quarta-feira, julho 19, 2006

O distante Próximo Oriente... (segunda parte)


Se não leu a primeira parte,
pode encontrá-la aqui.






Criança vestida como bombista suicida
durante um comício islamita.
Abril de 2006.

Foto FLICKR/www.flickr.com



Quando hoje alguns falam de Israel como uma ilha de democracia num mar de árabes radicais, esquecem convinientemente que o Estado judaico é tão ou mais fundamentalista que muitos Estados árabes; é um Estado segregacionista e a separação de Estado e religião não é assim tão evidente - Israel foi fundado com base num direito divino, pelo que a religião está na sua génese e orienta e inspira as suas políticas. Israel permanece tão fechado em si mesmo como os países islâmicos, encontrando as mesmas justificações para os seus actos, arrancadas à raíz do tempo e, deturpadamente, aos textos sagrados - tal como fazem os islamitas.

A grande diferença é que, aos poucos, Israel transformou-se no bastião "ocidental" do Próximo Oriente; uma cultura mista de valores ditos "ocidentais" (menos do que se imagina) e de judaísmo (mais do que transparece). No subconsciente europeu e norte-americano, onde estão mergulhadas as noções distorcidas de cristianismo e das cruzadas, de islamismo e de "Jihad", de judaísmo e de Holocausto, um judeu israelita nunca será comparável a um branco sul-africano dos tempos do Apartheid, assim como um palestiniano, árabe e muçulmano, jamais terá a simpatia e a compaixão que de nós obteve o negro sul-africano de então.

Embora as duas situações sejam rigorosamente paralelas (os Boers expulsaram o Império e criaram o seu Estado sobre os direitos e as terras dos africanos - ocupante substitui ocupante), não é assim que entendemos o Médio Oriente. Na África do Sul, os negros e os brancos descendentes dos Boers vivem juntos sob uma só bandeira, tentando resolver os seus inúmeros problemas partindo de um ponto de vista comum e não reescrevendo a História, negando o direito aos que nasceram nesse país a viverem nele. No Médio Oriente, judeus e árabes procuram ainda a supremacia: uma Palestina livre uns dos outros. Nestas circunstâncias, e sem o necessário espírito de sacrifício, os que ainda teimam ser possível viver em conjunto são cilindrados pelos extremos, a cada suicida palestiniano e a cada míssil israelita.

Na nossa visão do problema, distorcida pelas lentes do Holocausto e do radicalismo islâmico, o valente povo israelita continua a sua luta legítima pela sobrevivência contra os ignóbeis e terroristas árabes, e uma foto de um grupo de adolescentes judeus, saudáveis e vestidos de Calvin Klein ou Lacoste, gritando de medo ao som das sirenes que anunciam mais um míssil do Hezbollah, vale mais do que cem fotos dos bairros de Beirute ou de Gaza destruídos pela aviação israelita. No nosso subconsciente, é contra nós, "brancos", "ocidentais" e "democratas", que são lançados os mísseis do Partido de Deus - um Deus terrorista, como todos ficámos a saber desde os cartoons dinamarqueses...

Para mim, porém, não existe diferença alguma entre islamismo e sionismo (ser islamista é diferente de ser muçulmano como ser sionista é diferente de ser judeu). A prová-lo estão as imagens das crianças árabes de armas em punho e as de crianças judias escrevendo mensagens nos obuses que serão disparados contra o Líbano. E sorriem, umas e outras. Ousam os adultos sionistas e os islamitas convencer o mundo de que é por e para estas crianças que fazem a guerra. Os mesmos adultos que recusam, de um e de outro lado, admitir que essas crianças brincariam juntas e em paz se não fossem ensinadas a odiar. A odiar em nome de Deus, naturalmente.
O do Hezbollah ou o de Israel. Dá no mesmo.

Rui Semblano
18 de Julho de 2006

O distante Próximo Oriente... (primeira parte)

terça-feira, julho 18, 2006

O distante Próximo Oriente... (primeira parte)







Criança israelita escreve mensagens nas munições de uma posição de artilharia pesada do exército israelita perto de Kiryat Shmona, no norte de Israel, perto da fronteira com o Líbano.
17 de Julho de 2006.

Foto Sebastian Scheiner/AP




Israel era um sonho.
Depois dos terríveis anos do nazismo, a Terra Prometida era mais do que uma esperança para milhões de judeus europeus deslocados; era a sua única esperança. O porquê deste facto é um mistério - existem muitas explicações para ele, mas nenhuma é suficiente. Terminada a Segunda Guerra Mundial, seria de esperar a reintegração das comunidades judaicas nas suas anteriores localizações, no que se poderia chamar "o regresso à normalidade", mas nada disso aconteceu. Antes do nazismo, existiam pessoas de muitas nacionalidades que partilhavam a religião judaica. Depois do nazismo, passaram a existir judeus sem nacionalidade alguma. Em última análise, Israel é uma criação da ideologia nazi. Talvez isto ajude a perceber a sua forma de ser.

Por um lado, as comunidades judaicas foram de tal modo desenraizadas que pouco ou nada restou das suas estruturas seculares enquanto integrantes das sociedades em que costumavam viver. Por outro, o leste da Europa, dominado pelos soviéticos, tornou-se um lugar pouco menos agreste para os judeus que a Europa sob ocupação nazi, provocando um êxodo que os países do oeste não desejavam. O problema judaico sofria uma metamorfose irónica e algo inesperada. Com base em Londres, a élite sionista preparava há muito o "regresso" à Palestina. Esta pretensão do "regresso" é o equivalente a, digamos, uma hipotética pretensão árabe de regresso à Península Ibérica, o que, aliás, seria mais defensável. A História está cheia de gente que a procura reescrever ao mesmo tempo que a ignora.

O sionismo, "regresso" à Terra Prometida, baseou-se inicialmente em princípios religiosos, mas cedo se tornou claro que existia uma miríade de interesses que convergiam nesse sentido e pouco ou nada tinham a ver com a religião. Aos sionistas que sonhavam com o Eretz Israel, o final da Segunda Guerra Mundial deve ter recordado um certo senhor Sykes e um certo senhor Picot e estimulado a imaginação de um mundo árabe feito de tendas, tapetes e camelos em movimento perpétuo, encarregando-se estas noções deturpadas de amplificar o mito de uma Palestina deserta, à espera dos israelitas. À espera do grande Israel. A reintegração dos judeus na Europa nunca foi seriamente tentada. A bem ou a mal, o destino de milhões de pessoas estava traçado.

Mas será que pessoas nascidas e criadas na Europa (em especial a ocidental) encararam com naturalidade a emigração em massa para a árida, desconhecida e maioritariamente árabe Palestina? Não me parece. Do leste, os judeus mais ortodoxos e menos cosmopolitas seriam um alvo fácil para os inventores da teoria da Terra Prometida, mas aqueles que fizeram as suas vidas em França, na Holanda e em outros países que sofreram a ocupação nazi - e na própria Alemanha! - então livres do nazismo, o motivo para a emigração para a Palestina só poderia transformar-se no salto de fé que, de facto, foi por lhes ter sido demonstrado que essa Europa já não tinha lugar para eles. Afinal, os judeus europeus foram para a Palestina por duas razões: a crença no seu destino (o "regresso" à Terra de David) e a ausência real ou induzida de alternativas (a destruição da sua estrutura social na Europa, em especial nos países do leste).

Os serviços de (des)informação que serviam os interesses sionistas fizeram um trabalho exemplar, no que tratou de convencer os judeus do seu direito à Palestina, convencendo-os até de que esta estaria à sua espera. Estabelecido este princípio, não é de admirar que os judeus chegados à Palestina tenham encarado os árabes que lá se encontravam como aberrações - como invasores, mesmo! - iniciando desde logo planos para contrariar as pretensões destes àquele território que era, afinal, só aquele em que viviam há séculos.
A inegável luta dos judeus contra o Império Britânico, que ocupava a zona como administradora herdeira do senhor Sykes, criou as fundações do que é hoje uma nação em permanente estado de guerra, em contínua luta pela sobrevivência. Isto porque, na realidade, não se tratou da expulsão de um ocupante estrangeiro, mas de um confronto entre dois ocupantes estrangeiros, a que os palestinianos (cristãos, muçulmanos ou judeus) apenas assistiram, com raras excepções, aliás prontamente neutralizadas ou reduzidas pelos sionistas.

Não imagino o que os palestinianos (de todas as origens e credos) pensaram que ia suceder a seguir, mas o certo é que permitiram, em grande parte, que os sionistas recolhessem os créditos pela expulsão dos ingleses e, com isso, quando a bandeira de Sua Majestade foi recolhida pela última vez na Palestina, foi a de Israel que surgiu no seu lugar. Uma bandeira que não deixava lugar a dúvidas: aquela terra era dos judeus. Estava criada a verdadeira aberração: um Estado judaico na Palestina. Então, só faltava expulsar dele todos os árabes.
A estrela de David na bandeira israelita não significa o mesmo que a cruz de Cristo na bandeira norueguesa. Que eu saiba, na Noruega, um muçulmano é um cidadão de pleno direito, não se podendo dizer o mesmo de um que resida em Israel.

(fim da primeira parte)

Rui Semblano
18 de Julho de 2006

O distante Próximo Oriente... (segunda parte)