segunda-feira, junho 19, 2006

Esta é a ditosa Pátria, minha amada?




Por estes dias, o orgulho nacional tem no futebol a sua única razão de existir. A nós, pouco importa que o país esteja a afundar-se no lodo, desde que o resto do mundo pense que Portugal é um dos maiores entre os maiores da bola.
Tal e qual como o Brasil.




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Em que medida tem a selecção nacional de futebol do Brasil contribuído para tirar o seu país da miséria? Em nada. Tal como o Carnaval, é um mero escape. Enquanto duram, o Carnaval ou o mundial de futebol, o Brasil esquece as suas prisões, as suas favelas, os seus condomínios-fortaleza, os seus sem-terra, os madeireiros da Amazónia, os "mensalões" e os "anualões" dos políticos, o analfabetismo, a criminalidade, tudo. Passa a viver nas televisões de todo o mundo, como uma novela em que a ilusão de uma mulata coberta de pó de ouro ou de um menino de rua tornado ídolo da bola mostram o que o Brasil não é, mas passa a ser nos cafés de Marselha ou de Tóquio, nos pubs de Dublin ou nas esplanadas de Melbourne.

A imagem projectada por estes eventos cria um Brasil de sonho que passa a ser real para os estrangeiros, os que estão longe de saber como é, de facto, o Brasil. E para os brasileiros? Terminado o mundial ou o Carnaval, os jogadores regressam aos seus clubes milionários como as mulatas despidas do ouro regressam às suas favelas; os brasileiros, esses regressam ao seu surreal quotidiano, melancólico e repetitivo, em que tentam o equilíbrio que lhes permitirá escapar à queda definitiva no abismo... Muitos deles, porém, já nele caídos, apenas sonham ser possível regressar ao arame, um dia. Aguentar ao menos para chegar àqueles três dias por ano ou àquelas semanas mágicas, de quatro em quatro anos. Vivem para isso. Muitos vivem por isso. O resto, como veio demonstrar Lula da Silva, é um pesadelo de que não se acorda verdadeiramente. Um Brasil sem Carnaval e sem Mundial de futebol seria um inferno que nem as telenovelas ajudariam a suportar.

Afinal, dirão alguns, sempre faz alguma coisa pelo seu país, a selecção do Brasil. Pois faz. Mas nada que o tire da miséria. Querendo ou não, até ajuda a que a miséria se mantenha. E agora pergunto: é isto que queremos para Portugal?

Ao ver uma bandeira portuguesa pendurada numa varanda de um prédio degradado, imagino o tipo de orgulho nacional que sente a alminha que a lá pôs. Hoje, não consigo vibrar com as vitórias da selecção "de todos nós", porque hoje, a nossa Nação está reduzida a um trapo pendurado à janela, com o patrocínio de um Banco, de um jornal ou de uma loja de electrodomésticos... Não admira que os brasileiros se sintam cada vez mais em casa neste país.
E se, por um acaso, Portugal for campeão neste mundial de futebol, o povinho vai sair à rua, em histeria completa. E passaremos a viver no melhor país do mundo.

Rui Semblano
19 de Junho de 2006


nota post(erior):
Este texto foi publicado nas Cartas ao Director do jornal Público de 22 de Junho de 2006, com o título "Orgulho Nacional". (na edição Web - impressa - link só para assinantes do publico.pt)

6 comentários:

  1. Parece que infelizmente assim é. Os portugueses em vez de se unirem em torno da esfera armilar, só se unem em torno do "esférico". Só nos conseguimos unir em torno da bola e da selecção, é bonito mas, inconsequente, pois o mundial acaba daqui a algumas semanas e lá se vai a união.
    Equanto andamos embevecidos pela bola, passam-nos ao lado as verdadeiras questões do país, aquelas em torno das quais nos deveriamos unir... Mas somos portugueses e já sabemos que vai ser sempre assim.

    Um grande Abraço,
    Nuno.

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  2. Outsider:
    Será que vai ser sempre assim, Nuno? Espero que não. Ou não estaria aqui a escrever. Penso que todos podem fazer alguma coisa para alterar este rumo que Portugal tem tomado - e não falo de socialismos ou sociais-democracias ou comunismos. Falo de pessoas conduzidas por pessoas. O resto, como o futebol, é folclore.
    Até quando?

    Um abraço,
    RS

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  3. Infelizmente concordo com os dois. Verdade, parece que nos unimos apenas para falar de futebol ou de alguma coisa que com ele tenha relação. Mas, acho que não será sempre assim, até porque se fosse não estaríamos aqui nós a criticar este tipo de comportamento, A Sombra não teria escrito o post que escreveu e nós na Conspiração dos Sapientes não nos sentiríamos da mesma maneira. O problema é que mesmo com espírito critico, todos nós ou quase todos, nos orgulhamos um pouco nestas situações. Não interessa se gostamos muito de futebol ou não, não interessa se achamos que tira o foco a coisas mais importantes, no momento, interessa é que, mesmo mal direccionado, mesmo aqueles que quase nunca o têm, mostram o seu espírito patriota, se é que o podemos chamar assim, e por umas semanas paramos de reclamar de tudo sem fazer nada, como alias é habito, para não reclamar e não fazer nada. Por isso deixemos lá se falar de futebol, deixemos mesmo até que o assunto se exauste porque a verdade é que em 2 semanas já passou e podemos todos voltar á normalidade, ver as telenovelas da TVI e reclamar de tudo novamente como nos fica bem.

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  4. Rui,

    apesar do espaço que tenho vindo a dedicar no Caderno de Corda ao Mundial de futebol - pois que também eu joguei, em tempos, à séria, e sonhei dar pontapés na bola diante de um estádio cheio -, aplaudo o teu post. Sendo eu um dos muitos impressionáveis pelo fenómeno, apraz-me saber que há quem o não seja - e por motivos certos; não mera "carolice". Constato também que posição semelhante à tua é, geralmente, subscrita por pessoas inteligentes e informadas - regra geral. Não me parece, no entanto, que o futebol seja raíz plantada na concavidade mais baixa do vale das misérias. Talvez o futebol pudesse até vir a ser, no futuro, dados os montantes tão avultados que movimenta, um meio para atingir um fim de boa vontade. Se me permites, publicarei hoje no Caderno um parágrafo deste teu texto, dando azo a algo semelhante ao contraditório no tocante a esta temática. Mas, Rui, confessa lá: também tu vais ver os jogos de Portugal dedicadamente e com um friozinho de ansiedade no estômago... Certo ou errado?

    :-)

    Um grande abraço

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  5. Rui: tinha deixado aí um comentário, não tinha? Ou será que estou a fazer confusão? Agora fiquei na dúvida.

    abraço.

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  6. nota:
    Este texto foi enviado ao Público e publicado hoje, 22Jun2006, nas Cartas ao Director.

    Organic Matter:
    (...) por umas semanas paramos de reclamar de tudo sem fazer nada, como alias é habito, para não reclamar e não fazer nada. (...)
    Acabas de retratar Portugal numa linha apenas. É isto... E é por isso que me sinto assim.

    Um abraço,
    RS

    Davi Reis:
    Amigo Davi,
    Como sabes, gosto bastante de futebol e não é pelo que escrevi que não vejo os jogos. Vejo o Mundial sempre que posso e acompanho a selecção, claro, mas não estava a mentir ao dizer que não sinto o mesmo de outras vezes. É que éu amo Portugal, mas apenas gosto imenso de futebol. A diferença entre estes dois sentimentos leva a que deseje mais que esta palhaçada acabe do que a selecção vá à final do Mundial.
    Acho que me entendes.
    E claro que podes usar o conteúdo d'A Sombra. Como referi no início deste bloco de respostas, este texto foi publicado hoje no Público. Mais público que isto é difícil! :)

    Fica bem, Davi.
    RS

    Sá Morais:
    (hehehe)
    Não, amigo Samurai. Não deixaste um comentário nesta entrada.
    Além deste. Fico à espera.

    Grande abraço,
    RS

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