O conjunto de valores que, nos
países de maioria católica, desde
muito cedo é incutido à generalidade
das pessoas acaba por criar um
"mundo católico" latente.
De facto, os assim formados, como
a maioria dos portugueses, por
exemplo, tem em si essa moral.
A forma como gerimos esta "herança"
ainda depende exclusivamente de nós.
Para mal da Igreja Católica.
Ponto 2.
As religiões impõem os seus valores.Na primeira parte, referi que o Islão nem sequer chegou perto da separação entre religião e Estado,
como a conhecemos na Europa.
Mas pensemos em Salazar.
Não há muito, muito tempo, num país nada distante, a relação entre Estado e Igreja Católica era promíscua ao ponto de se exortar os fiéis a abominarem o comunismo e "derivados" do alto dos púlpitos dos templos católicos. Nesse tempo, o Estado já se sobrepunha à Igreja, mas esta era usada ao mesmo tempo que usava, isto é, o arranjo funcionava nos dois sentidos.
O povinho, inculto, tantas vezes iliterato, era conduzido pela mão firme do Estado, por um lado, e pela não menos segura mão da Igreja, por outro. A moralidade era adaptada ao regime, num conluio velho de séculos. O Vaticano tem adaptado os seus próprios valores de acordo com os tempos que correm. Adaptou-se, por exemplo, ao Renascimento, com os Borgia, como se adaptaria mais tarde ao fascismo de Mussolini e ao nazismo de Hitler. A adaptação é a chave da sobrevivência, todos o sabemos, mas a este nível tem outro significado.
O atraso cultural e a iliteracia não são o pão e a água das religiões doutrinantes, são o seu
Filet Mignon e o seu
Veuve Clicquot. Quanto mais culta e letrada for uma sociedade, mais o factor religioso passa para a esfera privada de cada indivíduo. Ratzinger vem a público dizer que religião e razão andam de mãos dadas! Isto vindo de alguém que acaba de "reanimar" o criacionismo e coloca a virgindade de Maria após a concepção de Jesus como um absoluto inquestionável só pode ser uma piada. Mas, além de piada, é de mau gosto, pois Ratzinger faz passar a ideia de que fala de racionalismo humanista, quando na verdade se refere ao da Igreja.
Relembremos a reabilitação de Galileo Galilei, absolvido pela Igreja Católica em 1983, 341 anos após a sua morte. De mãos dadas com a razão, de facto. Talvez os Galileos de hoje sejam absolvidos mais cedo; para aí uns 150 anitos depois de mortos.
É, de facto, uma piada de péssimo mau gosto, mas que logo foi agarrada em desespero de causa pelos mais improváveis defensores do Papa, os arautos da "liberdade de expressão" (como José Pacheco Pereira nas páginas do Público de hoje, por exemplo - realmente,
a estupidez é-lhe inata, embora não congénita).
Num "mundo Ocidental" em que a educação é cada vez mais medíocre e a xenofobia alastra, a religião é como um facho ardente em campo de erva seca. É uma questão de tempo até alguém se "lembrar" que a "única salvação" está em "Deus" (sendo "Deus" o Papa, naturalmente). E não será a salvação como descrita nos evangelhos, que essa é proclamada como tal todos os dias, à hora da missa; é a salvação mesmo. A da própria pele!
O documentário "Jesus Camp", para o qual chamei a atenção na entrada "
Are you a part of it or not?", é o exemplo acabado desta realidade. São evangelistas, por certo, como George W. Bush, a quem rezam como os católicos portugueses rezam à senhora de Fátima (
e estou a falar a sério!), mas também os católicos já se comportaram assim (e pior) e fá-lo-ão de novo, mal estejam reunidas as condições que o permitam. Este tipo de aproximação à religião é ainda insipiente na Europa, mas começa a alastrar, ao ponto de a Igreja Católica ter adoptado, já há muito tempo, algumas das suas "tácticas" - e eu sei do que falo, pois foram-me explicadas e expliquei-as a outros (ver a primeira parte deste texto).
Não sou apologista da tese que aponta a Europa e os EUA como responsáveis por aquilo que o Islão é hoje, mas não fecho os meus olhos à História, e esta diz-me que todas as tentativas de sociedades islâmicas (em especial as árabes - o ouro negro!) para se modernizarem foram directa ou indirectamente abortadas pelos europeus e pelos norte-americanos. Porquê?
Porque no dia em que um país islâmico produtor de petróleo se tornar laico e moderno, a primeira coisa que vai fazer é nacionalizar ou entregar a empresas nacionais os seus recursos energéticos - exactamente o que fazem os europeus e os norte-americanos. Exactamente o que fazem Hugo Chavez e Evo Morales.
Por este motivo as monarquias do Golfo são toleradas e apoiadas até à insanidade e os que ousam a via da República perseguidos até às últimas consequências - como foram Mossadegh (nacionalista), Nasser (pan-arabista), Kadhafi e Saddam Hussein (socialistas) e, agora, Ahmadinejab (islamita).
Se deixadas entregues a si próprias, essas sociedades iriam evoluir para uma esfera próxima das que temos na Europa - a seu tempo, não ao nosso. Se permanentemente hostilizadas e pressionadas (por vezes violentamente) a mudar, elas irão fechar-se cada vez mais, o que, do ponto de vista "Ocidental", significa que ficarão prontas a receber o "reizinho" da praxe, mal termine a crise, pouco importando se este é um Senhor da Guerra ou um corrupto homem de negócios.
Mantendo o mundo islâmico neste limbo, a Europa e os EUA controlam os seus recursos, mas esta revela-se agora uma espada de dois gumes. O Islão obscurantista é uma ameaça crescente para os que vivem fora e dentro dele.
A Igreja Católica poderia (e a isso está obrigada por desígnio próprio!) desempenhar um papel fulcral na aproximação ao mundo islâmico, mas não o conseguirá com sobrancerias e paternalismos, especialmente com os extremistas muçulmanos à espreita de cada deslize do "Ocidente", como também não o conseguirá o mundo laico se usar os mesmos "tiques" de superioridade colonial, com o toque da baioneta em cima "do bolo". Tanto falam em diplomacia, mas a cada erro crasso cometido, a primeira coisa que fazem é invocar a "liberdade de expressão". A liberdade de expressão pode ter poucos limites reconhecidos, mas o mais universal deles é, sem dúvida, a diplomacia.
Que "razão" é esta, que Ratzinger vê de mão dada com a religião?
Tentem, amanhã mesmo, ir falar a uma aldeia do interior sobre racionalismo humanista e vejam quantos vos darão as mãos. Bom, se forem mesmo para o interior, arriscam-se a que vos dêem as mãos, sim, mas na cara. Como bons cristãos.
Rui Semblano21 de Setembro de 2006
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