sábado, outubro 18, 2003

O Futuro Tenso - parte 2


Gonçalo Ribeiro Telles assina um ensaio intitulado "Como será a vida nas nossas cidades?" na Grande Reportagem n. 150, de Setembro de 2003 (GR 150). Esta entrada é relativa a esse texto. No final, ligações às restantes entradas em Futuro Tenso.


Os “rurbanos”

Sob o título do ensaio de Gonçalo Ribeiro Telles (GRT), uma foto de um rosto marcado pelo tempo; um olhar que não fala de futuro algum; uma mão que segura um porta-minas que desenha um passado que nunca existiu.

Ribeiro Telles escreve no desejo de uma cidade auto-suficiente e equilibrada, relembrando Le Corbusier sem o chegar a tocar. É um olhar sobre um passado que quis um dia ser futuro e não chegou a cumprir-se. É a pena de Moore a que empunha, desenhando aglomerados platónicos de gente que vive com um pé na cidade e outro no campo.

A cidade do futuro de GRT tem hortas e pomares nas suas franjas, em lugar de subúrbios de lata ou de luxo; tem cursos de água artificiais a céu aberto, no lugar de poluídas ribeiras subterrâneas; tem cidadãos que não serão nunca urbanos por definição ou rurais por simpatia. Os “rurbanos”.
Os “rurbanos” de GRT, como os marcianos de Edgar Rice Burroughs, são um povo inventado. A análise do regresso ao campo por vastos sectores da população urbana é feita do mesmo modo, apesar de 90% dos que, vivendo na cidade, adquirem terrenos rurais o faça para construir uma casa de fim-de-semana, não para trabalhar neles.

GRT lembra-se do tempo em que havia campos de milho e rebanhos de ovelhas nas cidades, quando as carroças disputavam a metropolis com os automóveis. E lembra-se de como o quintal urbano matou a fome a muita gente no Portugal da primeira metade do século XX. GRT não gosta das redes de distribuição de alimentos frescos ou congelados. Qualquer legume que tenha de percorrer mais do que dez quilómetros desde a origem até ao mercado distribuidor já não está em condições de ser consumido. Perturba-o o enorme desperdício da água da chuva, rapidamente desviada do impermeável tecido urbano para rios e mares, sem aproveitamento algum. Preocupa-o, finalmente, a ausência dos limites impostos pelas muralhas de antanho, que serviam para definir os feudos urbanitas, faróis para os camponeses em seu redor.

No final, não se chega bem a perceber o que augura Gonçalo Ribeiro Telles. Talvez não augure coisa alguma. Talvez o seu futuro seja, afinal, o passado que nunca chegou.

Rui Semblano
Porto, 17 de Outubro de 2003



Em Futuro Tenso:
parte 1 - A Murphy's sort of Law - José Pacheco Pereira
parte 2 - Os "rurbanos" - Gonçalo Ribeiro Telles
parte 3 - Manifesto antipunk - Pedro Mexia

Análise dos ensaios destes autores na
Grande Reportagem n. 150 - a última mensal

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