Miúdos "apoiantes" do Hamas.Gaza, Janeiro de 2006.As reacções externas ao mundo árabe à maioria conquistada pelo Hamas nas urnas dividem-se em vários níveis, sendo todos eles, porém, gradações do mesmo sentimento: a inquietação.
Enquanto a UE manifesta "preocupação", os EUA avisam que não estão dispostos a "abrir o diálogo com terroristas" e, em Israel, há quem apele ao assassínio selectivo de "todos os membros do Hamas eleitos" (nada menos que 76).
Estas são diferentes fases da mesma ignorância relativamente à realidade árabe. Quem sempre afirmou que a democracia seria fundamental para que se estabelecessem pontes com o mundo árabe vem agora chorar sobre os resultados dessa democracia.
De facto, os europeus e os norte-americanos nunca pretenderam que os países árabes fossem democráticos, mas que fossem estáveis. Para um leitor de jornais em Lisboa, Moscovo ou Los Angeles, essa estabilidade traduz-se em democracia, no conjunto de valores que, nas nossas sociedades laicas e ocidentais, garantem a vida que conhecemos, no seu quotidiano relativamente tranquilo e no desenvolvimento que sustenta. Adaptar isto ao mundo árabe não é um erro. O que é um erro é esperar que o resultado seja o que esperamos. O erro, aliás, começa logo no "esperar" um resultado qualquer.
A democracia é o resultado de si mesma. Pretender com ela atingir outra coisa que o atingido pelos votos de quem a faz é querer algo que nada tem a ver com as nobres intenções de "levar a liberdade" aos "pobres árabes", seja no Iraque, no Afeganistão ou na Palestina.
O voto árabe não mudará tão cedo no sentido de uma estabilização como nós a vemos, isto é, na essência, no estabelecimento de relações diplomáticas com todo o mundo, incluindo os EUA e... Israel. Na Palestina, de todos os locais, é onde essa "normalização" custará mais a acontecer. Sobre os motivos que fazem com que assim seja já quase tudo se disse, mas nunca é demais sugerir uma boa fonte como introdução ao olhar ocidental e, especialmente, norte-americano ao desenvolvimento do Estado de Israel e, paralelamente, ao da Palestina, enquanto nação.
Sugiro, portanto, "
Perceptions of Palestine", de Kathleen Christison, ex-analista da CIA, uma obra que analisa friamente a atitude dos EUA face aos palestinianos, de Woodrow Wilson a Bill Clinton (University of California Press, 2001 - paperback), incluindo as relações israelo-palestinianas durante o mesmo período.
Quanto ao Hamas, a sua vitória ilustrará, como escreveu Marc Semo no
Libération (reproduzido no
Público de ontem), como a questão é hoje a de islamizar a modernidade e já não de modernizar o islão; isto é, a bola está do lado de lá. E quanto à Europa e aos EUA, quanto mais depressa perceberem que não é possível esperar nada de um mundo árabe democrático a não ser o resultado de eleições livres, mais rápido compreenderão que a velha forma de "estabilizar" o mundo árabe não encontrará nunca a correspondência que desejavam na democratização do mesmo. E nem "dando uma mãozinha" para "ajudar" ao processo se conseguirá outra coisa que a radicalização de cada vez maiores grupos políticos, outrora minoritários ou clandestinos.
Veremos como os EUA e a UE descalçam esta bota.
Sem tirar os olhos de Telavive e de Gaza, naturalmente.
Rui Semblano
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