quarta-feira, agosto 02, 2006

Shalom...

Na sua ideia, a paz nunca existira.
Era um conceito abstracto, utópico, quase mitíco. O sol nascente iluminaria de novo um cenário de guerra; a mesma que existira na noite anterior. A mesma que sempre existira. Do outro lado da frágil e cada vez mais irreconhecível fronteira, um clarão rivaliza por um instante com o despontar do dia. É um míssil. Com o olhar, acompanha o projéctil na sua trajectória, passando sobre ele na direcção de Israel...
Não sente nada.
Já não existe raiva, ódio, desejo de vingança. Crescera com esses sentimentos e sem sentir verdadeiramente nenhum deles. Nascera em 2006, numa cave que servia de abrigo em Kiryat Shmona, perto dali, num dia de Julho em que uma criança libanesa mais era retirada dos escombros do que fora Qana.

A tripulação restante do canhão autopropulsionado a que pertencia estava a dançar uma canção hebraica, as mãos dadas numa roda, indiferentes ao míssil que acabara de cruzar os céus sobre as suas cabeças. Alheio à dança, ergueu os binóculos e olhou através deles na direcção do disparo do míssil. Os outros canhões da sua unidade ganhavam vida, como se os homens que os operavam fossem o seu sangue...
Em breve começariam a disparar contra a posição inimiga que, entretanto, desapareceria como todas as outras, deixando para trás os que não podiam desaparecer. Uma rotina macabra e vazia sem outro sentido que ela mesma.

O canhão que comandava mantinha-se imóvel, a tripulação dançando e cantando ainda, como crianças grandes em uniforme. Vendo-os assim, decidiu não os chamar. Hoje, a sua arma não dispararia contra os libaneses. Hoje não. E sobre ele passou um grupo de Apaches, imperial, voando para Norte, onde era suposto estar o Hezbollah.
Aos primeiros disparos da bateria de canhões, o seu comandante aproximou-se dele.
- Então, David? Porque esperas?
Os seus homens pararam de dançar e ficaram em silêncio, olhando-os. Aguardavam uma ordem que não seria proferida. David olhou nos olhos do seu superior e disse, simplesmente:
- Yesh Gvoul.
Sim. Há um limite.

Rui Semblano
Porto, 2 de Agosto de 2006






Agosto chegou
mas as armas não se calaram.
Existe tanto para dizer e,
no entanto,
o silêncio que sinto e faço
é o que melhor significa o meu espanto.
O silêncio dos mortos
e do seu pranto.

RS / Ago2006


nota:
"Yesh Gvoul", literalmente "há um limite", em hebraico, é o nome da organização formada pelos militares israelitas que se opõem ao papel cada vez mais agressivo do Tsahal no Próximo Oriente. É verdade; existe um outro Israel.

8 comentários:

  1. Gostei muito.
    Esses sentimentos de raiva, ódio e vingança, com que se nasce e se convive sem que se sintam no concreto, devem mesmo existir nesses países onde o cenário de guerra é o cenário da vida.

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  2. Amigo Rui.

    Já por aqui não vinha faz muito tempo e hoje deparo-me com uma série de posts e “discussões” que me passaram ao lado, mas que tive também, oportunidade de “discutir” no meu blog e noutros de amigos.

    Sobre o conto deste, só tenho de aplaudir porque tem a ver com a paz que tanta falta faz naquela região e de facto existe um outro Israel, embora diminuto e não ultrapassando os 3% da população.

    Estive a ler tudo, ou quase, do que por aqui se escreveu sobre este conflito e as suas origens. Concordei com parte do que se disse e não tanto com alguns factos históricos.
    Por isso, e para não comentar lá para trás, aqui fica o meu contributo.

    Quando se diz que os árabes foram expulsos das suas terras, interessa dizer também o seguinte:

    Este desagrado vem do tempo de Ramsés II e da invasão dos filisteus, quando as tribos hebraicas chefiadas por Josué se estabeleceram e desde logo começaram as guerras devido à religião, que os hebreus ganhariam liderados pelo rei David e que foi simbolizado na derrota do gigante Golias.

    Aquando da morte do rei David o seu reino, estendia-se do Eufrates até ao Nilo, que seria dividido com a grande ocupação Romana que vai de 63 a.C. a 638 d.C. em Ocidente e Oriente e é em 638 d.C. que chegam os árabes muçulmanos que iriam dar inicio ao período islâmico com a conquista de Jerusalém pelo califa Omar, antes disso e entre os períodos bizantinos, o imperador Constantino em 324 cristianiza Jerusalém e em 614 dá-se a invasão Persa, mas muito antes, no segundo milénio a.C. o patriarca Abraão, o seu filho Isaac e o neto Jacob, que são os antepassados das 12 tribos de Israel que perseguidas pela fome emigram para o Egipto, para Moisés por volta do ano 1200 a.C. unir as tribos nómadas semitas num único povo, o Hebreu e os guiar à terra prometida e ajudar o seu sucessor, Josué (Joshua) a conquistar a terra de Canaã, Judeia e Semaria a que os judeus chamaram Israel.

    Mas andando agora em frente na história, damos um salto para o século XIII quando os mamelucos do Egipto tomam Jerusalém e os judeus voltam à cidade, para em 1517 serem os otomanos que ocupam o território, ocupação essa, que dura até 1917 e durante esse período de 400 anos, judeus, cristãos e muçulmanos, vivem em tranquilidade.

    Ao longo de todos estes séculos, houve sempre judeus em Jerusalém e nos territórios que hoje constituem Israel e Palestina.

    Depois vem o período recente, que na minha opinião começa em 1897 com o primeiro congresso sionista em Basileia, onde se constitui o movimento sionista, a partir daí, em 48 quando os EUA e a URSS reconheceram a Estado de Israel independente e que nunca foi aceite pelos árabes, por se sentirem enganados, como antes já o tinham sido pelo Governo de Sua Majestade que se conluiou com os franceses, desde essa data que Israel tenta viver em paz e é atacado pontualmente.

    Por tudo isto, a questão de quem foi expulso e se aquela terra é dos hebreus ou dos árabes muçulmanos torna-se irrelevante.

    A grande questão é que Israel é um estado soberano que não pode desaparecer, ao contrário do que querem os vários movimentos terroristas que os atacam, porque estão inevitavelmente condenados a entenderem-se, depois, todas as guerras são excessivas, mas não podemos incorrer no erro tão em voga de alguma esquerda, que de uma forma dicotómica, põe os Israelitas a fazer papel de monstros e o Hamas ou o Hezbollaho papel de desafortunados.

    Um grande abraço.

    PS: Quando digo terroristas, digo-o com a convicção da leitura das suas cartas fundadoras onde se pretende a destruição do Estado de Israel, mas principalmente pelo seu modus-operandi, de que todos (os que não tiverem memória curta) se lembrarão.

    “Yesh Gvoul” e esperemos que o fim deste estado de guerra permanente, esteja próximo.

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  3. António:
    Acreditar na paz é preciso.
    Mas cada vez mais difícil...

    Salam Aleikoum, amigo Baeta.
    RS

    PiresF:
    Amigo Pires,
    Sabia que apreciarias o conto e eu muito aprecio os teus comentários.
    A História, porém, escreve-se com mais força do que se recorda... Por vezes reescreve-se, mesmo, para evitar a memória. Partilho a tua ideia de que existe um lugar para todos no Médio Oriente. Apesar de considerar o Estado de Israel uma aberração (como dizes, não havia Israel sob o domínio Otomano e todos viveram em paz na Palestina por 400 anos) essa discussão morreu com a realidade da sua implantação. Negar a existência de Israel fazia sentido em 1947, mas não faz sentido algum nos dias de hoje.

    Como escrevi acima, existe um outro Israel que precisa vencer o extremismo sionista para que exista a possibilidade de paz na região (a mera possibilidade, nota). Se o chamado Mundo Ocidental desse aos israelitas judeus que se insurgem contra a política sionista metade do apoio que dá aos árabes muçulmanos que tentam contrariar o Islão radical, conseguiriam chegar a algum lado.

    Quanto à visão de Israel como um "monstro", caro Pires, digo-te apenas que, nesta história de David e Golias, o papel de Israel não é o de atirar pedras ao gigante. Condeno qualquer ataque sobre civis, como já sabes, e não é pelo Hezbollah matar 10 e Israel 100 que um é melhor que o outro, e se fosse palestiniano, podes ter a certeza que não me tornaria mártir ou atiraria rockets contra civis, mas consideraria alvos legítimos todos os israelitas armados no território da Palestina - incluindo os colonos que, como também sabes, andam de M16 a tiracolo nos supermercados.

    Os palestinianos não podem pretender o fim de Israel, mas Israel pode ainda menos imaginar que recriará uma Judeia livre de árabes. Ao recusar o papel de vizinho grato em terra alheia que o acolheu quando mais ninguém o fez, Israel assumiu o papel de ocupante. É por isso que paga até hoje. O facto de existirem árabes que fariam pior no seu lugar não é desculpa. Repito: há outro Israel, e acrescento, há outra Palestina. E tudo o que querem é que os seus filhos vivam em paz.
    Tudo o que desejo é que assim seja.

    Um forte abraço e obrigado pelas tuas palavras.
    RS

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  4. Amigo Rui, muito tenho eu vindo espreitar A Sombra, outrora tão irrequieta e fugaz, sem no entanto vê-la lançar como antes o seu misterioso e conhecedor manto negro sobre a luz ardente de crus temas bombásticos que encandeiam e ferem os olhos ao olhá-los fixamente. Estou com saudades de olhar através do filtro sombreado com que teces a realidade premente e frenética. Um abraço fraterno.

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  5. Isto aquí,é que é vergonha...não tem charme, não tem media, mas no fundo nos lixamos. Agora uns debio-mentais sejam libaneses, palestinos, israelenses que querem se matar o tempo todo e fazer dissomo meio de vida(dinheiro jorra)esses merecem toda compaixão dos imbecis......que vão pra puta que os pariu....estão ...gordos ...fortes...ambiciosos e eu e que vou perdermeutempo com isso.....mediocres...morreram mil...quiseram.....em dafur morrem, mil por dia, não escolheram, não tem blogs, não tem esquerda estupida pq não geram media......isso é tragedia...isso é vergonha universal..ninguém manda dolares, euros......verdade....somos lixo....bonecos manipulados...

    A região de Dafur (ou Darfur), oeste do Sudão, próxima à fronteira com o Chade, está em guerra civil desde fevereiro de 2003. Apesar de a divisão real ter natureza étnica, Dafur se divide entre “árabes” e “africanos”1. Dentre os primeiros, estão os Janjaweeds2, apoiados pelo governo de Cartum. Do outro lado, estão os chamados grupos rebeldes: o Exército de Libertação do Sudão (ELS) e Movimento para a Justiça e Igualdade (MJI), que acusam o governo de negligenciar a região e pedem maiores participações nas estruturas centrais do poder político e econômico.

    Até os anos 90, os Janjaweeds eram uma milícia mista do Chade e de árabes de Dafur que se mantinha no controle da terra e era tolerada pelo governo sudanês. Entre 1999 e 2000, Cartum armou as Forças Janjaweeds por se sentir ameaçado com levantes do Dafur do norte e do oeste. Quando a revolta ganhou mais força, em fevereiro de 2003, liderada pelo ELS e pelo MJI, o governo sudanês respondeu utilizando o exército do governo e a milícia árabe Janjaweed – principal força de contensão de insurgências - que faz ataques sistemáticos e ilegais sobre os civis do norte, oeste e sul do estado de Dafur. Nesses ataques, ocorrem graves violações dos Direitos Humanos, como execuções extrajudiciais, tortura, violações sexuais, raptos e furtos de propriedade. Implicitamente, os Janjaweeds são encorajados pelo governo a invadir as terras dos africanos (não árabes) e incentivados a utilizar a tática de terra abrasada (scorched earth policy)3.

    O conflito em Dafur tem sido divulgado na mídia ocidental como “limpeza étnica” e “genocídio”. Segundo Mukesh Kapila, coordenador humanitário da ONU: “ é a maior crise humanitária do mundo”. Um dos possíveis líderes dos Janjaweed é Musa Hilal 4, suspeito por crimes de genocídio. No início de 2006, muitos Janjaweed foram integrados às Forças Armadas do Sudão, inclusive às Forças de Defesa Popular e à Segurança de Fronteiras.

    O Conselho de Segurança da ONU já determinou um embargo de armas com o intuito de desarmar as milícias locais e minimizar o conflito na resolução 1556 de 2004 5, mas a decisão vem sendo desrespeitada. Tropas da União Africana estão cuidando atualmente da questão, contudo também há problemas de desrespeito aos direitos humanos nesse ponto, como violações sexuais6. As negociações de paz estão sendo mediadas pela União Africana, que pede que os rebeldes aceitem assinar um acordo de paz para evitar que o fim das negociações seja adiado por muito tempo. Os EUA também têm acompanhado as negociações com representação oficial. Apesar dos esforços, Minni Minawi, líder do ELS, já considera as negociações de paz fracassadas7. Agora, a questão é novamente trazida ao Conselho de Segurança, e é responsabilidade de seus membros determinar uma solução com urgência para esta questão.
    Francis.
    labercospt@hotmail.com

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  6. Davi Reis:
    Amigo Davi,
    A saudade aperta, é verdade, mas o certo é que tenho demasiado para escrever e tão pouco tempo para o fazer que a vontade se esvai quando finalmente me sento ao teclado. Reservo-me para quando puder manter A Sombra ao nível diário, embora isto não signifique que vá desaparecer até então.

    Mas que as coisas não se descomplicaram ainda é um facto!
    (sorriso)
    Obrigado pelas palavras e um grande abraço,
    RS

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  7. Descobri o seu blog por mero acaso. Iniciei o meu há meses, um pouco com a ideia de fazer aquilo que vejo aqui. Na altura era o "Tudo Mal no Reino" e eventualmente falhei.

    Algum tempo depois, decidi reanimá-lo. Mudei-lhe o nome, por saber-me incapaz de manter este espírito de crítica social que aqui vejo e saúdo. Dedico-me agora a pequenos desabafos meus, alguns dizeres, coisas ainda tão verdes, tão não maduras. "Rege Dixit". Mas convido-o a visitar-me e agradecia, caso tal aconteça, as suas impressões.

    No entanto, aconteça o que acontecer, aqui me tem fã rendido. E não precisei de muito. Combustão Espontânea fechou a decisão :)

    Um abraço de um novo fã.

    http://regedixit.blogspot.com

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  8. Francis:
    Peço desculpa pela publicação tardia do seu comentário, que considero importante. Não sei porque raio o Blogger me anda a pregar partidas, mas apenas hoje, 18 de Setembro, dei com ele no gestor de comentários d'A Sombra.
    De novo as minhas desculpas e bem vindo à Sombra.

    Um abraço,
    RS

    O Monarca:
    O que escrevi para o Francis é válido para Vossa Magestade.
    Espero, entretanto, ter corrigido esta falha. E muito obrigado por considerar est'A Sombra aprazível.

    Um abraço amigo,
    RS

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