O ano que passou não foi muito bom para a Europa, mas o que esperar de 2004? Os que se opuseram à invasão do Iraque chegam a regozijar com a posição do eixo franco-alemão, como eu o cheguei, expressando-o publicamente nas páginas do Público em carta ao director, "
Valha-nos a Velha Europa", datada de 30Jan2003 e publicada a 01Fev2003, se não me falha a memória... (ver
Anexo abaixo). Não era tanto pelos Governos de França e Alemanha que me regozijava, antes por estes reflectirem acertadamente a opinião das suas opiniões públicas, pois quanto aos motivos de Chirac e Schröder a conversa é outra. Os interesses de ambos no Iraque, desde contratos petrolíferos à indexação do petróleo iraquiano ao euro, foram determinantes para a oposição do eixo franco-alemão à política norte-americana para o Golfo Pérsico. Não fosse isso e existisse um "entendimento" quanto à partilha dos despojos de guerra e hoje teríamos a Legião Estrangeira em peso em Tikrit e uma Divisão
Panzer em Falluja.
A agenda escondida de franceses e alemães é cada vez mais aberta e tem como principal objectivo a obtenção de mais poder e influência no plano interno (UE) e no externo (ONU, OMC...). A visão da Europa perfilhada um dia pelo Europeu comum, enquanto espaço agregador de diferentes realidades e culturas com a mesma identidade geográfica sob uma só bandeira, começa a esbater-se neste jogo perigoso. E tão perigoso é que arrisca o desmembramento da UE, tal como a conhecemos, sendo o cenário mais certo o limitar da Europa dos 25 a uma mera Hansa, enquanto se cria um núcleo duro com real significado político, económico e, porventura, militar - embora esteja na estrutura militar futura da UE uma das possíveis plataformas de entendimento e salvação, já que uma UE militarmente forte depende de todos os seus membros em termos de efectivos.
Rumsfeld não estava completamente enganado ao falar de duas "europas", mas eu não lhes chamaria "velha" e "nova", além de que, aparentemente, existem bem mais que duas. Desde o grupo original que fundou a UE ao Reino Unido orgulhosamente só (mas "remando" para Oeste); dos países mediterrânicos (entre os quais Portugal não se encontra, por mais líricos que queiramos ser) aos países de Leste; e não nos esqueçamos dos "não alinhados" como a Suíça e a Suécia ou os
euro-wanna-bees como a Turquia.
A Europa como entidade una a nível político, que exceda a mera organização económica, é cada vez mais uma miragem. A integração das economias da zona euro é uma anedota de que o PEC foi o paradigma; o respeito por cada um dos Estados membros é exaltado no papel para ser espezinhado na prática; assinam-se cartas atrás das costas uns dos outros, hoje a favor, amanhã contra... As presidências rotativas vão esgotando a sua razão de ser e produzindo diplomas de circunstância e regulamentos internos que a poucos mais dizem respeito para além dos eurocratas de serviço, enquanto passam as batatas quentes de umas para as outras, como no caso da Constituição Europeia, que acabou por se tornar num calhamaço que ninguém lerá por completo (a começar pelos cidadãos comuns...).
Seria razoável que uma estrutura como a Europa se construísse de cima para baixo, isto é, harmonizasse e simplificasse, passando o conceito às estruturas dos países membros. Nada disso. As tentativas de criação de um espaço coerente em termos políticos resultaram num projecto de Constituição que não se compreende e em que ser holandês, belga ou espanhol é ainda mais importante que ser europeu.
A minha identidade, enquanto portuense, nada me impede de sentir a nacionalidade portuguesa. No entanto, a minha cultura é muito diversa da de um lisboeta ou de um algarvio, mas considero qualquer um deles tão português como eu e com os mesmos direitos e deveres que eu - e reciprocamente.
Do mesmo modo, apesar das ainda maiores diferenças culturais, a que se juntam as linguísticas, considero-me tão europeu como um polaco ou um grego e, da mesma forma que ser português não me retira em nada a identidade portuense, ser europeu nada me tira da identidade portuguesa. O resto é política e democracia. Bem usadas, transformarão a Europa num espaço federal em que teremos orgulho de viver e ter como compatriotas gentes tão diversas como as eslavas e as mediterrânicas. Se mal usadas, como têm sido, dá nisto. Cada um a rezar ao seu santinho, esquecidos de Deus.
Continuo a pensar que o futuro nos reserva uma Europa Federal, primeiro, e um Mundo Federal, depois, quando os grandes espaços (como África, o Médio Oriente, a Ásia e a América do Sul) se estruturarem de modo similar. Pura futurologia, sem dúvida, e nada que os meus bisnetos venham a ver, mas talvez os seus vejam, se ainda existir um Mundo para unificar quando viverem.
O que acredito é que mesmo o primeiro passo nesse sentido, a Europa Federal, não será para os meus dias. Para os dos meus filhos? Não sei. Talvez nem para eles. Mas existirá. E será uma entidade homogénea, delimitada a Oeste pelo Atlântico e a Leste pela Grande Rússia. A Turquia, apesar da herança da NATO, nunca será Europa. Nunca o foi. Ou o Líbano será Europa. E Israel, já agora. Ainda sobra espaço para o Zimbabwe e para a Coreia (do Sul, claro!), a não ser que os EUA a metam na NAFTA, junto com a Turquia, que já convidaram.
A Europa é, antes de mais nada, um espaço geográfico, ponto final. Se vamos pelas afinidades culturais, laços históricos, traços sociológicos, qualquer dia teremos todos os países que já foram colónias europeias a pedir a adesão. Aliás, qualquer país da Commonwealth tem mais afinidades com a Europa do que a Turquia... Exceptuando o "Eurofestival" da Canção!
Quem tem mais responsabilidades no falhanço do projecto europeu? Quanto a mim, dois países partilham a maior parte delas - e em doses quase iguais: a Alemanha e o Reino Unido. E não vale a pena desancar nos franceses, pois estes agarraram-se à Alemanha para não perder a boleia e o eixo franco-alemão é mais uma operação parisiense de controlo de danos que outra coisa qualquer.
A Alemanha procura claramente o que o Japão procurou (e ainda procura) após a Segunda Guerra Mundial: conquistar pela economia o que falhou pelas armas. O mal-estar provocado em Berlim pelas posições de Varsóvia quanto à guerra no Iraque e à Constituição europeia tem em si as sementes do Pangermanismo. A integração da Polónia na UE é uma vitória que os polacos não querem dar à Alemanha; uma vitória que, porém, os alemães já obtiveram, conscientes do que é o euro, na realidade, somado com uma herança cultural que nunca deixou de ser prussiana. A procura de mais poder económico - e, por sua via, político - é uma constante da política alemã desde a queda do muro de Berlim. Lentamente, a Grande Alemanha reconstitui-se sob os nossos olhos. Para o caso de não terem reparado, existem já muitos mais europeus que falam alemão e trazem euros nos bolsos que quaisquer outros - e em breve serão muitos mais!
Quanto ao Reino Unido, a sua vocação sempre foi claramente Atlântica (De Gaulle é que tinha razão...) e não nos devemos esquecer que o seu império cobriu, um dia, um quarto da superfície deste planeta e que a Commonwealth não é miragem nenhuma. A ligação de Londres a Washington excede em muito a partilha dos mesmos "ideais democráticos e liberdade para todos" e a distância que vai de Portsmouth a New York é muito menor que a que separa Southampton de Callais... Embora não pareça.
Temos assim o país europeu sem o qual não é viável uma estrutura militar coesa e digna de nota mais interessado em alianças externas à Europa e o país europeu sem o qual não é possível um espaço económico forte mais interessado na glória nacional de antanho... De facto, nenhum deles está muito interessado na Europa - no que a Europa poderia ser. Restam as "humanidades" e os pequenos-burgueses. Os outros vêem passar navios. Como nós.
Ser europeu é ainda uma ideia demasiado abstracta. A última fronteira, o que nos poderia identificar como europeus, esbate-se com a proposta de adesão da Turquia, de que já se disse ser óptima para os turcos! Pudera! Até para o Burkina Faso! É o vale tudo, uma vez mais, e já quase ninguém vê aqui Europa alguma.
Existe a Europa de alta velocidade (à qual nem de TGV lá chegaremos), a de média velocidade e a de baixa velocidade, mas existe pior! Existe a Europa virtual, que vai de Portugal à Mongólia!... Começa a ser ridículo.
Os instrumentos criados para harmonizar as relações políticas e económicas entre os membros da UE resultam todos ao contrário. Chega a parecer que quantos mais existem, menos nos entendemos uns com os outros. É a morte lenta da consciência europeia; já não pensamos como europeus. Justamente quando pensamos sê-lo surge um Chirac a quebrar o PEC ou um Portas a clamar pelo Império e pela cristandade...
Não sei o que se seguirá à UE que hoje conhecemos, mas sei que a única coisa que a segura, neste momento, são as moedas que trago no bolso e nada mais.
E é muito pouco.
Rui Semblano
Porto, Dezembro de 2003
ver O Passado Imperfeito - Parte 1
Anexo:
From: Rui Semblano
To: Público
Sent: Thursday, January 30, 2003 1:24 PM
Subject: Carta ao Director
Valha-nos a "Velha Europa"
Depois do discurso do Estado da União parece cada vez mais evidente que os EUA farão a guerra com o Iraque por motivos que nada têm a ver com a intenção de desarmar Saddam Hussein ou sequer com o objectivo de "libertar" o povo iraquiano. A não ser assim, em lugar de agendar para 5 de Fevereiro a apresentação nas Nações Unidas das alegadas "provas" contra o Iraque, teriam não só revelado esses dados, publicamente e de imediato, como passado a informação aos inspectores da ONU mais cedo, para que actuassem em conformidade.
Sendo assim, a hipocrisia desta Administração norte-americana torna-se clara. Dizem saber quais as faltas de Saddam Hussein, mas não usam essa informação para permitir à ONU que a use no terreno de forma expressiva, antes a guardando como trunfo para "justificar" a sua guerra.
Só lamento que, quando se tornam evidentes estes factos, Portugal alinhe com esta posição do governo dos EUA. Se o tivésse feito mais cedo, ao menos poderia alegar que, por princípio, não voltaria atrás. Agora, a posição de Portugal torna-se tão hipócrita como a da Administração norte-americana, com a agravante de tomarem partido contra o eixo franco-alemão num momento particularmente significativo, em matéria de União Europeia. Parece que Durão Barroso tem pressa de se juntar à "Nova Europa", segundo Rumsfeld.
Valha-nos a "Velha".