quarta-feira, julho 30, 2003

O pesadelo americano


Lido em Santa Ignorância:
(por Adeodato)

--- início de transcrição ---

(...) Mas contra Guantanamo clamam as vozes pela defesa dos mais elementares direitos de uma pessoa à justiça. Direito a saber porque se está preso, a condições mínimas de respeito em caso de privação de liberdade, a um julgamento justo, a contactos para o exterior, a uma decisão judicial rápida, etc. Direitos que à primeira vista só poderiam ser violados noutra ditadura, em outro estado de não-direito. Qualquer normal cidadão dos E.U.A, que seja preso em Nova Yorque, em Washington ou L.A. sabe os direitos que lhe assistem. Os de Guantanamo não. (...)

--- fim de transcrição ---


Pois, caro Adeodato, já não é bem assim.
E a tristeza desta questão é que, de facto et de jure, qualquer cidadão normal dos EUA (qualquer um, de qualquer raça ou credo) se pode encontrar na mesma situação que os prisioneiros em Guantanamo. Basta não serem considerados presos de delito comum.

Desde o infame decreto USA PATRIOT (*) que, por simples decisão do Attorney General dos EUA (algo como o nosso Procurador Geral da República) em conjunção com o Secretário de Estado, qualquer cidadão, norte-americano ou não, pode, desde que em solo norte-americano, ser preso nas mesmas circunstâncias.
Basta a suspeita, por mais leve que seja, de ter auxiliado uma das organizações constantes da lista negra de Washington, para ser equiparado a um combatente inimigo, fora do alcance das Convenções de Genebra por, segundo o definido pelo Governo dos EUA, se tratar de "um terrorista".
E depois temos o notório decreto da "Invasão da Holanda", que leva a crer que estas detenções poderão ser efectuadas no estrangeiro.

Existem, fora de Guantanamo, quem sabe se alguns já em Guantanamo, milhares de prisioneiros nestas circunstâncias, parte deles encarcerados algures nos EUA, outros em países onde podem ser interrogados de forma mais "concludente" - mas todos sem direitos. Todos sem saber porque foram presos, sequer - entre eles, não são poucos os cidadãos norte-americanos, alguns em risco de perda de nacionalidade. E assim deverão ficar até que alguém acorde bem disposto em Washington ou que outros espíritos, mais iluminados, tomem para si o poder nos EUA (via eleições, claro, não vá o Pedro Mexia ler isto e voltar a pensar que eu apelo à insurreição armada!)
Por este motivo - e muito infelizmente - vejo-me obrigado a discordar da sua afirmação, transcrita acima. Os Estados Unidos que descreve já não existem. Talvez não os voltemos a ver por muito tempo. Mas espero estar enganado sobre esta última frase.

Deixo dois excertos datados de Novembro de 2001, de um livro de uma advogada norte-americana, do Centro para os Direitos Constitucionais, que, já então, se sentia algo constrangida com os efeitos da "nova democracia", pós-11/09/2001 nos EUA.

(tradução mais abaixo, para benefício dos não-anglófonos)

--- início de citação ---

Nancy Chang, Senior Litigation Attorney
Center for Constitutional Rights
666 Broadway, 7th Floor
New York, NY 10012

(...)
To an unprecedented degree, the Act sacrifices our political freedoms in the name of national security and upsets the democratic values that define our nation by consolidating vast new powers in the executive branch of government. The Act enhances the executive's ability to conduct surveillance and gather intelligence, places an array of new tools at the disposal of the prosecution, including new crimes, enhanced penalties, and longer statutes of limitations, and grants the Immigration and Naturalization Service (INS) the authority to detain immigrants suspected of terrorism for lengthy, and in some cases indefinite, periods of time. And at the same time that the Act inflates the powers of the executive, it insulates the exercise of these powers from meaningful judicial and Congressional oversight.
(...)
In addition, USA PATRIOT Act (1) to include as a "terrorist organization" any domestic or foreign organization so designated by the Secretary of State in consultation with or upon the request of the Attorney General under Section 411. On December 5, 2001, the Secretary of State, in consultation with the Attorney General, designated 39 groups as Terrorist Exclusion List organizations under this provision.
(...)
(1) § 411(a) amended 8 U.S.C. §1182(a)(3)(B)(vi)(II)


in Silencing Political Dissent: How Post-September 11 Antiterrorism Measures Threaten Our Civil Liberties, de Nancy Chang
(Seven Stories Press, USA)


Tradução:

De uma forma sem precedentes, o Decreto (USA PATRIOT) sacrifica as nossas liberdades políticas em nome da Segurança Nacional e desestabiliza os valores democráticos que definem a nossa nação ao reforçar vastos e novos poderes no ramo executivo do Governo. O Decreto amplifica a possibilidade do executivo de levar a cabo vigilâncias e de recolha de informações, coloca uma miríade de novos instrumentos à disposição da acusação, incluindo novos crimes, penas agravadas e períodos de estatuto limitado mais longos, e concede ao Immigration and Naturalization Service - INS (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras dos EUA) autoridade para deter imigrantes suspeitos de terrorismo por períodos de tempo mais longos, em alguns casos indefinidamente. E ao mesmo tempo que o Decreto aumenta os poderes do Executivo, isola o exercício destes poderes de um significativo controlo por parte do Congresso e do poder judicial.
(...)
A somar a isto, o decreto USA PATRIOT (1) deve incluir como "organização terrorista" qualquer organização nacional ou estrangeira assim designada pelo Secretário de Estado após consulta com ou a pedido do Procurador Geral, de acordo com a secção 411. Em Dezembro 5, 2001, o Secretário de Estado, após consulta com o Procurador Geral, designou 39 grupos como organizações pertencentes à Lista de Exclusão Terrorista, ao abrigo desta disposição.
(...)

--- fim de citação ---



nota:
Ainda deste ano, um estudo publicado na revista The Economist revelava como a situação se deteriorou ainda mais, desde então. O meu problema é que na desarrumação do escritório, não consegui descobrir a revista, para a transcrever.
Mas, assim apareça, terei oportunidade de o fazer.
Como escrevi há algum tempo (Público, 18Mar2003, Cartas ao Director):
"O sonho americano está a transformar-se, cada vez mais, num pesadelo de que é imperioso acordar".

(*) Sobre USA PATRIOT Act I e II ver:

www.eff.org on USA PATRIOT I - Electronic Frontier Foundation
www-eff.org on USA PATRIOT II - Electronic Frontier Foundation
www.aclu.org on USA PATRIOT Act I - American Civil Liberties Union
www.aclu.org on USA PATRIOT Act II - American Civil Liberties Union

nota 2: Aconselho uma busca própria, incluindo Sites governamentais dos EUA. Esclarecedor.

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