Criança israelita escreve mensagens nas munições de uma posição de artilharia pesada do exército israelita perto de Kiryat Shmona, no norte de Israel, perto da fronteira com o Líbano.17 de Julho de 2006.
Foto Sebastian Scheiner/APIsrael era um sonho.
Depois dos terríveis anos do nazismo, a Terra Prometida era mais do que uma esperança para milhões de judeus europeus deslocados; era a sua única esperança. O porquê deste facto é um mistério - existem muitas explicações para ele, mas nenhuma é suficiente. Terminada a Segunda Guerra Mundial, seria de esperar a reintegração das comunidades judaicas nas suas anteriores localizações, no que se poderia chamar "o regresso à normalidade", mas nada disso aconteceu. Antes do nazismo, existiam pessoas de muitas nacionalidades que partilhavam a religião judaica. Depois do nazismo, passaram a existir judeus sem nacionalidade alguma. Em última análise, Israel é uma criação da ideologia nazi. Talvez isto ajude a perceber a sua forma de ser.
Por um lado, as comunidades judaicas foram de tal modo desenraizadas que pouco ou nada restou das suas estruturas seculares enquanto integrantes das sociedades em que costumavam viver. Por outro, o leste da Europa, dominado pelos soviéticos, tornou-se um lugar pouco menos agreste para os judeus que a Europa sob ocupação nazi, provocando um êxodo que os países do oeste não desejavam. O problema judaico sofria uma metamorfose irónica e algo inesperada. Com base em Londres, a élite sionista preparava há muito o "regresso" à Palestina. Esta pretensão do "regresso" é o equivalente a, digamos, uma hipotética pretensão árabe de regresso à Península Ibérica, o que, aliás, seria mais defensável. A História está cheia de gente que a procura reescrever ao mesmo tempo que a ignora.
O sionismo, "regresso" à Terra Prometida, baseou-se inicialmente em princípios religiosos, mas cedo se tornou claro que existia uma miríade de interesses que convergiam nesse sentido e pouco ou nada tinham a ver com a religião. Aos sionistas que sonhavam com o Eretz Israel, o final da Segunda Guerra Mundial deve ter recordado um certo senhor Sykes e um certo senhor Picot e estimulado a imaginação de um mundo árabe feito de tendas, tapetes e camelos em movimento perpétuo, encarregando-se estas noções deturpadas de amplificar o mito de uma Palestina deserta, à espera dos israelitas. À espera do grande Israel. A reintegração dos judeus na Europa nunca foi seriamente tentada. A bem ou a mal, o destino de milhões de pessoas estava traçado.
Mas será que pessoas nascidas e criadas na Europa (em especial a ocidental) encararam com naturalidade a emigração em massa para a árida, desconhecida e maioritariamente árabe Palestina? Não me parece. Do leste, os judeus mais ortodoxos e menos cosmopolitas seriam um alvo fácil para os inventores da teoria da Terra Prometida, mas aqueles que fizeram as suas vidas em França, na Holanda e em outros países que sofreram a ocupação nazi - e na própria Alemanha! - então livres do nazismo, o motivo para a emigração para a Palestina só poderia transformar-se no salto de fé que, de facto, foi por lhes ter sido demonstrado que essa Europa já não tinha lugar para eles. Afinal, os judeus europeus foram para a Palestina por duas razões: a crença no seu destino (o "regresso" à Terra de David) e a ausência real ou induzida de alternativas (a destruição da sua estrutura social na Europa, em especial nos países do leste).
Os serviços de (des)informação que serviam os interesses sionistas fizeram um trabalho exemplar, no que tratou de convencer os judeus do seu direito à Palestina, convencendo-os até de que esta estaria à sua espera. Estabelecido este princípio, não é de admirar que os judeus chegados à Palestina tenham encarado os árabes que lá se encontravam como aberrações - como invasores, mesmo! - iniciando desde logo planos para contrariar as pretensões destes àquele território que era, afinal, só aquele em que viviam há séculos.
A inegável luta dos judeus contra o Império Britânico, que ocupava a zona como administradora herdeira do senhor Sykes, criou as fundações do que é hoje uma nação em permanente estado de guerra, em contínua luta pela sobrevivência. Isto porque, na realidade, não se tratou da expulsão de um ocupante estrangeiro, mas de um confronto entre dois ocupantes estrangeiros, a que os palestinianos (cristãos, muçulmanos ou judeus) apenas assistiram, com raras excepções, aliás prontamente neutralizadas ou reduzidas pelos sionistas.
Não imagino o que os palestinianos (de todas as origens e credos) pensaram que ia suceder a seguir, mas o certo é que permitiram, em grande parte, que os sionistas recolhessem os créditos pela expulsão dos ingleses e, com isso, quando a bandeira de Sua Majestade foi recolhida pela última vez na Palestina, foi a de Israel que surgiu no seu lugar. Uma bandeira que não deixava lugar a dúvidas: aquela terra era dos judeus. Estava criada a verdadeira aberração: um Estado judaico na Palestina. Então, só faltava expulsar dele todos os árabes.
A estrela de David na bandeira israelita não significa o mesmo que a cruz de Cristo na bandeira norueguesa. Que eu saiba, na Noruega, um muçulmano é um cidadão de pleno direito, não se podendo dizer o mesmo de um que resida em Israel.
(fim da primeira parte)
Rui Semblano
18 de Julho de 2006
O distante Próximo Oriente... (segunda parte)