Esta entrada divide-se em duas partes:Combustão Espontânea - parte um / Combustão Espontânea - parte doisRegressemos a 1963, o ano em que nasci.
Nessa altura, um ordenado médio pagaria cerca de quatro vezes o aluguer de uma casa com quatro assoalhadas (um T3 dos dias de hoje). Quarenta anos passados, um ordenado médio mal chega para alugar um T1 e, muito pior, um ordenado mínimo não chega para alugar uma casa. Qualquer casa.
Perante este facto simples, sem entrar em campos adjacentes ligados às necessidades básicas do ser-humano (das quais, convém lembrar, o Ensino já não faz parte, sendo hoje um verdadeiro luxo - e em certa medida um verdadeiro lixo), como não vemos ainda automóveis e autocarros a arder nas cidades deste país? Talvez a razão para isso seja o burguês ambicioso e egoísta (perdoem-me as redundâncias) que se esconde no fundo de cada um de nós, sonhando em segredo passar de explorado a explorador.
Mesmo entre os sem-nome (
ver a parte 1), este sonho é recorrente.
Entre os consumidores, esta oportunidade tantas vezes sonhada encontra uma janela nos investimentos em Bolsa, individualmente insignificantes e praticamente sem valor para quem os realiza, mas muito significativos se somados e mais ainda se considerarmos o que constituem. Esta quota do mercado de papel flutua ao sabor do vento dos grandes negócios e é presa fácil para os que realmente controlam o
jogo, como presas fáceis são os que se esquecem de como é difícil ganhar dinheiro a sério na Bolsa e como ele é extremamente fácil de aí se perder para sempre.
Estes microinvestidores não são mais que outra espécie de consumidores, iludidos pela aparente diferença entre um bocado de papel e um televisor de LCD, que os impede de perceber o logro em que se deixam enredar. Virtualmente, estes
aspirantes não fazem mais que preencher um importante nicho do sistema
oportunista, raramente ascendendo à condição superior.
Aí, no topo, o que realmente importa é acumular riqueza e esta, como disse (
ver parte 1), nunca é suficiente - e não chega para todos, segundo consta. No cimo da cadeia, os que controlam o
jogo são cada vez menos, pois não existe classe mais autofágica - entre os consumidores, a autofagia está ainda em fase embrionária, tal como existe mais acima, e os seus efeitos manifestam-se de outra forma, mas o burguês já percebeu que o dinheiro nunca chega e que quanto mais dividido menos terá. O resultado desta percepção é evidente.
Portugal é um país demasiado pequeno e cabotino para os movimentos discretos que o grande capital tem por norma executar, pelo que as suas manobras são mais visíveis que em outros locais, o que revela duas coisas: a pouca inteligência dos executores e a perversão em que mergulhámos. Não é por acaso que Portugal é reconhecidamente o país do mundo em que os administradores dos bancos são melhor remunerados e em que mais dinheiro se aposta no Euromilhões - dois excelentes indicadores da degradação social existente em Portugal e de que, segundo algumas almas que vão lendo jornais (incluindo um antigo administrador da General Electric), deveríamos ter vergonha.
Em 1993, trinta anos depois do meu nascimento, um administrador bancário ganhava milhares de contos por mês e milhões de contos de prémios semestrais. Quantos milhões? Que importa? Se fosse apenas um milhar de contos por mês e um milhão de contos de seis em seis meses já seria escandaloso, num país onde o ordenado mínimo ainda hoje não chega aos 100 contos mensais - e era bem mais que isso (em alguns casos, só em prémios, cerca de 10 milhões de contos por ano...).
E o consumidor lá continua, embrenhado na sua tragédia nada cómica, que é a de ser não mais que consumido, afinal. Deixou de fazer parte do motor que movia o antigo capitalismo; esse motor há muito que se tornou autosuficiente e apenas necessita de uma coisa para funcionar: combustível.
Sendo assim, o capitalismo de que nos falavam Marx e Engels já não existe (o de Hardt e Negri também, embora não claramente autopsiado). O pesadelo consumou-se. Este novo sistema, o
oportunismo, assente no consumismo, substituiu-o por completo. O capital já não precisa do capitalismo para se reproduzir, apenas precisa de consumir, de consumo; consumir os produtos e bens e consumir o combustível que, por seu turno, os consome: nós, uma vez mais.
Resta-nos a esperança mais ténue e desgraçada de todas: a de, como todo o combustível, sermos inflamáveis. E será o sinal do fim do sonho, do terrível despertar e de um novo início. Em direcção a quê? Não sei. Ninguém sabe; nem os que sabem que em 2010 o barril de petróleo estará a 40 dólares. Sei que será muito pior e por muito tempo, pois os que primeiro deixarão de sonhar e provocarão o despertar de todos os outros estarão entre as fileiras dos sem-nome, e estes nada pretendem ao revoltar-se que não seja a própria revolta.
Como em França e no Brasil, serão os "vagabundos" de Sarkozy e de Lula da Silva a iniciar a revolução que se aproxima; uma revolução paradoxal, pois a nada serve, nada procura atingir e é vazia de ideias, mas poderosa, violenta e, quem sabe, inexorável. As qualidades do fogo purificador, enfim. Consumirá tudo e todos, excepto os controladores do
jogo, nessa altura a salvo e bem longe do monte de merda que criaram, possivelmente numa ilha artificial de algum país árabe. Mas talvez nem aí estejam seguros e a justiça os apanhe um dia, se calhar sob a forma de um crescente explosivo.
Inch'Allah!Nós, apesar de tudo, sobreviveremos.
É que existe vida para lá do écran de plasma.
Muito mais do que se julga.
Rui Semblano
31 de Maio e 1 de Junho de 2006