quarta-feira, maio 31, 2006

Combustão espontânea. (parte 1)



Como se pode ainda acreditar que o sistema em que vivemos é o capitalista? E, não o sendo, como negar que Marx não se encaixa neste quadro? E como não rir ao verificar que os que defendem esta última tese permanecem convictos de ainda viverem num sistema capitalista? O que se alterou na nossa sociedade nos últimos vinte anos? E, mais importante, como pode tanta coisa ter sucedido debaixo dos nossos narizes sem que reagíssemos?

Estamos em permanente combustão, mas controlada.
A espontaneidade, porém, surgirá quando menos se esperar.
Ou assim o espero.

Entrada completa abaixo. 666



A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, por consequência, as relações a ela relativas e todas as relações sociais. A conservação, na sua forma pura, dos velhos métodos produtivos foi, por contra, a condição fundamental para a existência de todas as formas iniciais de industrialização. Revoluções permanentes na produção, alterações ininterruptas de todas as condições sociais, contínua incerteza e agitação, distinguem a época burguesa das que a antecederam. Todas as relações fixas, de rápida consolidação, com o seu cortejo de preconceitos e opiniões veneráveis, são varridas; todas as que se lhes assemelham tornam-se velhas à nascença. Tudo o que é sólido se desvanece, tudo o que é sagrado é profanado e o homem é, enfim, compelido a encarar a frio a sua verdadeira condição e as suas relações com o seu semelhante.

Marx e Engels, Collected Works, Vol. 6, p. 487. Moscow, Progress Publishers, 1976.
Marx, Capital, Vol. 1, p. 457. Moscow, Progress Publishers (s/ data).
(tradução d'A Sombra)


Eu nasci em 1963, a 28 de Novembro.
Por volta desse dia, C. L. R. James, um Trotskysta convicto, empenhado no que considerava ser o movimento revolucionário negro nos EUA, dava uma conferência em Londres, denominada "O Marxismo para o nosso tempo", que se tornaria o título de um curioso estudo sobre estratégia revolucionária (profundamente teórico e inócuo, mas interessante por isso mesmo), em que caracterizava a sociedade de então como a concretização da ideia que transcrevi acima: fruto burguês em constante mutação.

Quando eu nasci, portanto, a profecia de Marx sobre o fim do proletariado era ainda uma visão apocalíptica projectada para diante, sobre a qual C. L. R. James e outros teóricos construíam teses mais ao jeito de Trotsky e da sua revolução (não burguesa) permanente - única forma de manter o "espírito" do proletariado. Mas este já não era, em 1963, o que fora em 1938.

Nos EUA como na Europa (com excepção dos países a Leste da Cortina de Ferro e a Oeste dos Pirinéus - embora a Espanha de Franco rapidamente se abrisse aos EUA, deixando-nos orgulhosamente sós) o pesadelo de Marx começou a desenhar-se desde 1944. Desta circunstância nos dá boa conta um obscuro estudo de Conrad Lodziak, trinta anos mais tarde (1), isto é: da conversão em massa dos produtores (o proletariado) em consumidores (a burguesia). Resulta, assim, que o lugar antes ocupado pelo proletário ficou vago, já que ninguém o ocupou. Surgiu um novo tipo social, incaracterizável, indistinto e anónimo, composto pelos que não fazem mais que tentar aceder ao consumismo, seja ele qual for. É uma legião de desempregados, trabalhadores temporários e sem qualificações e de pseudoestudantes, muitos deles deslocados (os imigrantes), que constituem o patamar mais baixo da cadeia consumista: os sem-nome. Mas lá chegaremos.

Morto o proletariado, morta a luta de classes.
A burguesia, guarda avançada do Capital, jamais se revoltaria contra quem a alimenta e, ganha a luta pela capitulação do proletariado que a ela se juntou não a podendo vencer, engorda um pouco por todo, até assimilar a lógica da classe superior: não há riqueza que seja suficiente.
A esta ideia voltaremos mais tarde.

Esta realidade, em que nos encontramos hoje, criou apenas duas classes sociais, já que abaixo delas nada existe de nominável ou distinto (a tal legião de que falei acima), sendo elas constituídas pelos que consomem e pelos que satisfazem os que consomem. Aos primeiros facilmente se chamará consumidores; aos segundos dificilmente se poderá chamar capitalistas e, irónica e cinicamente, fácil seria dar-lhes o nome de produtores, embora esta designação atinja aqui um nível de enorme perversidade. De determinado ponto de vista, ambas as classes são capitalistas, pelo que a designação perde sentido, como o perdeu como identificadora do sistema sócioeconómico vigente nos países onde nasceu e vingou o capitalismo. Como os seus componentes mudaram, também o sistema mudou, forçosamente. Marx devia ter previsto isso, mas talvez o seu terror perante a premonição do fim do proletariado o tenha impedido de querer ver mais além.

Esta cadeia de consumo não é piramidal, embora seja tão vertical quanto possível, e a gradação entre os seus componentes essênciais é claríssima e chega a ser bruta, de tão simples e básica. No topo encontram-se os que detêm os bens de consumo produzidos e os próprios meios de produção - muitos deles meros instrumentos financeiros, desenhados tanto para suportar o escoamento dos produtos como para controlar o seu fluxo (os antigos capitalistas e alguns aristocratas). No meio, verdadeira base do sistema, os consumidores (a antiga burguesia e parte do antigo proletariado, bem como a maior parte da aristocracia) e esta assenta na tal mole indistinta que não chega a ser uma classe, os sem-nome, e em boa medida depende deles.

A pedra de toque deste neocapitalismo, mais apropriadamente neoliberalismo, é um sonho: o de cada sem-nome chegar a consumidor e o de cada consumidor chegar a ser senhor do que consome. Como é de oportunidades que falamos, darei ao sistema vigente, que sucedeu ao Capitalismo, o nome de Oportunismo.

E como estas ideias já chegam para iniciar a reflexão que espero provocar em quem visita esta Sombra, deixo a segunda parte desta exposição para a próxima entrada, a editar oportunamente, claro.

Rui Semblano


(1)
Conrad Lodziak, Manipulating Needs - Capitalism and Culture
London, Pluto Press, 1995.


Esta entrada divide-se em duas partes:
Combustão Espontânea - parte um / Combustão Espontânea - parte dois

4 comentários:

  1. Mal regressas e incendeias-nos assim!?

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  2. Oportunismo... Pois, é um mundo feito disso e de outras coisas igualmente negativas...

    Uma coisa é certa! É bom ter-te de volta e poder ler o que escreves.

    Um abraço!

    Samurai :)

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  3. Rui, mais uma vez estás de parabéns. Nunca vi uma análise tão bem feita à nossa actual sociedade. Nunca sequer tinha pensado no desaparecimento das classes. Agradeço-te o facto de mais uma vez me iluminares e de me dares algo para reflectir.
    É por isso que gosto de cá vir. Aprendo sempre alguma coisa e fico sempre com algo para pensar.

    Um grande Abraço,
    Nuno

    P.S.- Peço-te que me permitas só um pequeno aparte. Já criei o meu blog http://outminder.blogspot.com. Ficaria muito honrado com a tua visita e com a tua crítica. Muito Obrigado.

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  4. António:
    Típico, não é?
    Vais gostar da parte 2. (hehehe)

    Um abraço,
    RS

    Sá Morais:
    É bom estar de volta, sim, mas ainda não é a 100%, quanto mais aos 200% prometidos - lá chegarei em breve.
    Samurai, espero que sejas o teu próprio Senhor, melhor que um Ronin. Pode ser-se Daimyo em Alma.
    O Fabien que o diga.

    Com este enigma e um abraço te digo até breve, caro amigo.
    RS

    Outsider:
    Caríssimo Nuno,
    Folgo que te tenhas aventurado para lá do Barbatanas. Ficarei de olho no Outminder (o nome é em si uma promessa!) e aqui o divulgarei assim o possa fazer como merece. É que ainda não estou de volta como gostaria, embora de volta, decididamente.
    Ainda bem que te fiz pensar sobre o que escrevi. Era essa a ideia (sorriso). E, como disse ao António Baeta digo-o a ti: vais apreciar a parte 2, "penso eu de que".

    Grande abraço,
    RS

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