domingo, setembro 28, 2003

O medo

Em um pequeno filme animado integrado em Bowling for Columbine, de Michael Moore, é mostrada a história dos EUA em cinco minutos. Nesse pequeno trecho de animação está representado não só o fundamento da sociedade norte-americana, mas de todo o chamado "mundo ocidental".
Se os EUA são o zénite da sociedade obcecada por mais segurança, a Europa, em particular a ocidental, começa a aproximar-se deles, neste campo.

Não temos o equivalente ao USA/PATRIOT act, mas existe legislação que implementa muitas medidas que lesam os direitos e liberdades individuais dos europeus, criada após o 11 de Setembro de 2001, que tem a ver com a procura de "mais segurança", quer a nível da UE como a nível nacional.

Mais sofisticados que os norte-americanos, os europeus adeptos desta filosofia agorafóbica procuram ir além da inoculação do medo de agentes externos, como os imigrantes, os terroristas, os "selvagens" e os "infiéis". A sublimação desta filosofia, na Europa ocidental, consiste em incutir no subconsciente social um medo mais sombrio e feio: o medo dos seus próprios cidadãos.

Temos de sentir medo das "frotas de autocarros" que os "mártires" de Allah se preparam para fazer explodir por toda a Europa connosco lá dentro, mas temos, sobretudo, de sentir medo dos nossos vizinhos que descem à rua para se manifestar contra o poder. E mais medo ainda temos de sentir se o fizerem sem insígnias, como simples cidadãos sem ligações a estruturas controladas pelo poder, ele mesmo.

O objectivo é inteligente.
Como pode uma manifestação repleta de bandeiras de uma qualquer organização sindical, por exemplo, ameaçar o poder, quando este a controla? Qualquer que seja a importância de tal manifestação e a justiça das suas reivindicações, tudo será decidido em torno de uma mesa afastada da cena pública, quase sempre frustrando as expectativas dos manifestantes. São, dirão os responsáveis pela manifestação, os resultados possíveis.
Mas como controlar cidadãos que se mobilizam à margem das estruturas do poder?
O que querem não é o problema. O problema é com quem pode o poder negociar um "resultado possível"? Tais manifestações são consideradas abomináveis pelos arautos da "civilidade", isto é, da manutenção do seu poder.
A escolha destes exemplos, entre muitos possíveis, faz lembrar as palavras "avisadas" de um notório "opinion maker"; e não por acaso. Como outros "pseudo-intelectuais", esse senhor tudo tem feito para contrariar o movimento natural da história, na tentativa de evitar, em última análise, que esta o cilindre.

A expressão máxima do desespero que já atinge os esforços destes "pseudo-intelectuais" foi a sua reacção às manifestações mundiais contra a recente invasão do Iraque. Tentando, inutilmente, não cair no ridículo, vários deles procuraram fazer crer que esses milhões de manifestantes (a maior parte dos quais sem identificação partidária) eram antiamericanos radicais que se tinham rebolado de prazer com a queda do World Trade Center. À falta da URSS, tentaram colar boa parte desses manifestantes a organizações que a apoiaram no passado e, em busca de uma memória mais fresca, chegaram mesmo a aproveitar a simpatia de muitos deles pelas causas dos povos cubano e palestiniano para acenar os espectros do castrismo e do terrorismo, pretensamente escondidos atrás de cada bandeira branca.

Apesar de ridículos, os seus esforços têm resultado parcialmente, fruto de uma enraizada mentalidade pequeno burguesa em todas as sociedades do "primeiro mundo" e do egoísmo facilmente exorbitável em cada um de nós.
Começamos a ter medo, muito medo, de nós próprios. Veja-se a proliferação de condomínios fechados de alta segurança por toda a Europa. (1)

A "soma de todos esses medos", intrínsecos e extrínsecos, tem como finalidade chegar, rapidamente, aos níveis de ansiedade social atingidos nos EUA.
Sobre a actual situação nos Estados Unidos, pode dizer-se que ela "é um tributo aos empreiteiros militares e aos leaders políticos que tomaram as rédeas do poder instilando o medo na populaça. Isto pode ser detectado, em grande medida, em patrocinadores de campanhas políticas e em lobbies influentes, mas o problema encontra-se ainda mais fundo. O medo penetrou profundamente nas raízes da cultura." (2)

O mesmo processo está a decorrer na Europa, orientado por sectores com idênticos interesses. Tal está a ser realizado através de discretas, mas eficazes, máquinas de propaganda, algumas instaladas aqui mesmo, na blogosfera, que incansavelmente procuram incutir-nos esse cancro. Esse nojo. Esse medo.

Não há razão para ter medo.
Não somos poucos ou pequenos. Se alguns vos parecem enormes e poderosos é porque estais de joelhos. Levantai-vos.
Ou outros por vós se levantarão.


Rui Semblano
Vila Nova de Gaia, 28 de Setembro de 2003


(1)
ver "Des «villes privées» pour les riches Français"
por Hacène Belmessous
Manière de Voir, número 71, Outubro/Novembro 2003
(edição Le Monde Diplomatique)


(2)
in "Other options", de 27Set2003
por Russel Mokhiber e Robert Weissman
(Znet Commentary)



nota:
Aos interessados, A Sombra enviará por e-mail o extracto de animação relativo à história dos EUA, tal como foi visto em Bowling for Columbine. Basta contactar-nos para o efeito.

nota2:
Não deixemos nada ao acaso.
O "pseudo-intelectual" destacado é o autor do Abrupto, como deve ser evidente, mas não surgia identificado.
Democracy is a bitch. Isn't she.