domingo, setembro 17, 2006

Oriana Fallaci (1929-2006)










"La Fallaci é morta."

Oriana Fallaci regressou à Florença onde nasceu,
a 29 de Julho de 1929, para morrer este 15 de Setembro.
Tinha 77 anos.










A minha história com Oriana Fallaci começou há 30 anos.
Nessa altura (1976), Portugal era um turbilhão de emoções e experiências, o PREC tinha deixado marcas profundas na sociedade portuguesa. A minha casa chegavam ameaças de morte, por telefone, cobardemente anónimas. O meu pai, sindicalista numa fábrica têxtil (que pertencera até pouco antes do 25 de Abril de 1974 a um industrial comunista que sempre tratara muito bem os trabalhadores), tentara convencer os operários de que não poderiam querer ser "ricos" em meia dúzia de dias. Uma alminha iluminada (que hoje é eurodeputada), declarou o meu pai "lacaio do capital" e a autogestão iniciou-se alegremente, tendo todos sido "patrões" nos poucos meses que a fábrica durou a partir daí. Quando se declarou a falência, o meu pai já tinha tratado de arranjar novo emprego, pois percebeu de imediato que a fábrica (des)governada daquela maneira não aguentaria muito (a minha mãe, que lá trabalhava também, como contabilista, entrou em depressão e já estava em casa, por essa altura). Ao verem morta a galinha e idos os ovos de ouro, os efémeros "patrões" dirigiram a sua raiva contra o "lacaio do capital", que "escapara" ao destino que tão alegremente tinham abraçado embalados no discurso revolucionário da tal alminha que hoje anda a comer em Bruxelas à nossa custa (e à custa dos que iludiu, um dia).

No meio disto tudo, com a idade de 12 anos, tornei-me visceralmente anticomunista. O processo foi o mesmo que aquele por que passaram os que tinham familiares perseguidos pelo regime, antes de 1974, só que ao contrário. O tempo se encarregaria de me formar e transformar, politicamente, mas a grande responsável e tutora inicial e iniciática da minha formação política foi Oriana Fallaci.

A 25 de Novembro de 1975, os meus pais celebraram o seu 13º aniversário de casamento. A 26 de Novembro de 1975, o meu pai fez 39 anos. A 28 de Novembro de 1975, rodeado de toda a família, soprei as doze velas do meu "bolo de anos". Em Novembro de 1975 o PREC terminou e o Círculo de Leitores editou "Entrevista com a História", de Oriana Fallaci.
No ano seguinte, descobri este livro (efectivamente o livro da imagem que ilustra esta entrada, hoje na minha posse) nas estantes de casa de uns tios, onde costumava passar longos períodos. Na capa, uma reprodução da célebre e controversa entrevista de Oriana Fallaci a Álvaro Cunhal, publicada no italiano Europeo a 6 de Junho de 1975 e reproduzida na íntegra em Portugal pelo Jornal do Caso República, quase três semanas após a publicação em Itália. Não li, na altura, o jornal português (e muito menos o italiano), mas ouvi, em família, comentários ao caso. Curioso, procurei a entrevista no interior do livro, mas não a encontrei no índice. Então, comecei a percorrer os diversos capítulos na diagonal, mas nada encontrava. Foi então que passei os olhos na entrevista a Golda Meir (os acontecimentos de Munique ainda estavam frescos na minha memória) e, adiante, na de Yasser Arafat. Lembro-me de me ter sentado num sofá, em casa dos meus tios, e lido as duas entrevistas de um fôlego. Depois, os nomes familiares (Kissinger, Willy Brandt, Indira Ghandi), e os outros, quem eram? George Habash, Nguyen Van Thieu, Ali Bhutto... Nomes que me conduziram a outros nomes, a outras palavras, a outras realidades e outras perspectivas. Foi o meu baptismo de fogo.
E não, não encontrei a entrevista a Álvaro Cunhal nas páginas deste livro concreto. Até ter encontrado o texto completo, tudo o que li foram as linhas impressas na capa da edição do Círculo de Leitores.

Não sei quantas vezes li este livro. Acho que, durante muito tempo, sempre o ia buscar a cada vez que estava em casa de meus tios. Hoje, falecidos ambos, o livro encontra-se aqui, no meu escritório, entre o "Crimes de Guerra no Vietname", de Bertrand Russel, e o "Dossier do Conflito Israelo-Árabe", edição de 1968 da Inova (então Editorial Inova Limitada), com capa de Armando Alves.

Oriana Fallaci, para mim, era uma deusa.
Ainda por cima era uma mulher belíssima (e italiana!) e de esquerda, o que lhe dava ainda mais charme, do meu ponto de vista dos doze anos, como descrito acima.
E então, tantos anos depois, sabia que ela morava em Nova Iorque, mas naquela manhã de Setembro de 2001 a última coisa que me passou pela cabeça foi esse facto. Eu escrevo; escrevo mesmo muito (raramente passa um dia sem que escreva), mas a 11 de Setembro de 2001 não escrevi nada. Simplesmente não consegui. Há uns dias, uma amiga que conhece as minhas posições sobre o 9/11, disse-me, após ter lido uma das entradas da série 5/911, n'A Sombra: "Quem te ouviu depois dos atentados e quem te ouve agora!" De facto, o choque provocado pelas imagens e notícias daquele dia deixou-me incapacitado de ver, para além do aparente, o óbvio nelas contido. O castelo de cartas, porém, não demorou muito a cair. Bastou retirar a carta de toque. Mas sim, admito que nessa altura senti pura raiva. Ainda assim, não escrevi uma linha.
Oriana Fallaci, porém, escrevia.
Escrevia a sua raiva contra o "Islão" e o seu orgulho em ser "ocidental", ao mesmo tempo que via cair uma e depois outra torre, perto da sua casa de Manhattan. Ainda hoje não sei porque o fez. Sei que as ideias que transmite não nasceram nesse dia. Imagino porque nasceram. Recordo as duas primeiras entrevistas que li, em "Entrevista com a História". Não sei o que levou Fallaci a entrevistar Fallaci, a passar para o outro lado, transformando o relato em acção e a entrevistadora em entrevistada, construtora da História. Actriz.

Não li La Rabia e l’Orgoglio, apenas conheço excertos e li palavras da própria autora sobre ele, mas hei-de tê-lo, um dia. E talvez não o consiga ler, não por ser "incómodo" ou por ser outro tipo de "verdade inconveniente", mas por ter sido escrito por ela.



Addio, Oriana. Ti mancherò...


Rui Semblano
17 de Setembro de 2006









Oriana Fallaci em 1963, o ano em que eu nasci.

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