quinta-feira, outubro 02, 2003

War in our time


A propósito dos esforços dos restantes componentes do "eixo do mal" no sentido de evitar sofrer o mesmo destino do Iraque, José Manuel Fernandes (JMF) veio recordar Chamberlain, na que é, desde há muito, a metáfora predilecta dos apologistas da obscena "guerra preventiva".
Pergunta JMF:
"Por que é que um país que é um dos maiores produtores mundiais de petróleo quer construir uma central nuclear para produzir electricidade?"
(in Público, 30Set2003, p.4, "A ameaça nuclear iraniana")

A este propósito recorda Neville Chamberlain; e fá-lo dizendo claramente (não insinuando) que a II Guerra Mundial devia ter começado um ano mais cedo, partindo da premissa que, assim, talvez, quem sabe, não teria havido uma II Guerra Mundial. Não sugere, afirma, que a Alemanha nazi deveria ter sido atacada antes de efectivar as suas ameaças, antes mesmo de ter anexado os voluntariosos três milhões de alemães dos Sudetas e, por arrasto, a então Checoslováquia, que, tantas vezes se esquece, foi partilhada com a Hungria e com... a Polónia. Pois é.
Nem Churchill ousaria construir semelhante silogismo, pois as suas premissas são uma fantasia. Neville Chamberlain e Edouard Daladier (assim como Vyacheslav Molotov) sabiam muito bem que iniciar as hostilidades em 1938 significaria o fim da Europa e a perda quase imediata da França e da Grã-Bretanha. O tempo que ganharam não chegou para salvar Paris, mas, sem ele, Londres estaria perdida e o futuro seria inteiramente diferente.

Hoje, a História prova estes factos e é evidente que Hitler nunca se contentaria apenas com a Áustria (o Anschluss ocorreu em Março de 1938, sem protestos) e os Sudetas (em Outubro desse ano, um golpe de Estado orquestrado pelos nazis faz, na prática, desaparecer a Eslováquia, dividida com a Hungria), mas tal não era assim tão evidente em Setembro de 1938, para além da nítida falta de preparação dos ingleses e franceses para responder, militarmente, de imediato. Muito fizeram ambos no ano que lhes restou a partir de Munique. A um de Setembro de 1939, a Polónia era, essa sim, atacada e invadida. (1)
"Não importa!" - afirma JMF - "Era liquidá-lo logo! Mandassem um bombardeiro a Berchtesgaden, no lugar de um frouxo de setenta e nove anos!" (2) E assim se resume o conceito "preventivo" destes "iluminados"; com um misto de razão histórica e malabarismo cronológico (aliado a boa dose de "esquecimento").

A História provou o que a Alemanha nazi pretendia, mas nem provou o que o Iraque de Saddam Hussein pretendia, nem o que pretendem agora o Irão e a Coreia do Norte. Não faz mal. Adolf Hitler já o provou por eles.
O "presidente" Bush já o disse: são iguais a Hitler; são piores que Hitler, pois têm a "bomba" (ou procuram tê-la). Há que acabar com eles (e subentende, muito bem, JMF, "como se devia ter acabado com Hitler em 1938!").

José Manuel Fernandes representa, sessenta e cinco anos depois, o diametralmente oposto de Neville Chamberlain.
Uma e outra vez, vem à tribuna acenar um papel com a sua assinatura aposta e dizer-nos: "Acredito que é a guerra no nosso tempo."
Não precisa de o fazer.
É evidente.

A 3 de Setembro de 1939, com a Polónia esmagada entre Hitler e Estaline, Neville Chamberlain dirigia estas palavras ao seu Parlamento:
"Tudo aquilo por que trabalhei, todas as minhas esperanças, tudo aquilo em que acreditava se desfez em ruínas." (3)

Não sabemos o que nos dirá José Manuel Fernandes no dia que se seguir à cada vez mais possível invasão do Irão, mas sabemos o que disse a 20 de Março de 2003:
"Iniciou-se esta madrugada uma era nova. De incerteza e cheia de perigos. Mas também de esperança." (4)

Descubra as diferenças.


Rui Semblano
Porto, 1 de Outubro de 2003



(1)
World War II, 50th Anniversary Commemorative Edition,
Ivor Matanle, Guild Publishing, London, UK, 1989
e
Grande Crónica da Segunda Guerra Mundial, Vol. I,
De Munique a Pearl Harbor, Selecções do Reader's Digest,
Lisboa, 1975
e
The Times Atlas of the Second World War,
John Keegan, Guild Publishing, 1989


(2)
Em 1938, Neville Chamberlain visitou Adolf Hitler por duas vezes, antes de Munique, a primeira das quais em Berchtesgaden (a residência do Fuherer no Sul da Alemanha, perto de Salzburgo, conhecida como "o ninho da águia"). Os seus esforços, secundados pelos dos embaixadores de Londres e Paris em Berlim, eram no sentido de procurar fazer entender a Hitler que a anexação dos Sudetas seria considerada um acto de guerra. Bem informado das reais capacidades militares da França e da Grã-Bretanha e com o plano da divisão da Polónia já acordado com Estaline, Hitler fez cair por terra o bluff franco-britânico. Incapazes de reagir perante o que, de início, parecia ser uma anexação idêntica à da Áustria, com os alemães dos Sudetas a receberem as tropas nazis com flores (de verdade, não como as que, em Bagdad, receberam os norte-americanos), franceses e britânicos assistiram ao golpe de teatro que terminaria com a Checoslováquia, um mês mais tarde. A intervenção da Hungria e da própria Polónia como beneficiários deste processo, veio tornar qualquer reacção ainda mais complexa. Mas, nessa altura, já a lucidez se transformara num "luxo inútil". (a)

(a)
expressão usada por Robert Abirached, in Grande Crónica da Segunda Guerra Mundial, Vol. I, p.54, Selecções do Reader's Digest, Lisboa, 1975:
"(...) Caiu-lhes enfim a venda dos olhos. A Checoslováquia deixou de existir e a lucidez converteu-se num luxo inútil."


(3)
in Prelude to War, World War II, por Robert T. Elson,
Time-Life Books, Alexandria, Virginia, USA, 1977


(4)
in Público, Edição Especial, 20Mar2003, p.5,
"A primeira guerra do Século XXI", por JMF
(após o início da invasão do Iraque, a 19 de Março de 2003)



Carta enviada ao jornal Público - 02/10/2003

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