- Dêem-lhe um cavalo! - gritou alguém no balcão, vestindo uma t-shirt dos No Sell Out.
O cavaleiro sem cabeça e sem cavalo terminou a sua corrida cega à boca do palco, com um espectacular tombo sobre a primeira fila da plateia, caindo mesmo em cima do homem da LNK, que ficou empapado em sangue.

As luzes da sala apagaram-se e os vultos negros desapareceram como sombras.
E quando o écran se iluminou, fazendo adivinhar o filme tão aguardado, o último comando a abandonar a sala anunciou:
- Senhoras e senhores, "Plots With a View", com mr. Christopher Walken.
E saiu, deixando o aplauso dos espectadores atrás de si.
Enfim, o filme!

THE END


Rui Semblano
Fantas' End - Fantas 2003


Nota:
Assim terminam os Fantascontos que seleccionei para aqui publicar.
A lista completa dos Fantascontos editados n'A Sombra encontra-se na coluna da direita
agora em forma de ícones, para mais tarde recordar.
Um abraço à Beatriz e ao Mário.
(Jota, desculpa lá. Pela 68ª vez "matei" o teu pai!)

Posted by Picasa

3 comentários:

  1. Amigo Rui!

    Se eu fosse o Jota, não sei se o desculparia, já que, o Mário Dorminsky foi tratado com alguns requintes de malvadez.

    Bom conto. Surpreendeu-me o inicio, digamos que fui apanhado de surpresa pelo conto, enquanto ganhava embalagem para a leitura.
    No inicio, tudo me pareceu menos o que depois tive oportunidade de ler, creio até, que esta forma singular de iniciar a história, acabou por me prender ainda mais.

    Gostei. Parabéns!

    PS: Agora, espero contos novos.

    Um abraço.

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  2. PiresF:
    Obrigado, amigo.
    Há três anos que não vou ao Fantas. Porquê? Porque antes, quando ia, VIVIA no Fantas. O Rivoli era a minha segunda casa, a bem dizer. Em 2000 fui "apanhado em flagrante" a desenhar no Fantaspainel pela turma dos NSO (No Sell Out), um gang ignóbil que se dedica a infernizar a vida ao Mário (hehehe) e fui adoptado.
    O Jota é um dos melhores desenhadores do painel e um bom amigo, assim como o Mário e a Beatriz (sim, irmã do JPP, mas nada a ver com ele).
    Resultado: Desde que comecei a preparar o casamento a sério que acabou. Em 2004 tinha uma exposição para montar, o ano passado muito trabalho e este igual. Como sei que se ponho os pés no Rivoli fico lá 15 dias, nem vou.
    Mas fico roído por dentro.
    Espero poder tirar as duas semanas, para o ano. Uma coisa é certa: o regresso será inesquecível.
    And I WILL be back!

    Até breve (espero que na sua "Rua", agora!),
    RS

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  3. Eheheh!… muito fiquei eu a saber com esta sua resposta.

    Grande abraço.

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