sábado, janeiro 17, 2004

Monstros


Lido no Público de 16Jan2003:

--- quote ---

(...)
Em suma: nenhuma solução baseada na força bruta, no "apartheid" ou nas retaliações indiscriminadas garantirá algum dia a paz a Israel. Ora o drama de Israel é que Ariel Sharon nunca aprenderá tal lição elementar.

--- end quote ---


(extraído do editorial de José Manuel Fernandes, intitulado "A Mãe-Bomba" - ver versão on line aqui)

Não é que o texto esteja mau, nem sequer que não exprima o tipo de ideias a que José Manuel Fernandes nos habituou, usualmente baseadas na bitola norte-americana - ou talvez seja o seu modo de imitar as "condenações" de Washington à política israelita para a Palestina; o certo é que não tem nada a ver com quem o escreveu.

Reem Raiyashi, a jovem palestiniana suicida, de 22 anos e mãe de dois filhos, optou pelo mesmo método bestial de retaliação contra Israel que tem vindo a ser usado um pouco por todo o mundo islâmico. Mas o seu alvo, ao menos desta vez, era legítimo. As vítimas mortais eram militares ou para-militares israelitas.
Como já aqui referi, uma coisa é fazer explodir um autocarro civil em Telavive, outra é fazer explodir uma coluna militar, um veículo militar ou... um posto de controlo.

Os postos de controlo são particularmente odiosos.
Através deles, Israel sufoca o futuro Estado palestiniano. São, quanto a mim, não só um objectivo militar legítimo como um dos que importaria eliminar de todo.
Não é raro que militares israelitas detenham ambulâncias palestinianas por mais tempo que o necessário nesses postos. Se o doente transportado estiver mesmo mal, pode morrer ali mesmo, perante a fleuma dos israelitas. Já aconteceu.

Apesar da natureza deste alvo e das vítimas mortais do atentado de Reem Raiyashi não serem civis, a sua razão de ser é a mesma dos que optam por alvos mais "suaves". E o catalisador desses ataques é exactamente o mesmo. Daí que ache estranho, no mínimo, que José Manuel Fernandes venha agora "explicar" a origem deste ódio, socorrendo-se desta jovem mãe infeliz.

Caro José Manuel Fernandes,

O ódio dela foi alimentado pelo mesmo monstro que alimenta os animais que se fazem explodir no meio de mulheres e crianças judias. E nem mesmo existe a certeza de ter sido escolhido o objectivo como militar. O mais certo, aliás, era que Reem Raiyashi se fosse fazer explodir num qualquer autocarro israelita, tendo accionado os explosivos no posto de controlo por ter sido exposta pelos militares.

E se quer que lhe diga, na Palestina, como em Israel, como em todo o lado, não existem bons monstros ou maus monstros. Apenas monstros. O que foram antes de se tornarem bestas é irrelevante.

Um cão pode ter sido o mais dócil e carinhoso animal do mundo, mas uma vez enlouquecido, é abatido da mesma forma que outro que sempre foi raivoso. As diferenças entre ambos estão no passado, não no presente. No presente, essas diferenças são simplesmente inexistentes.

Rui Semblano
Porto, 16 de Janeiro de 2004

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