terça-feira, setembro 23, 2003

Powell is nothing without control


A missiva do Secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, reproduzida no Público de hoje, é tristemente patética.
(Público, 22Set2003, p.12, "O tempo que for preciso")

É, de novo, o "uncle Tom" (1) quem vem à praça pública defender o seu "amo". As suas palavras, porém, que duvido tenha escrito, demonstram bem o desespero em que Washington está prestes a cair - se não caiu já.
Não creio que as tenha escrito ele próprio porque o desconforto corporal evidenciado por Colin Powell ao fazer declarações desta ordem é semelhante ao que demonstrou quando G. W. Bush anunciou ao mundo que seria ele o mensageiro que revelaria na ONU as "provas irrefutáveis" que serviriam para justificar a invasão do Iraque, por ocasião do discurso do Estado da União, em Janeiro deste ano. Esse desconforto foi evidente a 5 de Fevereiro de 2003 (os grandes planos dos papeis que Colin Powell lia ao Conselho de Segurança da ONU foram impiedosos) e tem-se mantido, mesmo agravado, desde então.

Como se explica que um homem como Colin Powell escreva que esteve no Iraque e considera "bom" o plano dos comandantes norte-americanos para contrariar a crescente vaga de ataques às suas forças, quando ao mesmo tempo (no Público, na mesma página, mesmo ao lado!) vemos um "presidente" Bush de chapéu na mão, quase implorando que a comunidade internacional o ajude? (2)

Como se explica que Colin Powell persista no erro crasso que é identificar as forças que atacam os norte-americanos e britânicos como inimigas do "mundo ocidental"?

Como se explica que Colin Powell use a vala comum de Halabja e os seus 5.000 corpos, enterrados em solo kurdo, para demonstrar a justiça da intervenção norte-americana, quando foi um sorridente Donald Rumsfeld que a cavou, ombro a ombro com Saddam Hussein? (3)

E, principalmente, como pode Colin Powell cair na asneira de ir buscar argumentação outrora usada pela administração de John F. Kennedy e pela de Lyndon Johnson para definir o tipo de empenhamento dos EUA no Vietname?

"Por quanto tempo vamos ficar no Iraque? Ficaremos o tempo que for necessário para entregar toda a responsabilidade da governação do Iraque a uma administração democraticamente eleita". (...) "O povo iraquiano (...) deve receber os instrumentos e o apoio para construir uma democracia pacífica e próspera. Não merece menos que isso."
Colin Powell, Setembro 2003
"As pessoas que dizem que devíamos retirar do Vietname estão completamente erradas, porque se retirarmos do Vietname, os comunistas irão controlar o Vietname.(...)"
John F. Kennedy, Setembro, 1963 (4)
"Não queremos um conflito alargado com consequências que ninguém consegue prever. Nem vamos exorbitar o nosso poder. Mas não nos renderemos. E não vamos retirar."
Lyndon B. Johnson, Julho, 1965
"Independentemente de qualquer ideologia nossa, ou de quem quer que seja. Daremos [aos vietnamitas] o direito de escolha. E se fizermos isso, regressaremos a casa amanhã."
Lyndon B. Johnson, Agosto, 1965

Tanta desinformação e propaganda são demasiado para o punho de Colin Powell. E são demasiado para qualquer cidadão minimamente consciente, mesmo que não minimamente informado. Resta saber se, como nos "anos bons" da relação de Washington com Saddam Hussein, os "instrumentos" do "novo arsenal da democracia" serão, também, postos à disposição do Iraque.

Rui Semblano
Porto, 22 de Setembro de 2003



(1) "Uncle Tom's Cabin", or, "Life Among The Lowly"; Harriet Beecher Stowe; Boston: John P. Jewett & Company 1852 (Dados da primeira edição; em Portugal: "A cabana do pai Tomás")

(2) Por via das dúvidas, a Índia, um dos primeiros países a aceder ao pedido de envio de tropas, já não vai mandar ninguém para o Iraque. Dizem os indianos que têm problemas em Caxemira... É que, realmente, isso já eles têm de sobra, em casa, e só "depois da guerra acabar", a 1 de Maio, os EUA já arranjaram mais 165 "problemas".

(3) Enquanto ao serviço da administração Reagan, Donald Rumsfeld era a ligação de Washington com Saddam Hussein. A julgar por registos visuais da época, eram grandes amigos.

(4) O prelúdio da "Teoria do dominó"
"...These people who say that we ought to withdraw from Vietnam are wholly wrong, because if we withdrew from Vietnam, the Communists would control Vietnam. Pretty soon Thailand, Cambodia, Laos, Malaya would go, and all of Southeast Asia would be under the control of the Communists and under the domination of the Chinese..."
(JFK, September 2, 1963)


nota:
Por via das dúvidas, e para evitar "peixeiradas" desnecessárias, convém esclarecer que considero os casos do Vietname e do Iraque diferentes.
Basta saber que o Congresso norte-americano nunca aprovou a guerra dos EUA na Indochina, ao passo que agora votou a intervenção no Golfo favoravelmente.
Além disto, com a excepção de que se trata de uma intervenção militar norte-americana, interferindo na política interna de um país soberano, que não atacou os EUA, situado a milhares de quilómetros da América do Norte e com o objectivo primeiro de a defender e a todo o "mundo ocidental", não existe semelhança nenhuma entre Bagdad e Hanói.

nota2:
Fontes JFK e LBJ:
WGBH Educational Foundation - Vietnam: A television history.

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