sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Ponto final

O excelente artigo de Jorge Almeida Fernandes, no Público de hoje, analisa as várias vertentes do caso dos cartoons dinamarqueses de forma exemplar.

Aqui fica na íntegra. Acalmem-se, burgueses.

(quote)
O turbante de Maomé
Jorge Almeida Fernandes

Para lá da tempestade no mundo muçulmano, as caricaturas de Maomé são um assunto europeu, nosso. Em nome da liberdade de expressão, o jornal conservador dinamarquês Jyllands-Posten quis testar a resistência do islão à "blasfémia". Além de casos de mau gosto - apreciação subjectiva - os cartoons associam directa ou subliminarmente o profeta ao terrorismo. É legítimo? Uma parte dos editorialistas europeus defende o "direito à blafémia" como parte integrante da liberdade de expressão, que não pode ter limites senão na lei e no recurso aos tribunais. Excelente.

Amálgama racista
A Europa não tem de obedecer ao interdito muçulmano de representar o Profeta ou Allah. É uma questão teológica que não diz respeito ao mundo cristão. É outra a "nossa" questão: o insulto a uma comunidade religiosa ou civilizacional. "É difícil acreditar que os directores de um diário europeu não tenham sofisticação intelectual e cultura histórica para perceber que desenhar o Profeta como terrorista constitui um insulto maior", escreve o Jordan Times. Esta mesma amálgama é feita, após o 11 de Setembro, por pregadores evangélicos americanos de extrema-direita, como Pat Robertson. Não é colocada a bomba no turbante dum chefe do Hamas, mas no do Profeta. Por isso todos os muçulmanos são visados - obscurantistas ou terroristas. O racismo começa aqui. O direito à sátira "termina no ponto em que se torna provocação ou desprezo do outro", lembra o grande rabino de França, Joseph Sitruk. E, acrescenta Kofi Annan, deve respeitar a religião, um domínio explosivo.Eis a primeira hipocrisia do Jyllands-Posten: se tivesse testado a comunidade judaica com idêntica provocação, mostrando por exemplo Moisés a maltratar um palestiniano, seria imediata e universalmente condenado por anti-semitismo. Os judeus têm "tolerância zero" nesta matéria.A segunda hipocrisia é social: as sociedades ditas multiculturais do Norte da Europa pouco se incomodam com o facto de parte dos seus cidadãos ou imigrantes muçulmanos não cumprirem algumas leis básicas dos Estados em que vivem. É uma versão prática e racista da "tolerância".

Hipocrisia árabe
Que aconteceu? Imãs, ulemas e grupos islamistas radicais recuperaram o tema. A União Internacional dos Ulemas Muçulmanos apelou ao boicote dos produtos dinamarqueses e noruegueses. Outros ameaçam os militares dinamarqueses no Iraque. Os governos foram forçados a seguir o apelo da "rua árabe". A Arábia Saudita chamou o seu embaixador em Copenhaga e lidera a "indignação" dos crentes. "Estas caricaturas são islamófobas. Elas dividem as pessoas e apenas consolidam os muçulmanos mais radicais", declara à AFP o analista árabe Malek Chebel. É isto, e apenas isto, o que os europeus devem reconhecer e denunciar. De resto, diz Chebel, a reacção dos dirigentes árabes é "hipócrita" e visa dissimular a sua própria "torpeza". O mesmo se diga dos islamistas. Um dos mais virulentos denunciadores "da canalha que insulta o Profeta Maomé na Dinamarca" é o chefe do Hezbollah libanês, Hassan Nasrallah. Ora, a sua televisão, Al-Manar, notabiliza-se pelo mais execrável racismo, figurando os judeus com focinho de porco. Há igualmente muçulmanos corajosos, como Jihad Momani, que publicou três dos cartoons no jornal al-Shihan, de Amã, para que os muçulmanos tenham noção da dimensão do caso. Pergunta em editorial: "Que fere mais o islão, estas caricaturas ou as imagens de um raptor de reféns que degola as vítimas perante as câmaras, ou ainda um kamikaze que se faz explodir durante um casamento em Amã?" A 6 de Janeiro, o primeiro-ministro dinamarquês, Anders Rasmussen, teve de escrever à Liga Árabe dizendo que não podia interferir na liberdade de expressão, mas condenando "qualquer acção ou palavra que tentem diabolizar certos grupos em função da sua religião ou pertença étnica". Hoje, os dinamarqueses têm medo e perdem dinheiro. Esperemos que evitem o pior e não se ajoelhem perante os islamistas.

Irresponsabilidade
Ter moral para discutir com o islão exige que a Europa seja exemplar na sua crítica. Mas está algo doente. Tem tentado resolver a questão das opiniões "racistas" ou "negacionistas" por uma indefinida criminalização, que leva a casos absurdos, como o do orientalista Bernard Lewis, há anos simbolicamente condenado por um tribunal francês por pôr em causa a qualificação do massacre dos curdos em 1916 como genocídio. O problema é outro. Cada vez mais os europeus conhecem direitos e ignoram a ética da responsabilidade, que manda pensar na consequência dos nossos actos, mesmo quando usamos as mais fundamentais liberdades. O Jyllands-Posten quis educar os "seus" muçulmanos na liberdade de expressão. Prestou um serviço ao pior islamismo. Porque ele próprio foi, sem o saber, profundamente islamófobo.
(unquote)

Público, 3 de Fevereiro 2006

One more...

O Cinema para Indígenas está actualizado.
Este já devia ter visto, mas foi só agora.

nota:
E tem a ver com o que passa em Shadow's Mood, aqui ao lado.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Out of fear and respect...



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Neste espaço, algumas considerações sobre uma das
discussões do momento, a propósito deste assunto
(cortesia de jcd - Blasfémias):

Não nos sequestrem.

Entrada completa.





Eu já não me dava muito bem com a minha vizinha, que é daquelas beatas que vai à missa todos os dias e que sabe de cor todos os salmos, rezas e a história de todos os santinhos, mas perdi a pachorra.

Ela sabe que eu não acredito em nada dessas merdas, mas como mora mesmo em frente a mim, ela no primeiro direito e eu no primeiro esquerdo, tenta manter um clima de civilidade que me soa algo falso, porque é mesmo. Quando nos cruzamos, se for absolutamente impossível fazer de conta que não me vê, como quando me encontra dentro do prédio, lá me cumprimenta, mas é só e era assim que eu gostava. Quanto a mim, até por questões de condomínio, sempre evitei cortar relações por completo, mas agora foi demais.

Ontem, atingi o limite.
Então não é que chego a casa e dou com ela a conversar com o meu filho nas escadas? A conversa morreu ali mesmo, mas quando o miúdo me disse que ela estava a tentar convencê-lo a ir à catequese, passei-me! Fui bater-lhe à porta e, quando a abriu, berrei-lhe que me estava a cagar para a religião dela, que ela era um anacronismo (lixei-a com esta), que não a queria ver mais de volta do meu filho e que o Papa era um filho da puta.
O marido dela, que até me parecia um tipo tranquilo, veio a correr à porta ver o que se passava e eu aproveitei para lhe dar logo um valente estalo no focinho, que eles não me assustam. Aliás, era o que me estava a apetecer dar à estúpida da mulher dele, mas não podia, que eu não bato em mulheres!

A fulana, então, começou a gritar que era a liberdade de expressão dela que estava em causa e que podia dizer o que lhe apetecesse a quem lhe apetecesse, mas eu berrei-lhe mais alto que ela estava a confundir liberdade de expressão com liberdade religiosa e que o Papa era mesmo um filho da puta.
Nessa altura deu-lhe um amok e caiu para o lado, o marido levou-a para dentro de casa e eu fui a correr imprimir em formato A2 aquele cartoon do António com o preservativo no nariz do filho da puta do Papa, que por acaso até já morreu, e espetei-o do lado de fora da minha porta, mesmo em frente à dela.

Sempre quero ver se tem a lata de o tirar. Aí é que vai ser! Leva o marido, leva ela e leva quem mais me quiser privar do meu direito à liberdade de expressão.
Além do mais, o Papa é mesmo um filho da puta.

Rui Semblano


nota:
Se não perceberam, paciência. Não desenho.

Little Nations



"America wins the wars she undertakes, make no mistake about it. And we have declared war on tirany and agression. If this little country goes down the drain and can't maintain it's independence, ask yourselves what is going to happen to all the other little nations."

The President of the United States



Vasco Pulido Valente estabelece um paralelo entre os brutais aumentos do Estado-Providência das administrações L. B. Johnson e G. W. Bush. É um paralelo interessante e cheio de significado.
Será coincidência?
Não me parece. Espantar burgueses sempre foi prerrogativa dos neoliberais.

nota:
As palavras que transcrevi acima são de LBJ ou GWB? Adivinhe.

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Complete Idiot's Guide no. 5


Lista completa
de Complete Idiot's Guides d'A Sombra

algures na coluna da direita
8





"Com vossa licença, uma observação sobre o liberalismo. Em percentagem do PIB, a sra. Thatcher aumentou, não diminui, a despesa com o Estado-Previdência. E não aumentou pouco, aumentou muito. George W. Bush, o próprio, foi, depois de Lyndon Johnson e da "Grande Sociedade", o presidente que aumentou mais, também em percentagem do PIB, a despesa com o Estado-Previdência. (...)"

(Vasco Pulido Valente in Liberalismo)

Regra # 39: Não ser demasiado previdente.
Regra # 45: Demasiada previdência é má, mas necessária.
Regra # 100: Em desespero, invocar o acordo ortográfico.

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Alfred!

Aguarda-se a chegada do quarto Alfredo
para responder ao segundo Rui Semblano.

A propósito disto.

nota:
Adoro entradas encriptadas!

Backtracking n. 3/06



Sequência de comentários sobre
a chegada de Vasco Pulido Valente
a
O Espectro, editadas numa das suas entradas,
mas não a propósito dela:



(quote)
1.
RS said...
E, de repente, o singular no nome deste blog perde sentido.

Ou o sentido do seu singular nome ganha uma nova dimensão.
nota:
Quanto a providenciar o "previdente", estamos esclarecidos, ou melhor, providenciados.
:)

2.
Unreconstructed said...
Caro rs: o nome deste blog é tão singular quanto a sua ignorância do Rodrigues Sampaio.


3.
RS said...
Caro unreconstructed,
Sinceramente, o espectro do Rodrigo (1) Sampaio (e entenda-o romanticamente, se conseguir) não me parece inspirar este blog, o que não significa que tenha inspirado o seu baptismo.

Mas pronto. Serão singularidades desreconstrutivistas (um neoneologismo rival do seu pseudónimo) que nos ultrapassam a ambos, não tenha dúvida.
E nem o Rodrigo (1) nem o seu espectro ou, já agora, o seu Espectro, têm nada que ver com o meu comentário mais acima.

Descomplique; que é como quem diz: Desreconstrua.
:)
Um abraço,

RS

(Unquote)

nota:
Era o que faltava, ser só o "unreconstructed" a tratar o Rodrigo (1) por tu!
E, quanto a vpv, o "Estado-Previdência" mantém-se. Direitinho.


nota 2:
(1) Ora bolas... Logo havia de estar a pensar num Rodrigo (se calhar pelas Cruzadas) quando respondi ao "unreconstructed"... mas "as coisas são como são". E aqui não há rolhas. Fica o registo com a sua gralha, bem marcada, para a posteridade. :)

nota 3:
Já tentei imaginar o "unreconstructed" de lingerie, mas não. Deve ser gajo, mesmo. :)

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Dog(tag)Mood

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De acordo com o Credo, a disposição
alterou-se significativamente.
Também tem a ver com a digestão
do Estado da União de hoje de madrugada...

3Aqui mesmo.

Kanye West - Jesus Walks With Me - Jarhead Soundtrack

State of the Union . 2006 . GWB


Os Republicanos aplaudem de pé a proposta
de tornar os cortes nos impostos permanentes,
enquanto muitos Democratas torcem o nariz...

Claro que há o Iraque, o Hamas e o Irão, mas hey, vamos ter carros a hidrogénio, fusão nuclear e mais Segurança Social. Que tal?

WTF?...


Entrada actualizada abaixo. Posted by Picasa


Os EUA são um país em guerra.
Não a dita "guerra contra o terror", mas uma guerra real, tanto como o foram a Coreia ou o Vietname. Sem confundir o Iraque com a Indochina, as semelhanças, ou as diferenças, podem ser encontradas não na frente de batalha, mas na interna. O discurso de hoje de madrugada de George W. Bush sobre o Estado da União é o espelho dessa relação. Basta pensarmos nos discursos de Truman e Johnson para vermos que, para G. W. Bush como para grande parte dos norte-americanos, a guerra é algo distante e aborrecido, que apenas demora mais do que o previsto a resolver, mas cujo desfecho é inequívoco ("we are in this fight to win and we are winning!"). Wishful thinking...

O discurso foi feito em duas partes e meia, sendo a "meia" estrategicamente colocada "a meio", como transição da guerra/plano externo para a situação interna dos EUA.

Na primeira parte, a análise optimista do conflito no Iraque a que a administração de G. W. Bush já nos habituou; salpicada de lamechice desnecessária quando a causa de uma guerra é nobre, mas tão abusada quando é perversa. A presença de veteranos desta guerra na sala, a leitura (teleponto/s) de uma carta escrita por um soldado antes de morrer, com os respectivos pais e irmã na sala... Foi demasiado baixo. Mas passa. Sobretudo nos EUA, onde é preciso, acima de tudo, não desmoralizar as tropas.

Na "ponte", um breve referência à "democratização" dos países árabes, sem mencionar a Palestina, que mereceu um parêntesis onde também coube o Irão. Ambos "têm de desarmar-se"; o primeiro convencionalmente e o segundo... Bom, preventivamente.

Na segunda parte, a situação interna. Toda a gente sabe como esta administração desbaratou o superavit herdado, transformando-o no pior déficit de que há memória nos EUA. Apesar disso, G. W. Bush anunciou um série de medidas que, a serem confirmadas, agravarão ainda mais a situação económica dos EUA; embora produzam desmesurada riqueza, esta não será pública, mas muito, muito privada. O pedido da manutenção dos cortes nos impostos foi expresso com uma satisfação no rosto de G. W. Bush que só o vazio no seu olhar igualou... Foi patético.
Estas medidas, porém, não são concretas, isto é, o que foi proposto - para a Educação, a Juventude, a Energia, a Segurança Social, etc. - foi a formação de comissões especializadas, constituídas por membros dos dois partidos, Republicanos e Democratas. Nesse aspecto, o nosso Sócrates nada tem a aprender, bem pelo contrário.

Objectivo?
Fazer passar uma imagem de solidez e confiança, de um governo apostado no bem estar dos seus cidadãos, aberto ao diálogo interno e externo.
Resultado?
Promessas, promessas e mais promessas.
Como diria um norte-americano: Bulshit.

O pior discurso do Estado da União que me lembro de ter ouvido. E visto (*).

Rui Semblano

(*)
Os dois telepontos fizeram com que o presidente parecesse seguir um jogo de ténis. Pior que isso, foram inúmeras as vezes em que... perdeu a bola. O homem deve ser o maior pesadelo do serviço de Relações Públicas da Casa Branca desde Ronald Reagan...

Credo.



This is my rifle.
There are many like it, but this one is mine.
My rifle is my best friend. It is my life.

I must master it as I must master my life.
My rifle without me is useless. Without my rifle, I am useless.
I must fire my rifle true.

I must shoot straighter than my enemy who is trying to kill me.
I must shoot him before he shoots me. I will...
My rifle and myself know that what counts in war is not the rounds we fire,
the noise of our bursts, nor the smoke we make.
We know it is the hits that count. We will hit...

My rifle is human, even as I, because it is my life.
Thus, I will learn it as a brother.
I will learn its weaknesses, its strengths, its parts, its accessories,
its sights, and its barrel.
I will ever guard it against the ravages of weather and damage.
I will keep my rifle clean and ready, even as I am clean and ready.
We will become part of each other. We will.

Before God I swear this creed.
My rifle and myself are the defenders of my country.
We are the masters of our enemy. We are the saviors of my life.
So be it, until there is no enemy, but peace.


My Rifle . The Creed of a United States Marine

terça-feira, janeiro 31, 2006

Fantasconto 2000 . The Exorcist




Fantasporto 2000
Inspirado em
The Exorcist
e depois de ver Three Kings (encerramento Fantas 2000)


Rivoli teatro municipal
4 de Março de 2000
terceiro fantasconto


Foto: RS / Cheia no Douro . Porto/Gaia



Os fantasmas que habitavam o seu quarto regressavam para a ocasião; podia senti-los, não só a sua presença, como sentimos a presença das pessoas que partilham connosco um mesmo espaço, mas o seu cheiro. O cheiro dos espectros.

Havia um particularmente curioso acerca da sua máscara fluorescente do Scream, pousada sobre a cómoda, e outro tentava sem sucesso colocar a luva de Freddy Krugger, com lâminas de plástico. Outro, não tirava os olhos das chaves do automóvel. Ele já tinha descalçado um sapato e observava-os, sentado na cama. Ok. Vamos lá. Calçou-se de novo e ergueu-se, agarrando o maço de Luckies, o Zippo e as chaves do carro. Saiu de casa, desceu as escadas e chegou à rua. Havia nevoeiro, denso, como sempre era naquela zona da Serra do Pilar. Como tantas vezes acontecia, só na sua zona havia nevoeiro; a mortalha preferida dos seus fantasmas.

O alarme do carro deu sinal, assinalando a sua presença pelo brilho alaranjado dos piscas por entre a névoa. Quando se sentou ao volante, os outros já lá estavam, cada um no seu lugar.
- Buckle up, fellas.
Eles obedeceram sem hesitar. Quando alguém como ele, no lugar do condutor, diz para pôr o cinto de segurança obedece-se sem pestanejar - e reza-se; mesmo que se seja um fantasma.
A chave rodou na ignição e o 16 válvulas roncou. Saíu do estacionamento. Sabia exactamente onde terminava o manto de nevoeiro. Desceu até à avenida, entrando nela sem ligar ao sinal vermelho, calmamente, no meio da neblina, depois acelerou em direcção à ponte D. Luís. A entrada na ponte é sempre complicada com nevoeiro cerrado, e há sempre a possibilidade de um autocarro vir em sentido contrário um pouco fora de mão, de mínimos acesos.

Tocaram o asfalto do tabuleiro superior da ponte D. Luís às quatro horas e vinte e dois minutos da manhã, envoltos em névoa espessa, a cento e cinquenta quilómetros por hora. O fantasma que seguia no lugar do morto já estava com o pé dentro do motor, de tanto carregar no travão imaginário.
E era só o início.
As duas marginais. Desde sempre eram o seu circuito preferido àquela hora da madrugada. Alguns dos fantasmas conheciam bem o trajecto. Um deles mexeu-se um pouco no assento.

A marginal do Porto.
Infante-Foz. Complicada, escorregadia, trilhos de eléctrico, paralelo, asfalto, buracos, curvas cegas, rails, o rio. Seria a primeira. O automóvel saíu do nevoeiro exactamente à entrada no Porto. Saída da ponte, os oitenta cavalos do inferno resfolegando, os cascos faiscando no alcatrão da Invicta. Atingiram o Infante em três minutos. Seleccionou o CD autografado por Danny Elfman e rodou o volume até ao 17. Iam rolar cabeças.

Na Alfândega da Ribeira apanhou um Golf GTi cheio de macacos com uma cassete de Ana Malhoa aos berros. Varreu-os com os máximos e quase roçou retrovisores ao ultrapassá-los. Uma olhadela ao espelho interior confirmou o que esperava. Um gingar de luzes indicava uma redução do Golf. Os grunhóides, claramente, aceitavam o desafio. Ainda se mantiveram colados a ele por um bocado; até à primeira curva cega. Dois pneus sobre os trilhos do eléctrico, redução falhada, slide, atravessamento, rails - Bang! - rotação sobre o eixo horizontal e queda invertida no rio. Artistic impression: 200 points.

130 Km/h à entrada do Passeio Alegre, puro slide show, contrabrecagem perfeita, 180 antes da curva do Twin's, redução semidirecta 5ª-4ª-2ª (ai! - entrou), 90, curva, 3ª, 120, curva contracurva, o forte, relevé invertido, 4ª, 145, opção: marginal ou interior, marginal ou interior, 3ª, 120, marginal, fundo, relevé invertido dois, paralelo para asfalto, tracção. Menos fantasmas dentro do automóvel. Ganhar a Boavista e a Arrábida. Passou para Gaia e desceu à Afurada.

A marginal de Gaia.
Afurada-Ponte D. Luís. Estreita, manhosa, altos no pavimento, 3/4 em paralelo, uma discoteca, uma zona de piso molhado permanente, rails, 70% dois sentidos à rasca, 30% só passa um, curvas de 95 e 100 graus. Muito interessante. O rio a dois palmos. Sem margem de erro. Ninguém na rua, uma olhadela ao retrovisor e um só espectro no banco de trás, mais branco que o usual. 5 minutos e 17 segundos ponte a ponte.

Subiu General Torres até à avenida, mergulhou de novo no nevoeiro, entrou na sua rua e estacionou exactamente no lugar que há pouco deixara. Estava só. Accionou o alarme e foi para casa. Sentou-se na cama, pousando o maço de tabaco e as chaves do carro na mesinha de cabeceira, e descalçou um sapato. Olhou o Lucky. Tirou o "Our Century" da bolsa de couro que trazia no cinto, e olhou em volta. Não cheirava um único fantasma. Ainda com um sapato calçado, acendeu um cigarro, pousando o Zippo de 1901 a 2000 sobre o maço. Eram quatro horas e cinquenta. Aspirou o fumo profundamente.

Não fumara no automóvel.
Queria manter o cheiro a novo o mais possível.
Ghost free.

Rui Semblano
The Exorcist - Fantas 2000


Nota:
Daqui até ao Fantas deste ano, editarei uma selecção dos meus Fantascontos, que escrevo a cada edição que vou, um por ano. Todos seriam demasiados. :) Poderão encontrar a lista dos Fantascontos n'A Sombra à direita, em Selecção Fantascontos.

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Roma by HBO



Graças ao amigo Baeta, não perdi.

Mais uma caixa de DVD's a juntar a
Band of Brothers...
A HBO continua a marcar pontos.
E a 2 também. Apesar de tudo.

ROME . HBO / na 2: às segundas, 23:00.


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segunda-feira, janeiro 30, 2006

Meanwhile, back in 'the world'...



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Stephanie, 18 anos.
Miss Teen California 2006.

Para quando a Miss Teen Baghdad?

O contraste com a entrada anterior (Chew it.)
não podia ser maior. Surfin' USA...

domingo, janeiro 29, 2006

Chew it.








Opening: The End









Algures a Noroeste de Bagdade.
Já deixei de tentar memorizar os nomes destas aldeias... São todas iguais. Recordo-me de algo assim, contado pelo meu tio que serviu mais a oriente... Também ele perdeu a conta às aldeias e esqueceu os seus nomes. Hoje sei que alguns deles se tornariam difíceis, impossíveis de esquecer, se os soubesse. Por isso prefiro esquecê-los antes mesmo de os saber... São todos iguais.

Do alto, a deslocação do ar levanta a areia à nossa volta. É o pássaro que esperávamos. De repente, vindo da minha direita, um rocket. Isto é um pesadelo. O helicóptero é atingido em pleno rotor central. Corremos para as respectivas máscaras, longe da LZ, dando-lhe espaço e rezando para que não nos caia em cima. O piloto é bom. Consegue pousar. Um dos atiradores laterais está caído lá dentro. Espero que esteja vivo. Ou talvez não. Não penso mais nisso. O sargento envia-me com o Terrence e o Hawkins para a zona do disparo. Corremos envoltos numa cortina de fogo de cobertura.

Sou o mais novo dos três, aqui, mas o mais velho em idade. Sou negro. Estou na 101ª desde o tempo em que estava a estudar, em Atlanta. Safei-me da primeira vez, mas não agora. Agora ninguém se safa. Nem na Guarda. Terrence é um mulato de Los Angeles. Nunca percebi como veio aqui parar e acho que, para ele, o mistério é ainda maior; mas anda na boa. Parece que em South Central as coisas não são muito diferentes e, ao menos aqui, é pago para usar uma arma, em lugar de ser preso. Hawkins é um WASP puro, se é que existe tal coisa. Vive em Boston. Nunca imaginei que houvessem tantos republicanos em Boston. Que raios quer ele? Está na ponta e acena para Terrence. Dois... 30 jardas... Em movimento... Norte... Aponta para mim. No fim... Terrence pela direita... Ele segue. Ok.

Já não os vejo, mas acredito que estejam lá. São doidos o suficiente para isso. Também sei que o tenente já deve ter enviado um grupo de apoio. Nós somos os cães. Não podemos largar as presas até que eles cheguem. Continuo para norte. A vegetação é escassa nos espaços entre as casas de lama seca. Lá estão! Dois. Serão eles? Hawkins... Não o vejo. Entraram numa casa. Paro. À minha esquerda, Hawkins. Terrence, ali está. Indico a casa e faço sinal para virem a mim. Segundos depois estamos juntos.

- Terrence, vai buscar o tenente. - sussurra Hawkins.
De binóculos, inspeccionamos a casa e os arredores. Nem vivalma...
- Hawkins...
Ele não tira os olhos dos binóculos
- Hawkins.
- Que foi?
- Não tenho a certeza se eram eles.
- Têm de ser eles. Não vimos mais ninguém.
- Eram dois miúdos.
- E então?
- Não estavam armados.
- Devem ter largado o lança-rockets... Mas qual é a tua?
Deixo-o em paz. Já sei o que vai acontecer a seguir. Lentamente, começo a programar-me para esquecer mais um lugar deste fim do mundo...
Antes que se torne impossível.

Rui Semblano - 29 de Janeiro de 2006

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Reciprocity



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Cortesia de um visitante turco d'A Sombra,
que deve ter ficado a perceber o mesmo que eu, depois de o visitar a ele!

:)

Um abraço para Deniz Tunçalp
autor do blog
Bulunduğum Yerden Manzara...
(para ele também!... em dobro!)

(Now who's burning bridges, huh?)