sexta-feira, agosto 15, 2003

Tragédia Comum

(continuação da entrada "A Democracia, esse mito", abaixo)
Da Liberalização, da Democracia e dos seus Espelhos

(em relação a uma sugestão do Liberdade de Expressão, levemente analisada na sua entrada "O Ambientalista Liberal I")

Da gestão dos bens comunitários em democracia.
(ver "The Tragedy of the Commons", por Garret Hardin, 1968)

2. Mezzo

Garret Hardin faz uma análise hoje já considerada clássica do problema da sobrepopulação no mundo (isto em 1968), que inicia com um apanhado de referências que vão desde a lógica da corrida ao armamento, durante a Guerra Fria, ao jogo do galo (tic-tac-toe), passando pelo "dilema do prisioneiro" e variantes do mesmo, como o dilema do "pasto comunitário" (ver notas em rodapé, nesta entrada).

Desde logo, Hardin considera o problema do excesso populacional como pertencente à classe dos que "não têm uma solução técnica", sendo este tipo de problemas definidos como aqueles para os quais a tecnologia não apresenta soluções.
Hardin trata o excesso de população como uma praga incontrolável, capaz de exaurir todos os recursos naturais, se prevalecerem os direitos do homem, tal como ainda hoje os conhecemos. A sua aversão pelas Nações Unidas, pelo Estado Providência e pela Democracia são dignos dos melhores textos fascistas publicados no século XX.

Sobre o direito de usufruto dos bens considerados comunitários, dá o exemplo das Reservas Naturais. Diz ele que, ou cessamos de as tratar como bens comuns ou elas deixarão de ter qualquer valor enquanto tais.

"(...) Que devemos fazer? Temos várias opções. podemos vender as Reservas ao sector privado. Podemos mantê-las como património do Estado, mas transferir a sua exploração para o sector privado ou mesmo atribuir o acesso a elas segundo princípios discriminatórios, que seriam, por exemplo,
a) a riqueza de cada um, em que o direito de entrada seria leiloado,
b) o mérito, em que este seria definido por parâmetros concensualmente aceites,
c) a lotaria, em que se sorteariam os felizardos a entrar,
d) a limitação da entrada aos primeiros a chegar, implicando a gestão de longas filas de espera.
Todas estas abordagens são questionáveis, mas temos de escolher - ou condescender na destruição do bem comunitário que são as Reservas Naturais. (...)"


Sendo um texto de 1968, até custa ter de o rebater.
Seria um pouco como tentar, hoje, rebater um daqueles estudos proféticos, escritos pela mesma altura, em que se previam auto-estradas nos céus e domésticas robotizadas para o ano 2000.

Também no que toca à poluição, Hardin avisava que a capacidade regenerativa da Natureza já não suportava os danos que lhe eram feitos.
A máxima "Água corrente purifica-se a si mesma a cada dez milhas" já em 1968 não se aplicava.
Outro bem comunitário ameaçado pela comunidade como, aliás, todos os recursos naturais, em especial as fontes de alimentação.

A este respeito, citando J. Fletcher (in Situation Ethics, de 1968), escreve:
"A moralidade de uma acção é determinada pelo estado do sistema na altura em que é cometida". E exemplifica:

"Há 150 anos atrás, podia matar-se um bisonte apenas para lhe extrair a língua, para fazer um jantar, abandonando a carcaça do bicho para apodrecer, sem que houvesse nisto algo de desperdício. Hoje em dia (1968) , quando restam apenas algumas centenas de bisontes, ficaríamos chocados com tal comportamento."

O pobre Hardin escrevia em 1968, mas mesmo que o tivesse feito em 1868 ou em 1768, não teria o mínimo de razão. E deveria saber que os nativos da América do Norte sempre consideraram este tipo de comportamento não só chocante como criminoso. Infelizmente, em 1968, já poucos mais nativos norte-americanos existiam do que bisontes, nos EUA.

Segue este ensaio fascizóide em jeito de apologia do liberalismo como garante de bens comuns que apenas deixando de o ser poderão prevalecer.
Quanto a isto, nem vou comentar. Apenas dizer que pretende algo como "Antes cem obras de arte numa cave de um castelo que duas num museu do Estado". Mais ou menos aquilo em que Göering acreditava, coitado.

Termina Hardin com esta conclusão deveras espantosa, regressando ao tema de fundo da sua intervenção, a explosão demográfica incontrolada:

"A única forma de preservar e desenvolver mais e melhores liberdades é prescindir da liberdade de procriar, e isto o mais depressa possível. "Liberdade é o reconhecimento da necessidade" -- e é o papel da educação revelar a todos a necessidade de abandonar o direito a procriar. Apenas deste modo poderemos colocar um ponto final neste aspecto da tragédia dos "bens comunitários/comuns/plebeus". (1)

Heil Hardin!

(1) Uma das características deste ensaio de Garret Hardin é a ambiguidade do termo "Commons" em inglês. Dá para quase tudo.

nota:
Nos exemplos citados por João Miranda, na entrada mencionada acima, surgem alguns equívocos, como a tradução de "Tragedy of the Commons" por "Tragédia dos Comuns" (note-se que o título da presente entrada, "Tragédia Comum" apenas é inspirada pelo estudo de Hardin, não é uma tradução) ou a afirmação "Antigamente, em Inglaterra, as aldeias tinham pastagens comunitárias. Cada aldeão podia colocar nessas pastagens quantas ovelhas tivesse", quando Hardin aponta o exemplo do pasto comunitário como mais um exercício teórico sobre uma variação do dilema do prisioneiro (será melhor manter o pasto ou aumentar o rebanho? melhor o bem privado ou o público?).

Apesar de algumas falhas, porém, o Liberdade de Expressão aponta (e bem, quanto a mim) que, de um modo geral, os privados cuidam melhor das suas propriedades que o Estado das públicas.
No entanto, o próprio Hardin chama a atenção para um facto importante: o dom da gestão eficiente não é hereditário, isto é, nada garante que uma propriedade privada seja igualmente bem gerida durante gerações.
Neste aspecto, o público tem a vantagem de ser gerido por quem a comunidade escolhe, ou seja, em caso de má gestão, o período até uma nova é mais restrito e, de toda a forma, os gestores são nomeados por mérito e não por direito de sangue. Mas este mérito e a forma como são nomeados é, ou tem sido, o cerne da questão. (ou será o "cherne" da questão?)

Continua...
(there's some more to follow. Stay tuned.)

Este texto compõe-se das entradas:
1. Intro - A Democracia, esse mito.
2. Mezzo - Tragédia Comum.
3. Finale - A expansão da loucura.

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