Desde que foi confirmada a captura de Saddam Hussein que se multiplicam os vaticínios de bom augúrio para a dita "administração Bush". Muitos afirmam mesmo que é o troféu que fazia falta a G. W. Bush (e a Tony Blair), chegando mesmo a transformar o ditador capturado no passaporte para a reeleição do "presidente" Bush em 2004 (isto a quase um ano de distância!).
Não será tanto assim.
Não é no plano internacional que se ganham eleições presidenciais norte-americanas, embora muitas aí se tenham perdido. Serão os norte-americanos a votar, chegado Novembro, e ter apanhado Saddam Hussein só serve para retirar a Washington uma das razões de peso que invocava para manter a presença militar no Iraque.
"Ok, dirão os norte-americanos,
we got him. Now what?" Ou seja, vamos trazer os nossos militares para casa? Não me parece.
A tentativa de retirar o máximo de efectivos do terreno continua, da parte de Washington, mas está condicionada à sua substituição por tropas de outras nacionalidades, até agora em número manifestamente insuficiente. Aliás, sem participações de peso, de nada servirá arranjar efectivos militares para ocupar o Iraque, pois nada é mais prejudicial para uma operação militar do que um exército constituído por muitas meias dúzias de soldados de nacionalidades diferentes. Simplesmente não funciona. Os que poderiam enviar largos contingentes, como a Turquia ou o Paquistão, já tiraram o corpo fora; quanto aos "amigos" dos EUA, como Portugal, Espanha e o Japão, os seus contingentes são de um simbolismo confrangedor... Para mais se pensarmos o tipo de situação em que vão operar - não deixa de ser curioso que o contingente japonês seja colocado no Iraque com a condição de não se envolver em combates. É como atirar alguém à água com a condição de não se molhar.
Mas o Pentágono sabe o resultado que terá o envio cada vez mais consistente de "guerreiros de fim-de-semana" (as unidades da
National Guard) para substituir os profissionais da 82ª ou da 101ª aerotransportadas, ou dos Marines, por isso continuam à procura de mais voluntários estrangeiros para os substituir. No entanto, é pouco provável que reunam as dezenas de milhar de efectivos necessários para o controlo real da situação - algo que nem os EUA conseguem, apesar do elevado número de militares no Iraque. Esses efectivos deverão lá permanecer, portanto, o que é exactamente o oposto do que a opinião pública norte-americana espera que aconteça, uma vez apanhado Saddam Hussein. Em boa verdade, seria uma consequência lógica, caso a população odiasse mais o ditador que os norte-americanos... O problema é mesmo esse. A teoria (teologia?) da libertação e democratização não se confirmou. Na prática, os iraquianos não querem a democracia; isto é, poderão vir a adoptá-la, um dia, mas não agora e, sobretudo, não imposta à baioneta e muito menos pelos amigos de Israel. Enquanto país democrático e defensor da liberdade e dos direitos individuais, os EUA não têm crédito nenhum no mundo árabe. Por mais palavras bonitas que se digam e escrevam - como as de Colin Powell no seu lírico texto do especial "
The World in 2004", da revista
The Economist - nada apagará meio século de jogos de poder no Oriente Médio, que 99,9% das vezes favoreceram os israelitas e desprezaram os palestinianos.
É preciso não esquecer que estamos a falar de uma civilização que ainda não esqueceu as Cruzadas e os "feitos" dos Cavaleiros da Fé, o que não pressagia nada de bom quanto à forma como os EUA serão vistos pelo mundo árabe nos próximos séculos. Pois é.
A captura de Saddam Hussein pode bem ser um presente envenenado para Washington, pois o povo entende facilmente a necessidade de capturar o "chefe", a "cabeça". As comparações com Adolf Hitler iam nesse sentido. Para a dita estratégia de política externa norte-americana, ter "maus da fita" a monte ajuda a explicar ao povo o porquê de manter um exército a milhares de quilómetros de casa, mas uma vez estes capturados, já não é tão fácil justificar o gasto de milhões de dólares e a perda de centenas de vidas para eliminar uns tantos "Hussein" e "Mohammed", numa lista extensa que ninguém percebe e cujos nomes ninguém conhece.
No Iraque, era o "Ás de Espadas" que era preciso apanhar. As outras cartas eram importantes, mas de importância incomparável para o norte-americano comum, martirizado e catequizado pelo papel absolutista de Saddam Hussein como leader do Iraque, secundado pelos dois filhos mais velhos, agora mortos.
Só assim se percebe que, apesar das condições humilhantes, ridículas, em que Saddam Hussein foi encontrado, se chame ainda "decapitação" à sua captura. Decapitação de quê? Era um velho enfiado num buraco infecto, a comer barras de Mars, com uma mala de dólares ao pé. A guerrilha e o terrorismo (duas realidades distintas que coexistem no Iraque de hoje) não dependiam dele e da sua mala de dinheiro. A sofisticação das acções, a sua frequência e o número de envolvidos, sugerem que se trata de algo mais - ou mesmo de vários "algos". De qualquer das formas, seria impossível coordenar essas acções a partir de um buraco no solo, no quintal de um casebre, sem comunicações excepto as mantidas por estafetas.
Que "troféu" é este?
A máquina de propaganda norte-americana e dos que apoiaram esta guerra tenta convencer o mundo de como foi óptimo apanhar Saddam Hussein, mas isso é inteiramente desnecessário. Praticamente todo o mundo suspirou de alívio ao saber que o ditador fora apanhado e se sentiu feliz com isso - isto não implica que praticamente todo o mundo se tenha esquecido de como começou esta guerra e porquê.
De facto, o que se pretende com tanto entusiasmo, como se Saddam Hussein fosse capturado num
bunker cheio de armas químicas e comunicações
state of the art, defendido até à morte por um batalhão de pretorianos, é esconder que sucedeu uma das duas coisas que Washington mais temia, precisamente por não ser o "Ás de Espadas" o mentor da guerrilha e do terrorismo no Iraque.
A primeira era capturá-lo morto, transformando-o num mártir islâmico; a segunda era capturá-lo vivo, criando um "Mandela" árabe. Qual das duas a pior? Desgraçadamente, para todos nós, a que aconteceu. Saladino acorrentado.
Saddam Hussein devia ter desaparecido, pura e simplesmente. A História pode bem com mitos sebastianinos, mas lida muito mal com mártires, mortos ou vivos, principalmente se forem árabes.
Quanto ao que penso de tudo isto, devo dizer que fiquei feliz com a notícia. O título da minha entrada "
Good news?" era interrogativo porque não tinha ainda sido confirmada a captura de Saddam Hussein quando a escrevi, além de que os factores que agora expus já andavam na minha cabeça.
Para os que amam a liberdade e a justiça, a captura de Saddam Hussein é uma boa notícia, mas para todos os que pensam que liberdade e justiça são valores subjectivos, esta é, em definitivo, a pior notícia que podiam ter. E entre eles se conta a linha dura da administração norte-americana. Veremos como vão descalçar esta bota.
Yes, you got him.
Now what?
Rui Semblano
Porto, 17 de Dezembro de 2003
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