terça-feira, janeiro 31, 2006

Fantasconto 2000 . The Exorcist




Fantasporto 2000
Inspirado em
The Exorcist
e depois de ver Three Kings (encerramento Fantas 2000)


Rivoli teatro municipal
4 de Março de 2000
terceiro fantasconto


Foto: RS / Cheia no Douro . Porto/Gaia



Os fantasmas que habitavam o seu quarto regressavam para a ocasião; podia senti-los, não só a sua presença, como sentimos a presença das pessoas que partilham connosco um mesmo espaço, mas o seu cheiro. O cheiro dos espectros.

Havia um particularmente curioso acerca da sua máscara fluorescente do Scream, pousada sobre a cómoda, e outro tentava sem sucesso colocar a luva de Freddy Krugger, com lâminas de plástico. Outro, não tirava os olhos das chaves do automóvel. Ele já tinha descalçado um sapato e observava-os, sentado na cama. Ok. Vamos lá. Calçou-se de novo e ergueu-se, agarrando o maço de Luckies, o Zippo e as chaves do carro. Saiu de casa, desceu as escadas e chegou à rua. Havia nevoeiro, denso, como sempre era naquela zona da Serra do Pilar. Como tantas vezes acontecia, só na sua zona havia nevoeiro; a mortalha preferida dos seus fantasmas.

O alarme do carro deu sinal, assinalando a sua presença pelo brilho alaranjado dos piscas por entre a névoa. Quando se sentou ao volante, os outros já lá estavam, cada um no seu lugar.
- Buckle up, fellas.
Eles obedeceram sem hesitar. Quando alguém como ele, no lugar do condutor, diz para pôr o cinto de segurança obedece-se sem pestanejar - e reza-se; mesmo que se seja um fantasma.
A chave rodou na ignição e o 16 válvulas roncou. Saíu do estacionamento. Sabia exactamente onde terminava o manto de nevoeiro. Desceu até à avenida, entrando nela sem ligar ao sinal vermelho, calmamente, no meio da neblina, depois acelerou em direcção à ponte D. Luís. A entrada na ponte é sempre complicada com nevoeiro cerrado, e há sempre a possibilidade de um autocarro vir em sentido contrário um pouco fora de mão, de mínimos acesos.

Tocaram o asfalto do tabuleiro superior da ponte D. Luís às quatro horas e vinte e dois minutos da manhã, envoltos em névoa espessa, a cento e cinquenta quilómetros por hora. O fantasma que seguia no lugar do morto já estava com o pé dentro do motor, de tanto carregar no travão imaginário.
E era só o início.
As duas marginais. Desde sempre eram o seu circuito preferido àquela hora da madrugada. Alguns dos fantasmas conheciam bem o trajecto. Um deles mexeu-se um pouco no assento.

A marginal do Porto.
Infante-Foz. Complicada, escorregadia, trilhos de eléctrico, paralelo, asfalto, buracos, curvas cegas, rails, o rio. Seria a primeira. O automóvel saíu do nevoeiro exactamente à entrada no Porto. Saída da ponte, os oitenta cavalos do inferno resfolegando, os cascos faiscando no alcatrão da Invicta. Atingiram o Infante em três minutos. Seleccionou o CD autografado por Danny Elfman e rodou o volume até ao 17. Iam rolar cabeças.

Na Alfândega da Ribeira apanhou um Golf GTi cheio de macacos com uma cassete de Ana Malhoa aos berros. Varreu-os com os máximos e quase roçou retrovisores ao ultrapassá-los. Uma olhadela ao espelho interior confirmou o que esperava. Um gingar de luzes indicava uma redução do Golf. Os grunhóides, claramente, aceitavam o desafio. Ainda se mantiveram colados a ele por um bocado; até à primeira curva cega. Dois pneus sobre os trilhos do eléctrico, redução falhada, slide, atravessamento, rails - Bang! - rotação sobre o eixo horizontal e queda invertida no rio. Artistic impression: 200 points.

130 Km/h à entrada do Passeio Alegre, puro slide show, contrabrecagem perfeita, 180 antes da curva do Twin's, redução semidirecta 5ª-4ª-2ª (ai! - entrou), 90, curva, 3ª, 120, curva contracurva, o forte, relevé invertido, 4ª, 145, opção: marginal ou interior, marginal ou interior, 3ª, 120, marginal, fundo, relevé invertido dois, paralelo para asfalto, tracção. Menos fantasmas dentro do automóvel. Ganhar a Boavista e a Arrábida. Passou para Gaia e desceu à Afurada.

A marginal de Gaia.
Afurada-Ponte D. Luís. Estreita, manhosa, altos no pavimento, 3/4 em paralelo, uma discoteca, uma zona de piso molhado permanente, rails, 70% dois sentidos à rasca, 30% só passa um, curvas de 95 e 100 graus. Muito interessante. O rio a dois palmos. Sem margem de erro. Ninguém na rua, uma olhadela ao retrovisor e um só espectro no banco de trás, mais branco que o usual. 5 minutos e 17 segundos ponte a ponte.

Subiu General Torres até à avenida, mergulhou de novo no nevoeiro, entrou na sua rua e estacionou exactamente no lugar que há pouco deixara. Estava só. Accionou o alarme e foi para casa. Sentou-se na cama, pousando o maço de tabaco e as chaves do carro na mesinha de cabeceira, e descalçou um sapato. Olhou o Lucky. Tirou o "Our Century" da bolsa de couro que trazia no cinto, e olhou em volta. Não cheirava um único fantasma. Ainda com um sapato calçado, acendeu um cigarro, pousando o Zippo de 1901 a 2000 sobre o maço. Eram quatro horas e cinquenta. Aspirou o fumo profundamente.

Não fumara no automóvel.
Queria manter o cheiro a novo o mais possível.
Ghost free.

Rui Semblano
The Exorcist - Fantas 2000


Nota:
Daqui até ao Fantas deste ano, editarei uma selecção dos meus Fantascontos, que escrevo a cada edição que vou, um por ano. Todos seriam demasiados. :) Poderão encontrar a lista dos Fantascontos n'A Sombra à direita, em Selecção Fantascontos.

Posted by Picasa

Sem comentários:

Enviar um comentário