domingo, fevereiro 12, 2006

Anima Mundi


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Entrada final da série
One World

Ver entrada inicial aqui.

Entrada completa. Índice da série no final.



Esta interminável série sobre os barbarismos de que todas as civilizações são capazes termina aqui. Inevitavelmente, todos eles transitaram de século. Poderia editar uma entrada relativa a cada um dos traços característicos da bestialidade humana que não me chegaria o tempo que tenho para o fazer, ainda que me restassem 100 anos de vida. Estes bastam.

Não pretendi com esta série demonstrar como é errado afirmar a superioridade da chamada "civilização ocidental" sobre as "outras", mas lembrar que nós, "ocidentais" do nosso torpe ponto de vista, somos tão ou mais bárbaros que aqueles a quem hoje apontamos o dedo, fazendo por esquecer os 3 que, simultaneamente, apontam para nós.
Aliás, a nossa barbaridade é pior, porque perversa, escondida ou camuflada por uma capa de civilidade que, quase sempre, não é mais que uma fina camada de verniz.

O confronto de civilizações entre um "Ocidente laico" e um "Oriente islâmico" é falacioso; uma sociedade laica jamais permitiria um confronto desse tipo. Mas o "Ocidente" não é laico, excepto na forma. Permanece refém de uma moral cristã distorcida, tão ou mais deformada que a islâmica, inculcada no subconsciente até dos mais agnósticos. Em nenhum lugar da Bíblia se escrevem as palavras que muitos nos atiram como se saídas da boca de Cristo - ou de Deus, ele mesmo - e o Corão não determina o conteúdo das fatwas mais extremistas ou contém a Sharia em si mesmo, embora sejam os decretos religiosos que mais inflamam os crentes de uma e de outra fé.

Numa sociedade verdadeiramente laica e justa, o ser-humano é respeitado acima de qualquer condição, mesmo que odiosa. Como o respeito é uma rua de dois sentidos, isto significa que existem consequências para o desrespeito. Fazer caricaturas de Maomé para ilustrar um livro em que se afirma que o Corão deveria ser coberto de sangue menstrual deve ter consequências, se da parte lesada surgir o desejo de processar o autor. Do mesmo modo, perante a lei, os que não recorrem a ela para fazerem valer os seus direitos e a tomam nas mãos, queimando ou matando como protesto pela publicação dos tais desenhos, devem ser punidos, caso os lesados entendam processar os criminosos. Para que a lei se cumpra, é necessário que o lesado a invoque, mesmo que seja o Estado a fazê-lo em seu nome.

Mas estas são razões materiais. Aos que detêm o poder espiritual na Terra (uma expressão espantosa!) não interessa que as pessoas compreendam de uma vez por todas que a fé não se incute, que não se imiscui nos assuntos terrenos e que é íntima e, logo, individual, respeitante a cada indivíduo e ao Deus em que acredita.
A verdade, porém, é outra. Descontado o judaísmo, pois é o sionismo o problema e este não é religioso, embora seja bastante ortodoxo, as religiões mais polarizadoras são o cristianismo e o islamismo (ambas nas suas variadas vertentes). As duas têm uma lógica evangelista (passe a expressão) e de conversão dos infiéis. Ambas se afirmam únicas e detentoras da verdade (o cristianismo veladamente, para o exterior, mas activamente, no seu seio) e procuram a supremacia "civilizacional". Para os cristãos, como para os muçulmanos, o mundo ideal teria uma só fé e um só Deus. Seria "alaico" e o laicismo seria erradicado.
Os que julgam professar a fé de uma destas duas religiões e, ao mesmo tempo, exultam o ecumenismo, estão iludidos. Para um verdadeiro crente existe um só Deus. Ponto final.

Mas estas questões religiosas são um pormenor.
O que conta é a natureza humana, sobre a qual são desenhadas as religiões, de forma mais ou menos sensata, e a natureza humana não necessita de Deus para ser bestial, impiedosa e egoísta. A contrariar esta faceta, apenas um sentimento tão inato quanto a bestialidade: o amor-próprio. Um amor puro no que somos e na alegria de partilhar este mundo único com os outros, pois o ser-humano não existe sozinho. Se deixarmos de fora tudo o que transforma esse amor-próprio em egoísmo estúpido e orgulho exacerbado (como a religião, a política perversa ou o dinheiro - coisas de pouca monta), o ser-humano está condenado a entender-se. Infelizmente, esta afirmação é uma utopia, própria para românticos incuráveis ou perfeitos idiotas.

A natureza humana é a da besta e a Humanidade não pode ser desumana; é um contra-senso. A Humanidade é ela própria: bestial, egoísta, momentânea, materialista. O resto, são os poucos inumanos que tentam resolver um problema insolúvel; que tentam vencer um jogo que sabem viciado.
Talvez acreditem, como eu, que mesmo não podendo vencer, o importante é terem tentado; que isso terá algum efeito no insondável desígnio do criador do Universo, se é que existe esse desígnio... ou esse criador. Eu acredito que sim.

Eu, instalado sem saber como nem porquê num local onde não tenho de esgravatar o lixo para encontrar algo que comer e de onde vejo as imagens que me chegam por cabo dos que esgravatam o lixo para encontrar comida, espero que não chegue o dia em que seja a minha vez de assumir a minha inumanidade; de apanhar a bala que não era para mim; de enterrar um filho; de voltar a cara, simplesmente...
Espero que esse dia não chegue, para continuar a acreditar que, afinal, não sou humano.

Rui Semblano
Fevereiro de 2006


A ouvir em sequência:


Gymnopédie no. 1


Gymnopédie no. 2


Gymnopédie no. 3

Erik Satie - Trois Gynmopédies (1888) - Anders Miolin (guitarra alto)


Todas as entradas de One World:

1. Pena de Morte.
2. Violência contra as mulheres.
3. Testes em animais.
4. Minas terrestres.
5. Pobreza.
6. Anima Mundi.

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