Speed is not how fast you can driveBut how fast your mind worksRui SemblanoA sinistralidade nas estradas portuguesas já fez verter muito mais tinta do que sangue e, ainda assim, a maior parte dela quase se esgotou numa palavra: velocidade.
Ainda há pouco tempo, n'
A Fábrica, recordava ao Filipe Pinto que o resultado de um choque entre dois veículos que se movem a 50 km/h cada é igual ao choque de um deles a 100 km/h contra um obstáculo imóvel. Culpar a velocidade pela desgraça que é a condução em Portugal é demasiado fácil.
O que não se diz, mas é a pura realidade, é que o verdadeiro motivo para tanto acidente é a distracção; a total despreocupação com que se encara o acto de conduzir. De facto, conduzir um veículo automóvel tornou-se tão banal como ver televisão ou falar ao telemóvel, sendo encarado como algo simples, fácil, corriqueiro. Algo que qualquer um pode fazer. As razões para tanto sangue derramado na estrada começam aqui.
Quantos de nós não ouviram já a desculpa "estava distraído" aplicada à condução? E quantos de nós não a usaram já? Eu já a usei, embora a minha distracção seja algo diversa, 99% das vezes. Em determinadas alturas, estou tão concentrado na condução que falho uma saída, um desvio no trajecto. Nesses momentos, não tento "corrigir" o "erro", o que poderia resultar numa manobra muito perigosa; antes deixo-me ir no fluxo. Por contra, a maioria dos condutores pensa demasiado no seu trajecto e quase nada na condução. E a maior parte dos que estão ao volante viaja como se fosse um passageiro, alheios à estrada em si e tão atentos à paisagem como os que com eles viajam no automóvel.
Milhares de vezes a minha esposa não consegue evitar um "olha isto" ou "olha aquilo", ao que invariavelmente respondo "olha tu", quando conduzo. Adoro conduzir, automóveis ou motos, mas quando conduzo só a estrada me importa. No final de uma viagem, recordo esta ou aquela curva, o pior asfalto aqui e o paralelo acolá, aquele cruzamento manhoso, mas não tenho memória de castelos, de aves nos céus ou de qualquer ponto de interesse nas paisagens que atravessei. Não me lembro de nada nem de ninguém que não estivesse directamente relacionado com a minha condução ou no meu campo visual.
E a minha prioridade é sempre a mesma em toda e qualquer viagem: chegar vivo e em segurança. Para mim, a estrada é um local perigoso e os veículos que nela circulam são verdadeiras armas, prontas a disparar. Tendo consciência de que a maior parte dos condutores não faz a mínima ideia do que está a fazer, conduzindo como quem está a ver o Travel Channel, isto é, como quem está a fazer outra coisa qualquer, obrigo-me a ter atenção por mim e por eles.
Um exemplo:
Em condições de perfeita visibilidade, vejo um camião TIR que se desloca em sentido oposto a mim com um automóvel colado a ele. Eu vejo-os ambos e eles devem ver-me, mas reajo como se não fosse assim porque sei que a maior parte das vezes não é assim. A possibilidade de um dos condutores ir completamente distraído é assustadoramente elevada para que a ignore. O TIR dá sinal que vai encostar à berma e abranda; estou a aproximar-me e "sei" o que vai acontecer. O condutor do automóvel atrás do camião, apercebendo-se da sua eminente paragem, sai da sua traseira como se não houvesse mais ninguém na estrada. Se eu não "soubesse" que ele ia fazer aquilo, teríamos chocado frontalmente.
É um processo esgotante e que requer toda a concentração. Não atendo telemóveis, mesmo com o sistema de mãos livres, e raramente converso. Sinto-me como um piloto de caça em ambiente hostil e, a cada vez que chego ao destino, fico feliz por ter conseguido escapar mais uma vez, agradecendo aos céus e ao carro ou moto que conduzi (falo com eles como se fossem capazes de me entender).
Um veículo automóvel é uma arma.
Enquanto não se agir em conformidade, continuarão a morrer muitas pessoas nas nossas estradas, porque conduzem como se não fosse assim, porque não sentem que têm uma arma nas mãos e, com ela, a responsabilidade inerente ao porte e uso de arma. Conduzir nas estradas de Portugal é como ir à caça com um bando de distraídos que não faz ideia do que é uma caçadeira ou uma carabina e que, de vez em quando, disparam sem saber como e matam alguém, dizendo "Oops! desculpem lá! Estava distraído!".
Da próxima vez que conduzirem em viagem, mesmo curta, lembrem-se de que estão a atravessar uma zona de guerra, cheia de gente armada e inconsciente. Se assumirem essa atitude poderão não recordar nada das paisagens que percorreram, mas as probabilidades de chegarem vivos aos vossos destinos aumentarão dramaticamente.
E se quiserem ver as vistas ou conversar muito pelo caminho, por favor, vão de combóio.
Rui Semblano
So let's be careful out there.
Keep your eyes on that road.Sukhwinder Singh, Sapna Awasthi feat. Panjabi Mc Chaiyya Chaiyya Bollywood Joint - Inside Man ost
Gostei imenso deste post, amigo Rui. O difícil é guiar assim, falo por mim e penalizo-me, porque mesmo usando de cuidados chego por vezes ao destino sem saber como, como se o carro fosse sozinho e sem me lembrar de como fiz o trajecto.
ResponderEliminarNão consigo manter a atenção 100%, e sempre me distraio com outras coisas, não a olhar para o lado ou para a paisagem, mas embrenho-me muitas vezes em pensamentos quando ao volante.
Conduzo vai para uns bons anos, digamos muitos, e já me safei de situações bem delicadas a que, atribuo sempre a culpa aos outros, como o normal condutor médio português.
Não tendo até hoje, felizmente, nenhum acidente que mereça ser lembrado para além de alguma chapa amaçada, tenho consciência do perigo que nos ronda nas estradas.
Reparo que a foto que ilustra o post não é inocente, e tem com certeza a ver com os últimos números do passado fim-de-semana e que demonstram como se cometem muitas barbaridades por essas estradas.
Um abraço e bom resto de domingo.
PiresF:
ResponderEliminarCaro Pires,
Chegar ao destino "sem saber como" acontece-me também. Por vezes, chego a casa da minha mãe (que foi a minha casa, afinal) sem saber como, em lugar de ir para onde queria ou até para minha casa. Chamo-lhe o "piloto automático". Essa condução não é perigosa pelo simples facto de que o condutor funciona como um verdadeiro autómato, a baixa velocidade e respeitando toda e qualquer regra ou sinal. A distracção de que falo é algo muito diferente, pois tem lugar em sítios onde o "piloto automático" não funciona (não conhece a zona o suficiente) e onde se reage sem pensar. Por exemplo, se o condutor que ia atrás do TIR que referi fosse em "piloto automático" não se teria desviado do camião para o ultrapassar, antes esperaria que ele saísse da estrada por completo e só depois avançaria, isto é, o "piloto automático" segue o caminho à risca, sem "inventar" ou tomar iniciativas. O condutor distraído, ao perceber um obstáculo ou uma falha, reage sem pensar no que está à sua volta.
A foto do motociclista tem a ver com a doidice que chegou às duas rodas (inexperienntes com motos potentes de mais), mas também nos automóveis a doidice é igual. Controlar um carro com 180 cavalos a curvar não é para qualquer um, mas qualquer um o pode conduzir. Enfim... Como em tantas outras coisas, esta é uma batalha a travar nas mentes das pessoas e não é com multas e radares e limitadores que lá vamos. Se a autoridade investisse em pedagogia e prevenção o que investe em punição, existiriam muito menos acidentes. Aliás, o chamado excesso de velocidade é usualmente o não se saber fazer uma curva a 80 Km/h que se pode até fazer em segurança a 100 Km/h numa zona de limitação a 50 Km/h... A solução será ir a pé? Esclarecedor.
Um abraço,
RS
Caro RS
ResponderEliminarO anonimato dá expressão ao verdadeiro carácter e a completa falta de respeito pelo outros e pelas regras sociais esta em flagrante nas estradas portuguesas.
O seu post põe em destaque vários problemas, que campanhas não vão solucionar, ajudam mas essencialmente terá de haver uma revolução nas consciências.Quando a maioria estiver empenhada em ser responsável e aceitar responsabilidade pelas seus actos ,poderá então exigir dos outros.
Malou
Caro Rui, fantástico Post. Isto é que é colocar o dedo na ferida. Em vez de se arranjarem os habituais bodes expiatórios, a velocidade, o alcool, as estradas, há que reconhecer que os maiores problemas são a falta de responsabilidade, a falta de formação e a falta de civismo dos nossos condutores. A condução é encarada de ânimo leve como se se tratasse de algo corriqueiro. Nós os Portugueses quando entramos no nosso automóvel transforma-mo-nos em verdadeiros Fangios, borrifando-nos para tudo e todos, sem pensar na nossa segurança nem na dos outros.
ResponderEliminarFelizmente acho que me posso considerar um condutor consciencioso. Tenho muita atenção ao que vou a fazer, e tomo atenção redobrada para com os outros condutores. Também me acontece ligar o piloto automático, vou tão concentrado que, basta a minha mulher fala comigo e a partir daí o carro vai sempre em direcção a casa, apesar de ter que ir levar uma colega que mora numa rua perto... enfim, dou a volta e levo pessoa ao seu destino. Ainda este fim de semana fiz uma viagem até Sendas (concelho de Macedo de Cavaleiros), pelo famigerado IP4 e tive uma viagem tranquila, quer na ida quer no regresso. Não cumpri os limites de velocidade impostos, mas fi-lo com toda a segurança e sem me exceder (Acho que 150 KM/h na Auto-estrada e 110 Km/h num IP4 deserto são velocidades perfeitamente seguras). Muito importante também é ter consciencia das capacidades do nosso automóvel. Não podemos curvar a 150 Km/h com pneus 135, ao passo que com pneus 215 e suspensão desportiva já é perfeitamente seguro.
Quanto à caça à multa e respectivas penalizações, há que mudar de estratégia, investir em formação, quer de condução quer de civismo. Desta forma ter-se-iam melhores resultados do que com penalizações. Inviestir na prevenção é o caminho. Se o problema nalgum troço é o excesso de velocidade, em vez de se colocar um radar no meio do mato, escondido, por que não colocar na berma, à semelhança de outros países um carro da polícia de papelão? Como não se consegue distinguir ao longe se é um carro verdadeiro, os condutores abrandam a velocidade, resolvendo-se assim o problema. Mas não, é mais fácil, multar e engordar os cofres do estado.
Permite-me saudar a magnifica escolha da imagem do automóvel no início do Post, é que eu tenho um Alfa Romeo 156 Sportwagon, e é um carro fabuloso. Adoro o meu carro e adoro conduzir, e garanto que conduzir este carro é um verdadeiro prazer. O Alfa 159 que está na imagem é o carro que eu gostaria de ter daqui a uns anos... Talvez quando acabar de pagar este...;)
Para terminar permite-me lembrar o teu alter-ego de condutor perigoso, do teu conto "The Exorcist" de 2000. Aqui deixaste de ser um condutor conciencioso, para um condutor que exorcisa os seus fantasmas, através da velocidade. Espero que sejas assim apenas na escrita e não na estrada. ;)
Um grande abraço,
Nuno
Malou:
ResponderEliminarNão existe ser mais rasteiro e repugnante do que alguém que foge de um acidente que acabou de provocar. Em Portugal, é uma situação muito vulgar. De facto, a irresponsabilidade na condução é nada mais que o reflexo do ponto a que chegou a nossa noção de cidadania, isto é, nós, nós, nós e depois nós. Os outros que se danem. Mais que uma ferida social, esta é uma chaga que tem de ser aberta e sangrada para que depois sare. Falta coragem para verter um pouco do sangue próprio no processo. Por isso se continua a verter sangue alheio.
Um abraço,
RS
Outsider:
Caro Nuno,
Começo pelo final do teu comentário: a 159 sw é o meu sonho. Quando levo o meu HLX à Fiat, lá está ela, sossegadinha, os nervos à flor da pele... Quem sabe, um dia.
Ainda bem que conduzes como dizes, pois é assim que se vive por mais tempo nas nossas estradas, conduzindo por nós e pelos outros. A maior parte dos limites de velocidade existentes são uma palhaçada e a emboscada continua a ser a táctica predilecta das forças da "ordem", apostadas na caça a qualquer custo. Esperemos que a mentalidade se vá alterando, mas não sou muito optimista em relação a isto.
No que respeita à técnica, que mencionas ao referir os tipos de pneus e como influenciam a condução, raramente os condutores conhecem os seus limites e os da máquina que conduzem. Respeitar ambos é fundamental para conduzir em segurança.
Quanto ao condutor que descrevo no conto The Exorcist, lembro-te que ele conduz de madrugada numa cidade deserta, mas concordo que mesmo assim não é algo que se faça todos os dias. Já cometi a minha dose de loucura ao volante, só que o fiz com um Fiat 126, não com uma bomba de 150 ou mais cavalos. Começar por baixo devia ser obrigatório e a limitação de potência aplicada aos que começam a conduzir motos devia vigorar também para os carros - acrescida de um dado fundamental: os quilómetros percorridos. Por muito deficiente que fosse tal sistema, pois é impossível determinar ao certo quantos km cada um faz, seria algo que melhoraria a percepção da experiência de cada condutor, na hora de adquirir uma máquina potente.
Obrigado por teres enriquecido esta entrada com o teu testemunho,
e uma boa semana,
RS