Há muito tempo que não tinha notícias de um velho amigo, apesar de não vivermos tão afastados assim. Com ele e a sua família, íntima da minha, passei bons momentos, em Gaia e em Almeida, onde viveram os seus antepassados. Que saudade de Almeida... Há quanto tempo.
As recentes notícias que dele tive, porém, não são boas. Há pouco tempo atrás, foi vítima de um acidente de viação no IP4. Um veículo veio chocar frontalmente com o automóvel onde viajava, em companhia da esposa, do filho e da filha, ainda crianças. A pequena, mais gravemente ferida, encontra-se ainda no hospital (onde entrou em estado crítico) queira Deus que a recuperar bem.
Esta triste nova leva-me a escrever sobre um assunto que tenho evitado, n'A Sombra, dada a minha posição sobre o mesmo, que considero polémica: a segurança rodoviária. A segurança das nossas estradas é motivo de crescente alarme. As causas da sinistralidade automóvel, em Portugal, não são exclusivas de ninguém, contrariamente ao que alguns media, como a própria RTP e o seu bacoco "Prós & Contras" tentam ou tentaram concluir. O Estado mantém e faz construir estradas sem condições de segurança e recorrendo a materiais de fraca qualidade; os seus utilizadores, condutores de veículos motorizados de todas as espécies, ultrapassam de largo os seus limites pessoais, na forma como conduzem.
Conduzir, em qualquer parte do mundo, é um risco.
Mesma na melhor via rodoviária, o melhor e mais consciente condutor pode entrar na faixa contrária por motivo de uma falha mecânica ou por qualquer indisposição física; ninguém está livre, por exemplo, de uma avaria na direcção ou de um problema cardíaco, enquanto conduz. Acontece. E, quando acontece, pode provocar um acidente terrível. Em estrada, o risco está sempre presente, mas o que se verifica, em Portugal, é o aumento desse risco por culpa da atitude dos responsáveis pela construção e manutenção das estradas e dos que nelas circulam.
Dois exemplos, a demonstrar a responsabilidade partilhada desta forma:
1. Entre Condeixa e Tomar, numa estrada já de si manhosa que conheço bem, entro numa zona de curva e contra curva a 70 Km/h. O asfalto é novo. Demasiado novo. É noite e, de repente, as marcações desaparecem da estrada, exactamente entre as duas curvas. Não se trata de um "acidente". Verifico no regresso, dias depois, que continuam por pintar. No momento, valeu o conhecimento da estrada e as excelentes luzes do automóvel. A não ser assim, poderia ter saído da minha faixa...
2. Na via rápida que liga o centro de Gaia à Arrábida, saio de uma estação de serviço. Entro na via de quatro faixas junto a um cruzamento onde, no semáforo vermelho, se encontram parados dois automóveis, um atrás do outro, na faixa interior do sentido Gaia-Porto, onde me encontro. Lentamente, entre ficar atravessado atrás do segundo automóvel parado ou aceder à faixa exterior e parar no semáforo, opto por sair da traseira dele e assumir a posição junto ao cruzamento, à esquerda do primeiro automóvel. Então, começo a ouvir uma sirene. Não vejo a estrada na direcção do Porto, pois estou ainda atrás do segundo automóvel parado. Do lado de Gaia não vejo nenhum veículo. Polícia? Ambulância? Inconscientemente, prefiro aguardar até ver a origem da sirene e travo, ficando atravessado atrás dos dois automóveis parados, em lugar de continuar a manobra. No mesmo instante em que travo, vindo do Porto e na minha faixa, um Punto prateado passa a meio metro do meu pára-choques dianteiro, seguido de um carro da polícia de sirenes ligadas. Devia ir a uns bons 150 ou 160 Km/h... Se tivesse continuado a manobra, o que seria perfeitamente legal, teria levado com o desgraçado de frente, mais os polícias que não teriam tempo de reagir, àquela velocidade.
Provavelmente, numa como noutra situação e sem culpa nenhuma, poderia bem não estar a escrever estas linhas.
Vou ser sincero. Conduzo rápido. Sou um condutor "agressivo", isto é, conduzo com os olhos muito à frente do veículo que me antecede ou da curva que se aproxima e faço da potência, mais que da velocidade, a minha defesa, isto é, entre travar ou acelerar escolho 90% das vezes a segunda. Uso mais a caixa que os travões e uso a minha parte da estrada na totalidade. Em qualquer circunstância, de noite ou de dia, em estrada ou em cidade, conduzo com as luzes ligadas, hábito que tenho das motos.
Os meus limites, porém, conheço-os bem e são atingidos, normalmente, bem antes dos limites da máquina que conduzo. Mesmo quando conheço bem essa máquina, muito raramente chego ao seu limite, e quando tal acontece é porque ele é inferior ao meu - falo de 80 cavalos, no caso do Punto, e de 70 cavalos, no caso da Yamaha XTZ 750, que foi a minha última moto.
Já conduzi máquinas com mais de 100 cavalos e essas não lhes conheço os limites, nem nunca os procurei atingir na via pública.
Nas centenas de milhares de quilómetros, em duas e quatro rodas, que já fiz, em Portugal e em alguns países da Europa, já sobrevivi a malucos que encontrei de frente na auto-estrada e na cidade, a pesados em manobras, de noite, após uma curva; a obras não sinalizadas - e isto tanto em Portugal como lá fora, embora muito mais casos destes me tenham acontecido neste país que em qualquer outro, mas devo salientar que já fiz muita auto-estrada alemã sem limitação de velocidade e nem uma única vez passei pelo que passo em Portugal.
Como já referi várias vezes, n'A Sombra, a propósito de outros casos, tudo começa na formação. Pessoas bem formadas são incapazes de conceber ou construir estradas más e são incapazes de exceder os seus limites, uns e outros evitando, assim, atentar contra a vida dos que conduzem e dos que com eles viajam. Seja a que título for, a culpa será sempre da fraca educação que temos, que tem incutido um sentido de impunidade e desrespeito sem paralelo na nossa sociedade; na estrada, no trabalho... Em tudo.
Quando falamos de segurança rodoviária, portanto, não é de mais polícia ou GNR que falamos; não é de multas e radares e limitações; é de educação. Pura e simplesmente.
Rui Semblano
Porto, 23 de Outubro de 2003
nota:
Ao meu amigo Américo e à sua família, desejo que esta infeliz circunstância seja, em breve, apenas uma memória a tentar esquecer, e que todos recuperem desse trágico acidente da melhor forma possível.