terça-feira, setembro 09, 2003

Reflexo


Em resposta a um convite do Nuno P., do Janela para o rio, aqui fica a série de considerações suscitadas pelos "motivos de reflexão" por ele propostos num simpático e-mail enviado à Sombra - e aproveito para, publicamente, agradecer ao Nuno o ter-nos envolvido neste debate.

Então vejamos,

Janela para o rio:

Porque não pode um comunista ser católico praticante? A igualdade entre todos é incompatível com a fé em Deus?

A Sombra:

Não posso evitar o velho chavão de ter sido Jesus Cristo o "comunista original"; um cliché que nunca foi bem visto "à direita" como "à esquerda". E é neste "como à esquerda" que se situa a questão colocada pelo Nuno.
De facto, em termos estritos, nada impede um comunista de ser católico praticante, mas se considerarmos as raízes humanistas e materiais dos grandes movimentos "de esquerda", como o comunismo e o socialismo (de Sartre a Marx a Breton - sim, ele também), verificamos que o "factor Deus" não é equacionável em ambos os esquemas - muito menos no anarco-surrealismo de Breton, tão do agrado de muitos "teóricos de esquerda avançados", mesmo "reformados", como José Pacheco Pereira, por exemplo.

Apenas por uma questão de princípio, e de coerência com a filosofia existencialista e materialista de base, um comunista (como um socialista) "não poderá" - notem-se as aspas - acreditar em Deus, por definição. A não ser que seja um porco. Deus, não o comunista. (1)
Esta é uma ideia que incluo no rol dos dogmas que acorrentam os que adoptam rótulos. Ser comunista ou socialista convicto e, ao mesmo tempo, acreditar em Deus (já nem falo, para já, de ser católico praticante) é tão absurdo como ser vegetariano e comer omeletas. O preço a pagar pela aposição da "etiqueta" é sempre alto - e quase ninguém o paga, apesar de muitos a ostentarem.
Por isto prefiro os termos "liberal" e "conservador" a "de esquerda" e "de direita" (ver entrada "O liberal conservador", n'A Sombra). Apesar de permanecerem rótulos, a sua amplitude é bem mais vasta e chega para descartar certos falsos axiomas que a "esquerda" e a "direita" não conseguem iludir - sendo o papel da religião (o "factor Deus", se quisermos) um deles.

Aliás, como muito bem sugere o Nuno, retoricamente, na segunda parte da sua questão, a igualdade entre todos é condição indispensável do comunismo como da fé em Deus, seja ele qual for, mas, neste caso, o da religião católica e apostólica (acrescentar o "romana", como tantas vezes se faz, seria redundante - Papa há só um).

Janela para o rio:

Como é que as estatísticas demonstram que mais de 75% da população é católica, mas pelo menos metade da população vota à esquerda? Quer isto dizer que a abstenção é quase toda crente?

A Sombra:

Aqui está um bom exemplo de como a religião católica tem poucos adeptos reais em Portugal. Por definição, tanto o comunismo como o socialismo são a antítese do Vaticano. Pactuar com Roma e ser comunista ou socialista é daquelas coisas que não se compreendem - mas existem!

Na realidade, o "católico português" não é nada católico - mas pensa que é. Assim, como se ser católico em Portugal fosse patológico, de origem congénita.
Veja-se o que sucede com os baptismos.
Para mim, como diria um amigo meu, faz tanto sentido baptizar uma criança como filiá-la num clube de futebol ou num partido político. Cada um, atingida a maturidade, deve decidir por si esse tipo de coisas - como fez Cristo, aliás. Em Portugal, porém, tal não é decidido por cada um, mas antes pelo binómio aditivo família-sociedade, sendo que a maior parte se acomoda ao resultado, paradoxalmente subtraindo-se da equação, enquanto indivíduo.
Mas, atenção, que isto não é só em Portugal, embora excelemos neste tipo de relação entre a sociedade e a religião.

(Ainda a propósito de "votos" e de "abstenções", veja-se a entrada
"A Democracia, esse mito", n'A Sombra.)

Janela para o rio:

E as outras religiões, alguém que é budista, judeu, muçulmano, protestante ou outra religião qualquer, também é tendencialmente de direita?

A Sombra:

Penso que já ilustrei a resposta a esta questão ao responder às anteriores, mas cabe aqui uma chamada de atenção para o papel fundamental (literalmente) da religião nos Estados islâmicos.
Quanto ao factor "direita", direi que as ideias de "esquerda" e de "direita", como definidas inicialmente pela Revolução Francesa, são europeias (e, por arrasto, americanas - não "norte-americanas", apenas, mas americanas, mesmo), tendo sido exportadas virtualmente para outros continentes e "coladas" a outras culturas.

Na prática, isto não funciona, mas para o chamado "ocidental médio" ajuda imenso a "compreender" o pouco que lê nos jornais.

Janela para o rio:

Sendo assim, como enquadramos os terroristas de inspiração fundamentalista islâmica? Serão eles todos de direita?

A Sombra:

Cá vamos nós...
Ao "colar" as nossas referências a culturas que pouco ou nada têm a ver com as nossas (pelo contrário, as referências deles foram as nossas durante séculos - uma espécie de vingança nossa? - talvez...) corremos o risco de exorbitar.
Do ponto de vista dito "ocidental" pode fazer sentido considerar, por exemplo, o Hamas como de "extrema-direita", mas tal coisa não sucede. No que respeita ao Médio Oriente, a especificidade cultural árabe tem sido preservada, neste aspecto, fruto do seu confronto com um opositor "pró-ocidental" que assimilou por inteiro os nossos valores seculares de "esquerda" e de "direita".
Será a excepção que confirma a regra? Pode ser...

Janela para o rio:

E os grupos terroristas com base no separatismo (como a ETA ou o IRA)? Se querem a independência, são partidos nacionalistas, valores que são da direita, certo?

A Sombra:

Certíssimo!
Parece uma incongruência, não parece?
Tendo em conta o que antes escrevi, deveria existir um raciocínio idêntico para os movimentos e organizações extremistas de raiz europeia, mas não é assim. E tal não acontece porque esta lógica não é linear.
No caso da ETA-milis e do real-IRA, por exemplo, apesar da sua ideologia e do que, supostamente, pretendem atingir (tantas vezes conotado com o socialismo), as suas acções tendem a demonstrar um comportamento que podemos "classificar" como "reaccionário", "segregacionista" e, logo, "extremista", podendo ser identificado com a "direita", neste caso, como com a "esquerda", em outros, mas analiso, apenas, a componente de "direita", dada a presença do "factor Deus", em especial no Ulster.

No caso do IRA, e do real-IRA em particular, existe uma componente religiosa tão ou mais fanatizante e fanática como a das células mais encardidas da Fatah. Esta componente é impossível de conotar com a "esquerda" - conforme a minha resposta à primeira questão do Nuno demonstra.
Já no caso do País Basco, embora a religião seja um factor de menos peso, comparado com a Irlanda do Norte, são mais os objectivos que aproximam a ETA-milis da "direita", em termos formais, mas pode sempre argumentar-se que, assim, também os métodos do Che se aproximam da "direita".

Mais que "direita" ou "esquerda", convém referir a classificação "extremista" como padrão, independentemente da fé. Como nenhum outro, foi esse factor que permitiu que organizações terroristas de ideologias opostas partilhassem os mesmos campos de treino, no auge da "internacional terrorista" dos anos 70 do século passado.


Conclusão:

Numa sociedade em que ser católico é uma consequência natal não se pode relacionar religião e política.

Quanto a ser uma imposição familiar ou/e social o ser-se católico em Portugal, como em outros países de tradição apostólica, trata-se de uma falsa questão.
Os meus pais optaram por me baptizar em criança, o mais cedo possível após o nascimento, "como manda a regra"; tenho todos os sacramentos católicos até ao Crisma (inclusive). Na altura de atingir o patamar seguinte, porém, tornei-me apóstata.
Demorei "algum tempo", mas "desertei" com profundo conhecimento de causa e muito consciente - o meu trajecto excedeu o comum, tendo chegado a ser responsável por grupos de jovens católicos. A "imposição" é, portanto, uma questão pessoal, não familiar nem, tão pouco, social. Cada um é livre de optar em consciência. Como alguém disse, um dia, "os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo, trata-se, agora, de o transformar" (2). A cada um decidir como o fazer. Pelo menos até ao regresso das fogueiras.

E esta sim, é uma questão que nada tem de falsa e que não pode ser iludida, sob pena de as vermos chegar de novo mais depressa do que algum dia julgámos ser possível.
E essas chamas, caríssimos, serão "de direita" ou "de esquerda"?


Pel'A Sombra,
Rui Semblano

Porto, 8 de Setembro de 2003



(1)
"Deus é um porco!" - André Breton, in Le Surréalisme et la peinture, Paris, Gallimard, 1965

(2)
Karl Marx in Theses on Feuerbach (Última tese)


nota:
Ambos os excertos acima foram extraídos não dos respectivos originais (I wish...) mas de "Textos de Afirmação e Combate do Movimento Surrealista Mundial", tradução de Mário Cesariny de Vasconcelos (Perspectivas e Realidades, Lisboa, Novembro de 1977). (*)

(*) Uma obra que JPP conhece bem, assim como a Livraria Utopia, na Rua da Regeneração, no Porto, já lá vão uns anitos...
(yes, it's a very, very small world...)

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