quarta-feira, janeiro 25, 2006

Vícios & Virtudes - Channel no. 5

Resta-nos o quê, quando tudo o resto falhou?
Quando deixamos de ter dinheiro para pagar o fundo de garantia que nos aumentaria um pouco a parca reforma?... Quando passamos do T2+1 para um quarto sem janelas, deixando de poder pagar o primeiro e mal tendo com que alugar o segundo?... Quando percebemos a quantidade de meias que deitámos ao lixo por uns borbotos e o estado em que estão as que restam?... Quando o único emprego que arranjamos, apesar de digno, não chega para satisfazer as necessidades mínimas, quanto mais fazer esquecer a formação que temos ou o que gostaríamos realmente de fazer?... Esperar um milagre?

Resta-nos o quê, quando nos estendem uma folha de papel que, uma vez assinada, nos vai enviar para longe, onde tudo será ainda pior, porque lhes seria demasiado caro dizerem-nos, simplesmente, "acabou"?... Quando somos forçados a tirar os filhos da escola ou do infantário, hipotecando o seu futuro a troco de nada?... Quando uma ida por mês ao mais paupérrimo dos minimercados para encher meio frigorífico é tudo o que conseguimos?... Quando os anos que passámos a trabalhar para alguém que deveria pensar no nosso futuro, como nós pensávamos no desse alguém, do qual dependíamos, se transformam em pó no fundo de um balão de vidro... Que nos resta, então?

Do alto da arrogante burra que conhecemos por Sabedoria, mas que tem outro nome, desviamos o olhar desses desgraçados, tão diferentes de nós que mal parecem merecedores de respirar o mesmo ar.
Às vezes, quando um deles tem a infelicidade de tocar as nossas vidas, a repulsa é de tal ordem que o nosso olhar, se pudesse, o transformaria ali mesmo num monte de cinzas, que o vento se encarregaria de fazer esquecer.
São gente menor, sem fibra, sem vontade e sem força. Dejectos. À razão pela qual o Governo permite que as suas imagens passem nos telejornais, de longe a longe, chamamos tolerância. Quanto à caridade, isso era no tempo da outra senhora; agora somos democratas, não temos pachorra para esses tiques reaccionários.

Se ao menos acabasse o rendimento mínimo... Se aquele preto do Bangladesh não se tivesse lembrado do microcrédito (e ainda lhe deram um Nobel, quando lhe deviam era ter dado um tiro!)... Isso não serve para nada. Só lhes permite arrastarem-se um pouco mais, enlameando os passeios por onde andamos.
Devia era haver um engano qualquer num daqueles laboratórios de garagem, a ver se ao menos os drogados iam todos de vela. Qualquer dia já nem podemos sair à rua...

Enfiaram-nos em condomínios fechados, é verdade, mas que podemos fazer? Viver na Baixa? Sem polícia que se veja? A mesma que é incapaz de espantar um simples arrumador? Não. E o Estado só empata, só empata... Talvez agora mude alguma coisa; um pouco de autoridade consegue prodígios, mas não nos entusiasmemos.
Seria preciso um milagre... Um murro na mesa; resolver o problema de uma vez por todas... Ou, pelo menos, arranjar um sítio qualquer onde enfiar essa gentinha. Longe.
De onde não viesse o cheiro.

Rui Semblano

(Perdoem-me o tom em que acaba esta trilogia, mas
estava farto de estatística, planeamento e filosofia...)



Leonard Cohen - Waiting for the miracle - The Essential Leonard Cohen

Outras entradas do mesmo grupo:

Introdução:
Safety first!
Trilogia Vícios & Virtudes:
1.
O Combústivel
2. Sociopatia
3. Channel no. 5

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