quinta-feira, junho 01, 2006

Combustão espontânea. (parte 2)


Esta entrada divide-se em duas partes:
Combustão Espontânea - parte um / Combustão Espontânea - parte dois



Regressemos a 1963, o ano em que nasci.
Nessa altura, um ordenado médio pagaria cerca de quatro vezes o aluguer de uma casa com quatro assoalhadas (um T3 dos dias de hoje). Quarenta anos passados, um ordenado médio mal chega para alugar um T1 e, muito pior, um ordenado mínimo não chega para alugar uma casa. Qualquer casa.
Perante este facto simples, sem entrar em campos adjacentes ligados às necessidades básicas do ser-humano (das quais, convém lembrar, o Ensino já não faz parte, sendo hoje um verdadeiro luxo - e em certa medida um verdadeiro lixo), como não vemos ainda automóveis e autocarros a arder nas cidades deste país? Talvez a razão para isso seja o burguês ambicioso e egoísta (perdoem-me as redundâncias) que se esconde no fundo de cada um de nós, sonhando em segredo passar de explorado a explorador.
Mesmo entre os sem-nome (ver a parte 1), este sonho é recorrente.

Entre os consumidores, esta oportunidade tantas vezes sonhada encontra uma janela nos investimentos em Bolsa, individualmente insignificantes e praticamente sem valor para quem os realiza, mas muito significativos se somados e mais ainda se considerarmos o que constituem. Esta quota do mercado de papel flutua ao sabor do vento dos grandes negócios e é presa fácil para os que realmente controlam o jogo, como presas fáceis são os que se esquecem de como é difícil ganhar dinheiro a sério na Bolsa e como ele é extremamente fácil de aí se perder para sempre.
Estes microinvestidores não são mais que outra espécie de consumidores, iludidos pela aparente diferença entre um bocado de papel e um televisor de LCD, que os impede de perceber o logro em que se deixam enredar. Virtualmente, estes aspirantes não fazem mais que preencher um importante nicho do sistema oportunista, raramente ascendendo à condição superior.

Aí, no topo, o que realmente importa é acumular riqueza e esta, como disse (ver parte 1), nunca é suficiente - e não chega para todos, segundo consta. No cimo da cadeia, os que controlam o jogo são cada vez menos, pois não existe classe mais autofágica - entre os consumidores, a autofagia está ainda em fase embrionária, tal como existe mais acima, e os seus efeitos manifestam-se de outra forma, mas o burguês já percebeu que o dinheiro nunca chega e que quanto mais dividido menos terá. O resultado desta percepção é evidente.

Portugal é um país demasiado pequeno e cabotino para os movimentos discretos que o grande capital tem por norma executar, pelo que as suas manobras são mais visíveis que em outros locais, o que revela duas coisas: a pouca inteligência dos executores e a perversão em que mergulhámos. Não é por acaso que Portugal é reconhecidamente o país do mundo em que os administradores dos bancos são melhor remunerados e em que mais dinheiro se aposta no Euromilhões - dois excelentes indicadores da degradação social existente em Portugal e de que, segundo algumas almas que vão lendo jornais (incluindo um antigo administrador da General Electric), deveríamos ter vergonha.

Em 1993, trinta anos depois do meu nascimento, um administrador bancário ganhava milhares de contos por mês e milhões de contos de prémios semestrais. Quantos milhões? Que importa? Se fosse apenas um milhar de contos por mês e um milhão de contos de seis em seis meses já seria escandaloso, num país onde o ordenado mínimo ainda hoje não chega aos 100 contos mensais - e era bem mais que isso (em alguns casos, só em prémios, cerca de 10 milhões de contos por ano...).
E o consumidor lá continua, embrenhado na sua tragédia nada cómica, que é a de ser não mais que consumido, afinal. Deixou de fazer parte do motor que movia o antigo capitalismo; esse motor há muito que se tornou autosuficiente e apenas necessita de uma coisa para funcionar: combustível.

Sendo assim, o capitalismo de que nos falavam Marx e Engels já não existe (o de Hardt e Negri também, embora não claramente autopsiado). O pesadelo consumou-se. Este novo sistema, o oportunismo, assente no consumismo, substituiu-o por completo. O capital já não precisa do capitalismo para se reproduzir, apenas precisa de consumir, de consumo; consumir os produtos e bens e consumir o combustível que, por seu turno, os consome: nós, uma vez mais.
Resta-nos a esperança mais ténue e desgraçada de todas: a de, como todo o combustível, sermos inflamáveis. E será o sinal do fim do sonho, do terrível despertar e de um novo início. Em direcção a quê? Não sei. Ninguém sabe; nem os que sabem que em 2010 o barril de petróleo estará a 40 dólares. Sei que será muito pior e por muito tempo, pois os que primeiro deixarão de sonhar e provocarão o despertar de todos os outros estarão entre as fileiras dos sem-nome, e estes nada pretendem ao revoltar-se que não seja a própria revolta.

Como em França e no Brasil, serão os "vagabundos" de Sarkozy e de Lula da Silva a iniciar a revolução que se aproxima; uma revolução paradoxal, pois a nada serve, nada procura atingir e é vazia de ideias, mas poderosa, violenta e, quem sabe, inexorável. As qualidades do fogo purificador, enfim. Consumirá tudo e todos, excepto os controladores do jogo, nessa altura a salvo e bem longe do monte de merda que criaram, possivelmente numa ilha artificial de algum país árabe. Mas talvez nem aí estejam seguros e a justiça os apanhe um dia, se calhar sob a forma de um crescente explosivo. Inch'Allah!

Nós, apesar de tudo, sobreviveremos.
É que existe vida para lá do écran de plasma.
Muito mais do que se julga.

Rui Semblano
31 de Maio e 1 de Junho de 2006




Dead Can Dance - The host of Seraphim - Serpent's Egg
(a propósito de Manuel da Cerveira Pinto - Boassas - melhor ilustração seria impossível)

quarta-feira, maio 31, 2006

Combustão espontânea. (parte 1)



Como se pode ainda acreditar que o sistema em que vivemos é o capitalista? E, não o sendo, como negar que Marx não se encaixa neste quadro? E como não rir ao verificar que os que defendem esta última tese permanecem convictos de ainda viverem num sistema capitalista? O que se alterou na nossa sociedade nos últimos vinte anos? E, mais importante, como pode tanta coisa ter sucedido debaixo dos nossos narizes sem que reagíssemos?

Estamos em permanente combustão, mas controlada.
A espontaneidade, porém, surgirá quando menos se esperar.
Ou assim o espero.

Entrada completa abaixo. 666



A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, por consequência, as relações a ela relativas e todas as relações sociais. A conservação, na sua forma pura, dos velhos métodos produtivos foi, por contra, a condição fundamental para a existência de todas as formas iniciais de industrialização. Revoluções permanentes na produção, alterações ininterruptas de todas as condições sociais, contínua incerteza e agitação, distinguem a época burguesa das que a antecederam. Todas as relações fixas, de rápida consolidação, com o seu cortejo de preconceitos e opiniões veneráveis, são varridas; todas as que se lhes assemelham tornam-se velhas à nascença. Tudo o que é sólido se desvanece, tudo o que é sagrado é profanado e o homem é, enfim, compelido a encarar a frio a sua verdadeira condição e as suas relações com o seu semelhante.

Marx e Engels, Collected Works, Vol. 6, p. 487. Moscow, Progress Publishers, 1976.
Marx, Capital, Vol. 1, p. 457. Moscow, Progress Publishers (s/ data).
(tradução d'A Sombra)


Eu nasci em 1963, a 28 de Novembro.
Por volta desse dia, C. L. R. James, um Trotskysta convicto, empenhado no que considerava ser o movimento revolucionário negro nos EUA, dava uma conferência em Londres, denominada "O Marxismo para o nosso tempo", que se tornaria o título de um curioso estudo sobre estratégia revolucionária (profundamente teórico e inócuo, mas interessante por isso mesmo), em que caracterizava a sociedade de então como a concretização da ideia que transcrevi acima: fruto burguês em constante mutação.

Quando eu nasci, portanto, a profecia de Marx sobre o fim do proletariado era ainda uma visão apocalíptica projectada para diante, sobre a qual C. L. R. James e outros teóricos construíam teses mais ao jeito de Trotsky e da sua revolução (não burguesa) permanente - única forma de manter o "espírito" do proletariado. Mas este já não era, em 1963, o que fora em 1938.

Nos EUA como na Europa (com excepção dos países a Leste da Cortina de Ferro e a Oeste dos Pirinéus - embora a Espanha de Franco rapidamente se abrisse aos EUA, deixando-nos orgulhosamente sós) o pesadelo de Marx começou a desenhar-se desde 1944. Desta circunstância nos dá boa conta um obscuro estudo de Conrad Lodziak, trinta anos mais tarde (1), isto é: da conversão em massa dos produtores (o proletariado) em consumidores (a burguesia). Resulta, assim, que o lugar antes ocupado pelo proletário ficou vago, já que ninguém o ocupou. Surgiu um novo tipo social, incaracterizável, indistinto e anónimo, composto pelos que não fazem mais que tentar aceder ao consumismo, seja ele qual for. É uma legião de desempregados, trabalhadores temporários e sem qualificações e de pseudoestudantes, muitos deles deslocados (os imigrantes), que constituem o patamar mais baixo da cadeia consumista: os sem-nome. Mas lá chegaremos.

Morto o proletariado, morta a luta de classes.
A burguesia, guarda avançada do Capital, jamais se revoltaria contra quem a alimenta e, ganha a luta pela capitulação do proletariado que a ela se juntou não a podendo vencer, engorda um pouco por todo, até assimilar a lógica da classe superior: não há riqueza que seja suficiente.
A esta ideia voltaremos mais tarde.

Esta realidade, em que nos encontramos hoje, criou apenas duas classes sociais, já que abaixo delas nada existe de nominável ou distinto (a tal legião de que falei acima), sendo elas constituídas pelos que consomem e pelos que satisfazem os que consomem. Aos primeiros facilmente se chamará consumidores; aos segundos dificilmente se poderá chamar capitalistas e, irónica e cinicamente, fácil seria dar-lhes o nome de produtores, embora esta designação atinja aqui um nível de enorme perversidade. De determinado ponto de vista, ambas as classes são capitalistas, pelo que a designação perde sentido, como o perdeu como identificadora do sistema sócioeconómico vigente nos países onde nasceu e vingou o capitalismo. Como os seus componentes mudaram, também o sistema mudou, forçosamente. Marx devia ter previsto isso, mas talvez o seu terror perante a premonição do fim do proletariado o tenha impedido de querer ver mais além.

Esta cadeia de consumo não é piramidal, embora seja tão vertical quanto possível, e a gradação entre os seus componentes essênciais é claríssima e chega a ser bruta, de tão simples e básica. No topo encontram-se os que detêm os bens de consumo produzidos e os próprios meios de produção - muitos deles meros instrumentos financeiros, desenhados tanto para suportar o escoamento dos produtos como para controlar o seu fluxo (os antigos capitalistas e alguns aristocratas). No meio, verdadeira base do sistema, os consumidores (a antiga burguesia e parte do antigo proletariado, bem como a maior parte da aristocracia) e esta assenta na tal mole indistinta que não chega a ser uma classe, os sem-nome, e em boa medida depende deles.

A pedra de toque deste neocapitalismo, mais apropriadamente neoliberalismo, é um sonho: o de cada sem-nome chegar a consumidor e o de cada consumidor chegar a ser senhor do que consome. Como é de oportunidades que falamos, darei ao sistema vigente, que sucedeu ao Capitalismo, o nome de Oportunismo.

E como estas ideias já chegam para iniciar a reflexão que espero provocar em quem visita esta Sombra, deixo a segunda parte desta exposição para a próxima entrada, a editar oportunamente, claro.

Rui Semblano


(1)
Conrad Lodziak, Manipulating Needs - Capitalism and Culture
London, Pluto Press, 1995.


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Combustão Espontânea - parte um / Combustão Espontânea - parte dois