sábado, agosto 16, 2003

A expansão da loucura

(continuação das entradas "A Democracia, esse mito"
e "Tragédia Comum", abaixo)

Da Liberalização, da Democracia e dos seus Espelhos

3. Finale

Onde está a solução?
Como poderemos atingir o que se consideraria o melhor sistema possível?
Alguns entenderão, como eu, que é possível fundir o que de melhor existe em variados sistemas, desde o capitalismo ao marxismo, do neoliberalismo ao socialismo, da alterglobalização ao fascismo. O que resultaria de tal fusão seria incomensuravelmente menos que o deitado ao lixo, mas seria um bom ponto de partida, a que se juntariam outras soluções, precisamente originadas pela junção de elementos extraídos de corpos inteiramente incompatíveis entre si. Mas não tenho ilusões.
O mundo ainda pertence aos adoradores de "santinhos" e "altares", que vão desde José Pacheco Pereira a Francisco Louçã, de Pedro Mexia a Ferro Rodrigues. A "política", para estes Senhores, continuará a ser "mostrar-se incapaz de encontrar uma racionalidade comum, de uma forma radicalmente incompatível". Traduzindo: a manutenção, a todo o custo, do Status Quo.
Todos eles já compreenderam há muito que o Sistema que os sustenta não sobreviverá de outra forma. São actores convictos, rendidos ao inexorável fio do enredo que representam. E não só eles. Também muitos dos que os suportam, suportando o próprio Sistema.

Alguns de nós, direi mesmo bastantes, não mudam de canal quando surgem imagens de guerra, de fome, de peste ou de qualquer outra catástrofe terceiro mundista, por mero fastio, em busca de uma telenovela ou de futebol. Claro que a maior parte de nós o faz por esse motivo, mas existe um número crescente que o faz por algo diverso.
Por vergonha.
Porque, muito mais que a violência das imagens que evitam, sentem a insuportabilidade da sua própria culpa pela existência das mesmas. Para esses são os anúncios televisivos da Shell, mostrando biologistas da empresa em cenários naturais paradisíacos, lutando para conservar o planeta. Mas eles não chegam para aliviar as suas consciências.

Existirá mesmo essa "mão invisível", que Adam Smith protestava zelar pelo bem comum em cada gesto que preserva o privado? Para ele, sem dúvida. Para mim, com toda a certeza. Mas para a maioria, porém, a "mão invisível" serve para, discretamente, colocar uma ovelha mais no seu rebanho (e mais outra e outra) que se alimenta do pasto de todos nós.
(E desiludam-se os que pensam ver aqui a apologia da nacionalização, pois se as ovelhas não fossem deles não lhes ligariam nenhuma e, quando as perdessem, limitar-se-iam a esperar que o Estado lhes desse mais. - Soa familiar?)

Que mundo é este, então?
Que futuro liberalizador ou libertador nos espera?
Nada de novo. Todos nós, em variados níveis de consciência (a tal que, para Hardin, não existe, ou melhor, que ele gostaria não existisse), sabemos que as medidas tomadas em defesa do Terceiro Mundo e as tentativas para o desenvolver não passam de uma cortina de fumo destinada a salvar as aparências, tal como os belos e ecológicos anúncios da Shell.
Alguém duvidará que os meios para erradicar a fome, a doença e a miséria no Terceiro Mundo já existem há décadas? Esses meios não são aplicados porque nós, os afortunados que vivem no mundo desenvolvido, dito "civilizado", dependemos da manutenção do Terceiro Mundo tal como é hoje para mantermos o nosso nível de vida. Aproximar (já nem digo igualar) estes dois mundos, equivaleria a prescindir de 90% dos nossos actuais benefícios - e estou a ser simpático, deixando-nos ainda 10% dos mesmos.

Alguém, no seu perfeito juízo, abdicará desses benefícios?
Mas, prontamente, por exemplo, abdicamos dos direitos garantidos por mais de um século de lutas sociais, como contrapartida à manutenção desses outros, atingidos à custa de séculos de exploração e de exaltação do privado como meta, do Estado e do Indivíduo.
Rapidamente abdicamos do direito à opinião, mas só por cima do nosso cadáver nos conseguirão tirar o direito de poder comprar um Ferrari - mesmo que nunca tenhamos dinheiro para tal coisa.

Mais uma "tragédia", segundo Hardin:
A impossibilidade de atingir o equilíbrio, a temperança.
Mas, claro, isto não é mais que outro mito. Todos sabemos que é impossível de atingir, como o são a justiça e a democracia, o que não significa que devemos abandonar tais objectivos. No entanto, o problema está em nos quererem fazer crer que tais impossibilidades justificam a procura de outros objectivos não alternativos, isto é, manter o que já existe ("nenhum sistema é perfeito", etc. etc.) e ir relaxar a carteira ao mega centro comercial mais próximo. É uma conclusão que se vende muito bem e que nós, bom, a maior parte de nós, compra ainda melhor, pondo os olhos nos "altares" onde se ajoelham os Senhores, embora lá nada se passe.

O objectivo é mesmo esse.
Não se passar nada. Manter o Status Quo, a bem do nosso Status - e que se dane a Éthos, que essa compramos nos "templos", já feita e prêt-à-porter, "made by Zara in Indonesia", quem sabe...
O que fazer?
Aderir ao "Zapatismo" bacoco? Ou sermos todos "Marcos"? Eu prefiro o último. Foi engraçado ver como os esperançados que compareceram ao "Encontro Internacional pela Humanidade e contra o Neoliberalismo" organizado pelos zapatistas em Agosto de 1996 (há exactamente sete anos!) ficaram desapontados por não terem "visto a luz" e confundidos quando os chiapecos lhes perguntaram "E vós? O que estais a fazer nos vossos países?" em lugar de lhes fornecer um roteiro para a "revolução". Alguns desses eram do Bloco de Esquerda, coitados... O que terão dito aos fabulosos e únicos zapatistas?
Nunca seremos "todos zapatistas"; só um mentecapto acreditaria na possibilidade de tal coisa, mas todos, na verdade, podemos ser "Marcos". Basta querer. E nem é preciso usar uma balaclava.

Caminhamos para onde?
Pois para lado nenhum. Estamos parados.
Alguns ainda tentam fazer alguma coisa - gotas onde eram precisos jorros de água. Eu talvez seja um deles. Mas já não tenho ilusões.
Acredito que a mudança ocorrerá quando menos se esperar. Acredito que ainda seremos um só povo e uma só alma e que a isso estamos condenados. Mas sei que, para isso, é necessário deixar passar o tempo.
E assim permitir que a loucura se expanda até ao limite.

Rui Semblano
Porto, Agosto 2003

"This is an alarm-call so wake-up, wake-up now!
Today has never happened and it doesn't frighten me"
(Björk, "Alarm call", in Homogenic, 1997)


nota:
A língua portuguesa, para além de complexa, é muito traiçoeira.

Este texto compõe-se das entradas:
1. Intro - A Democracia, esse mito.
2. Mezzo - Tragédia Comum.
3. Finale - A expansão da loucura.

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