domingo, outubro 19, 2003

Para acabar de vez com a justiça


Os exemplos são inúmeros. Cada vez que uma figura pública é chamada a depor, constituída como arguida ou levada a julgamento, para não falar de quando é presa preventivamente, começa a guerra das audiências e das vendas, nas televisões e nos jornais. Massacram-nos durante dias com notícias de abertura bombásticas, com base, tantas vezes, na dita "voz corrente" e nada mais. Depois lá virão os desmentidos lacónicos e as notas da redacção em letras pequenas, perdidas no meio das notícias locais ou das páginas de opinião... Sempre afastadas das aberturas e das primeiras páginas. Assim obriga a lei do mercado.

A indecisão em publicar uma manchete duvidosa custa muitos milhares de euros, porque há sempre quem não hesite em a publicar e recolher os dividendos; uma notícia não confirmada que não abra um noticiário televisivo pode custar a perda de audiência para outro canal menos escrupuloso e o reflexo no "share" pode cifrar-se em perdas de publicidade da ordem dos milhões de euros.
Como sempre, e cada vez mais, tudo se resume ao dinheiro. A máxima hipócrita do jornalismo - "todos têm o direito de saber tudo sobre todos" - é rainha e senhora, mas não se trata do direito à informação; o que está em causa é o direito a ganhar mais e mais dinheiro, não interessa como. E no caso da justiça, em Portugal, o circo começa a ser demasiado.
A comunicação social diz e escreve não importa o quê sobre os processos em curso que envolvem os chamados "mediáticos" - mesmo os casos que não chegaram ainda a tribunal (chegarão algum dia?) são expostos de qualquer maneira, literalmente, com base no rumor, no boato, no "diz-que-disse".

A Sombra nunca mencionou, por exemplo, o caso da pedofilia, emitindo juízos de valor ou outros sobre os seus agentes; nunca mencionou, por exemplo, o caso da Universidade Moderna nesses termos. Talvez o único caso expressamente mencionado, por mim, com referências aos seus intervenientes, ainda assim limitado à evidência, foi o recente escândalo Cruz/Lynce. Emiti, nessa entrada, uma opinião que viria a ser confirmada dias depois; a de que Martins da Cruz não estaria isento de responsabilidades e que se deveria ter demitido na mesma altura em que o fez Pedro Lynce. Não se afirmou até onde ia a responsabilidade de um ou de outro, pois isso caberá à justiça, se algum dia for esse o caso. Aliás, o texto em questão avisava, claramente, que todos nós poderíamos ser um Lynce ou um Martins da Cruz; e muitos de nós já o fomos, ao menos uma vez na vida. Tratou-se, portanto, de uma critica à atitude de Martins da Cruz, não de um juízo sobre o seu papel no caso, apesar do que é conhecido, para mim, ainda por determinar.

Eu próprio não falei ainda em Paulo Pedroso. N'A Sombra, foi Fabien (FJ) a fazê-lo, ironizando o regresso do deputado às páginas do Jornal de Notícias e ao Parlamento. A meu ver, não se trata de um juízo sobre o alegado envolvimento de Paulo Pedroso no processo da pedofilia, mas sobre a sua atitude perante a situação em que se viu envolvido.
Existirá uma cabala contra o Partido Socialista? Será real o envolvimento do deputado em questão? Será ele inocente ou culpado? Não sei e interessa-me sabê-lo, mas não me interessa, e não interessa, expressar publicamente o que penso sobre isso. Até poderei emitir uma opinião sobre a questão relativa ao PS, mas nunca sobre o envolvimento ou não de membros desse partido ou de quem quer que seja no processo.

Estou de acordo com Fabien. Paulo Pedroso devia estar calado - fala demasiado. Justifica-se. Não devia fazê-lo mais. Bastou-me a sua declaração inicial de inocência. Ouvimos. Eu não a esqueci. Estou de acordo com todos os que entendem que Paulo Pedroso devia manter-se afastado da cena pública até estar cabalmente demonstrado que nada tem a ver com o processo da pedofilia. Entendo que, a falar, o deveria fazer para exigir que a situação se esclareça, judicialmente e rapidamente.
Em seu lugar, postar-me-ia "à porta" de Rui Teixeira, e dir-lhe-ia: "Meu caro, não se incomode a prender-me preventivamente; não vale a pena. Todos os dias, quando sair de casa e ao regressar, me encontrará aqui. Não irei a lado nenhum até que sejam provadas as acusações que me são feitas ou que as mesmas sejam refutadas por falsas".
E assim fosse considerado inocente, faria da identificação e responsabilização dos que proferiram as falsas acusações uma missão a levar até às últimas consequências, isto é, a sua punição com a máxima força da lei.

Paulo Pedroso faz bem em acreditar que nos esqueceríamos dele se fosse para casa, mas faz mal em pensar que é no Parlamento e nas páginas dos jornais que vai garantir ser recordado com dignidade.
E faz bem em acreditar que nos esqueceríamos dele se ficasse em casa porque não é em casa que deveria ficar, mas "à porta" de Rui Teixeira. E faz mal em acreditar que é retomando a sua actividade de deputado e a de colunista que vai garantir a dignidade da sua memória, pois são sinais ambíguos e equívocos que mais depressa se tomam por outro algo.

A justiça cai na rua, ao ser tratada como tem sido pela comunicação social. Na rua e da amargura. Em qualquer processo, apenas deveria ser legítimo, e expresso como tal em letra de lei, publicar ou divulgar notícias relativas ao mesmo emanadas dos advogados de acusação e de defesa, dentro dos limites já existentes, e nada mais.
A todos os outros agentes, incluindo acusados e acusadores (que teriam os seus advogados para falar por si), seria negada e punida por lei qualquer manifestação pública de opiniões sobre os casos em processo, fossem elas de juizes, autoridades, investigadores, familiares de acusados ou de acusadores ou... jornalistas.

Todos os trabalhos jornalísticos, valham eles o que valerem, servem apenas para explorar uma situação em benefício próprio dos órgãos que os emitem. Uns serão brandos e moralizadores, outros acutilantes e tendenciosos, protestem eles "culpado" ou "inocente" nas suas linhas ou nas suas entrelinhas. Que se diga algo sobre a atitude dos agentes, em si mesma, é uma coisa; que se façam campanhas em favor dos mesmos ou contra eles é outra.

Enquanto tivermos juizes, testemunhas, arguidos e seus familiares, acusadores e seus familiares, investigadores, "identificados" e "anónimos", nas televisões, nas rádios e nos jornais, a emitir opiniões sobre tudo e mais alguma coisa, não existirá justiça em Portugal.
Mas talvez seja esse o objectivo. Acabar de vez com ela.

Rui Semblano
Porto, 17 de Outubro de 2003

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