"La Fallaci é morta."Oriana Fallaci regressou à Florença onde nasceu,
a 29 de Julho de 1929, para morrer este 15 de Setembro.
Tinha 77 anos.
A minha história com Oriana Fallaci começou há 30 anos.
Nessa altura (1976), Portugal era um turbilhão de emoções e experiências, o PREC tinha deixado marcas profundas na sociedade portuguesa. A minha casa chegavam ameaças de morte, por telefone, cobardemente anónimas. O meu pai, sindicalista numa fábrica têxtil (que pertencera até pouco antes do 25 de Abril de 1974 a um industrial comunista que sempre tratara muito bem os trabalhadores), tentara convencer os operários de que não poderiam querer ser "ricos" em meia dúzia de dias. Uma alminha iluminada (que hoje é eurodeputada), declarou o meu pai "lacaio do capital" e a autogestão iniciou-se alegremente, tendo todos sido "patrões" nos poucos meses que a fábrica durou a partir daí. Quando se declarou a falência, o meu pai já tinha tratado de arranjar novo emprego, pois percebeu de imediato que a fábrica (des)governada daquela maneira não aguentaria muito (a minha mãe, que lá trabalhava também, como contabilista, entrou em depressão e já estava em casa, por essa altura). Ao verem morta a galinha e idos os ovos de ouro, os efémeros "patrões" dirigiram a sua raiva contra o "lacaio do capital", que "escapara" ao destino que tão alegremente tinham abraçado embalados no discurso revolucionário da tal alminha que hoje anda a comer em Bruxelas à nossa custa (e à custa dos que iludiu, um dia).
No meio disto tudo, com a idade de 12 anos, tornei-me visceralmente anticomunista. O processo foi o mesmo que aquele por que passaram os que tinham familiares perseguidos pelo regime, antes de 1974, só que ao contrário. O tempo se encarregaria de me formar e transformar, politicamente, mas a grande responsável e tutora inicial e iniciática da minha formação política foi Oriana Fallaci.
A 25 de Novembro de 1975, os meus pais celebraram o seu 13º aniversário de casamento. A 26 de Novembro de 1975, o meu pai fez 39 anos. A 28 de Novembro de 1975, rodeado de toda a família, soprei as doze velas do meu "bolo de anos". Em Novembro de 1975 o PREC terminou e o Círculo de Leitores editou "Entrevista com a História", de Oriana Fallaci.
No ano seguinte, descobri este livro (efectivamente o livro da imagem que ilustra esta entrada, hoje na minha posse) nas estantes de casa de uns tios, onde costumava passar longos períodos. Na capa, uma reprodução da célebre e controversa entrevista de Oriana Fallaci a Álvaro Cunhal, publicada no italiano
Europeo a 6 de Junho de 1975 e reproduzida na íntegra em Portugal pelo
Jornal do Caso República, quase três semanas após a publicação em Itália. Não li, na altura, o jornal português (e muito menos o italiano), mas ouvi, em família, comentários ao caso. Curioso, procurei a entrevista no interior do livro, mas não a encontrei no índice. Então, comecei a percorrer os diversos capítulos na diagonal, mas nada encontrava. Foi então que passei os olhos na entrevista a Golda Meir (os acontecimentos de Munique ainda estavam frescos na minha memória) e, adiante, na de Yasser Arafat. Lembro-me de me ter sentado num sofá, em casa dos meus tios, e lido as duas entrevistas de um fôlego. Depois, os nomes familiares (Kissinger, Willy Brandt, Indira Ghandi), e os outros, quem eram? George Habash, Nguyen Van Thieu, Ali Bhutto... Nomes que me conduziram a outros nomes, a outras palavras, a outras realidades e outras perspectivas. Foi o meu baptismo de fogo.
E não, não encontrei a entrevista a Álvaro Cunhal nas páginas deste livro concreto. Até ter encontrado o texto completo, tudo o que li foram
as linhas impressas na capa da edição do Círculo de Leitores.
Não sei quantas vezes li este livro. Acho que, durante muito tempo, sempre o ia buscar a cada vez que estava em casa de meus tios. Hoje, falecidos ambos, o livro encontra-se aqui, no meu escritório, entre o "Crimes de Guerra no Vietname", de Bertrand Russel, e o "Dossier do Conflito Israelo-Árabe", edição de 1968 da Inova (então Editorial Inova Limitada), com capa de Armando Alves.
Oriana Fallaci, para mim, era uma deusa.
Ainda por cima era uma mulher belíssima (e italiana!) e de esquerda, o que lhe dava ainda mais charme, do meu ponto de vista dos doze anos, como descrito acima.
E então, tantos anos depois, sabia que ela morava em Nova Iorque, mas naquela manhã de Setembro de 2001 a última coisa que me passou pela cabeça foi esse facto. Eu escrevo; escrevo mesmo muito (raramente passa um dia sem que escreva), mas a 11 de Setembro de 2001 não escrevi nada. Simplesmente não consegui. Há uns dias, uma amiga que conhece as minhas posições sobre o 9/11, disse-me, após ter lido uma das entradas da
série 5/911, n'A Sombra: "Quem te ouviu depois dos atentados e quem te ouve agora!" De facto, o choque provocado pelas imagens e notícias daquele dia deixou-me incapacitado de ver, para além do aparente, o óbvio nelas contido. O castelo de cartas, porém, não demorou muito a cair. Bastou retirar
a carta de toque. Mas sim, admito que nessa altura senti pura raiva. Ainda assim, não escrevi uma linha.
Oriana Fallaci, porém, escrevia.
Escrevia a sua raiva contra o "Islão" e o seu orgulho em ser "ocidental", ao mesmo tempo que via cair uma e depois outra torre, perto da sua casa de Manhattan. Ainda hoje não sei porque o fez. Sei que as ideias que transmite não nasceram nesse dia. Imagino porque nasceram. Recordo as duas primeiras entrevistas que li, em "Entrevista com a História". Não sei o que levou Fallaci a entrevistar Fallaci, a passar para o outro lado, transformando o relato em acção e a entrevistadora em entrevistada, construtora da História. Actriz.
Não li
La Rabia e l’Orgoglio, apenas conheço excertos e li palavras da própria autora sobre ele, mas hei-de tê-lo, um dia. E talvez não o consiga ler, não por ser "incómodo" ou por ser outro tipo de "
verdade inconveniente", mas por ter sido escrito por ela.
Addio, Oriana. Ti mancherò...Rui Semblano
17 de Setembro de 2006
Oriana Fallaci em 1963, o ano em que eu nasci.
Sem comentários:
Enviar um comentário