Perdi a Leni.
Soube-o apenas hoje. Não penso em mais ninguém. O mundo perdeu uma artista genial; eu perdi o meu anjo azul.
Digam o que disserem sobre
Leni Riefenstahl, nada manchará o seu génio ou a sua arte, e nada fará esquecer o crime que foi terem proibido esta mulher de filmar.
Ao falar da realizadora de "Olympia", falamos de arte - aquela mesma que em si se esconde e que é A arte. Neste campo, mas não só, sou demasiado exigente; comigo e com os outros. Neste campo não existe lugar para "jeitosos" - apenas para artistas. Não há montanhas de tratados teóricos para tentar explicar
a posteriori o que nunca existiu anteriormente à obra. Neste campo apenas existem imagens - e não se fazem prisioneiros.
A arte de Leni Riefenstahl é o paradigma da pureza do olhar cinematográfico, da depuração estética levada a um limite nunca alcançado antes ou após este registo. E que não me falem em Resnais e Pontecorvo, nem encham a boca com "belezas" ao falar das realizações da brilhante cineasta alemã. "Nacht und Nebel" e "Kapo" são documentários frios sobre trágicas realidades; nunca foi intenção dos seus realizadores transformar o "horror" em "beleza". E "beleza" não é definição adequada ao trabalho de Leni Riefenstahl, bem como não é compreensível que ainda hoje se confunda a inversão, pela sociedade nazi, dos valores atrás citados como caracterização da obra artística da cineasta.
Antes o é o "belo", enquanto fim estético inatingível.
"Triumph des Willens" é belo sem que chegue a roçar esta "beleza" torpe, afilhada do "bonito" e da "bizarria". Não existe "beleza" em nenhuma das obras-primas de Leni. Apenas o belo existe. O impossível.
Da sua obra apenas pode dizer-se o mesmo que dela própria, de quem nunca se diria ser "uma beleza". Era bela. E basta. O génio desta mulher incrível é a manifestação de um fenómeno raro na Sétima Arte: o registo do impossível em filme. Tornar real o que não pode ser.
Em "Triumph des Willens" transforma o ordinário em fenomenal - a tal ponto o consegue que é considerado "o melhor filme de propaganda" de todos os tempos. Em "Olympia", faz correr sangue nas veias de mármore de David. É impossível, mas existe - sem truques ou efeitos. Está ali. Foi realizado por Leni Riefenstahl.
"Não tenho medo de nada e sobretudo não tenho medo da morte.
Para mim, a morte é o que há de mais belo."
A morte encontrou-a dormindo, em sua casa, em Munique. Eram 22:50 de segunda-feira, 8 de Setembro de 2003. Tinha 101 anos.
É o triunfo da vontade sobre os medíocres.
Começou a sexta vida de Leni Riefenstahl. Imortal, por fim.
Rui Semblano
Porto, 10 de Setembro de 2003
nota amarga:
No
Público de hoje (10Set2003), em primeira página como no artigo que lhe é dedicado, o nome de Leni Riefenstahl aparece sempre errado nos títulos...
Que lástima.
Que tristes somos...
nota2:
Entrada editada a 10 de Setembro de 2003.
(carta enviada ao jornal Público a 11-09-2003)
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