"A honestidade, a responsabilidade e o respeito pela palavra dada, a ética profissional, serão valores em extinção, em conflito com o progresso e as mudanças inerentes?"
António Baeta in Honestidade e Pragmatismo
Changes...
A pergunta do amigo
António Baeta é daquelas que, desde a aurora do Século XIX (pelo menos), assalta o espírito humano a cada ano que passa.
(pausa para acender o Montecristo, como prometido... Continuando:)
Veio-me à memória o início de um álbum de Edgar P. Jacobs, da série "Blake & Mortimer"; mais precisamente "A Armadilha Diabólica".
Blake aguarda Mortimer no salão de fumo de um hotel parisiense e, enquanto espera, ouve um diálogo que se desenrola numa mesa adjacente à sua. Era este:
- ... Ah! Que tempos estes! Veja estes jornais!... Ameaças de guerra! Perigo atómico! Revoluções! Convulsões sociais! Catástrofes!... O mundo parece possuído pela loucura... Decididamente, os nossos antepassados eram mais sensatos! A vida calma e disciplinada que levavam punha-os a coberto destas aventuras... Eram bons tempos!...
- Ora, ora! Obscurantismo e tirania é o que eram os "seus" bons tempos!... Pelo meu lado, prefiro virar-me resolutamente para o futuro!... Assistimos à criação de um novo mundo! Amanhã, graças aos extraordinários progressos da ciência, a humanidade, liberta das servidões materiais, poderá finalmente consagrar-se com toda a liberdade aos prazeres do espírito!...
- Teoria sedutora, mas que, receio bem, lhe faz ver o "seu" hipotético futuro a uma luz demasiado idílica!... "O meu passado", pelo menos, já deu as suas provas!...
- ... Ora! É com um desprezo piedoso que o "meu futuro" julgará o "seu passado" ignorante e bárbaro!...
No álbum, Blake comenta, para si mesmo:
- Hum!... Passado!... Futuro!... quem sabe se os "bons tempos" com que sonham não serão simplesmente o tempo presente, gentlemen!...
Este episódio foi editado pela primeira vez um ano antes do meu nascimento, em 1962. Hoje, não estaria assim tão seguro como Blake, embora já concordasse com ele antes...
De facto, estes tempos presentes, de bom têm quase nada. Ainda hoje recebi um e-mail enviado por
João Pedro Freire (Tribuna Socialista) que criticava - e muito bem - a iniciativa do PSD e do CDS-PP que visa limitar a liberdade de imprensa, com o pretexto de que os recentes acontecimentos relacionados com as fugas de informação no processo Casa Pia são inadmissíveis e, limitando e regulando a actividade jornalística, assim poderem evitar que tal se venha a repetir.
Este exemplo é apenas um de muitos em que, nas sociedades ditas desenvolvidas e democráticas, as liberdades e direitos individuais são sacrificados para proteger o "bem comum".
"Amanhã podes ser tu!" é o lema desta gente (a
élite, os especialistas de que
João Pedro Freire me dizia serem os manipuladores exclusivos da democracia - esse bem demasiado precioso para ser deixado nas mãos do povo...).
"Amanhã podes ser tu a morrer num atentado; amanhã podes ser tu a ser enterrado vivo num terramoto; amanhã podes ser tu a ver o teu nome nos jornais como pedófilo ou coisa pior... A não ser que nos deixes proteger-te!..." - dizem-nos.
Os valores de que nos fala
António Baeta (honestidade, responsabilidade, respeito pela palavra dada, ética profissional) deveriam ser intemporais, mas a sua conotação com o passado é inevitável quando se pergunta se não estarão a ficar gastos pelos ventos da mudança que trazem o futuro... E aqui reside a gravidade da pergunta. O diálogo que transcrevi acima, datado de 1962, refere-se a modos de vida que, ambos, integrariam os valores postos em causa na pergunta de
António Baeta. Agora, no "nosso" presente, verificamos que não temos as vantagens com que sonhava o defensor do "futuro" na obra de E. P. Jacobs, mas verificamos mais. Verificamos que nele estão a desaparecer os valores amorais, aqueles que são independentes de qualquer moralidade.
A razão é simples.
A moralidade que nos é imposta pelos que supostamente elegemos, sejam poder ou oposição, não se compadece de valores amorais. Tudo o que não possa ser catalogado ou referenciado (como A Sombra, por exemplo) é considerado perigoso, subversivo, desestabilizador e nefasto.
Um dos nossos bloggers "fantasmas", como lhes chamei um dia, o Fernando Granjo, chama a isto a "Teoria do Centrão"; isto é, a normalização da sociedade democrática, a uniformização das tendências, a ilusão da alternativa.
Os nossos Senadores esqueceram-nos...
A sua razão de ser são eles próprios.
De tal modo se perverteu o conceito de democracia que as suas manobras, isentas de qualquer honestidade, responsabilidade, palavra e ética, parecem absolutamente normais ao cidadão comum. Recordem-se do povinho que defende Fátima Felgueiras! O erro dela não foi ser desonesta, irresponsável, não ter palavra ou ética. Foi ser apanhada. Relembrem o caso Paulo Pedroso e a reacção do PS antes e depois da sua acusação formal. Já ninguém percebe mais nada. É o caos? Ainda não. Nem sei se chegará tão cedo, mas uma coisa é certa: é o vale tudo em ambiente fechado. Isto é, para "eles" vale tudo, para "nós" nada vale.
Quem são "eles"?
"Eles" são os que criaram uma ilusão que tomamos por realidade para que nos possam controlar e explorar (
The Matrix); "eles" são os que nos fizeram crer que a honra é um adereço de opereta (
The Last Samurai); "eles" são os que tentam rescrever o passado e nos prometem um futuro radioso para que esqueçamos o presente (
1984)...
"Eles" são os arquitectos desta armadilha diabólica a que chamamos democracia... Mas durmam, que sei eu? Durmam descansados. Afinal, amanhã é outro dia... Pragmático.
nota:
Previsão meteorológica para 9 de Janeiro de 2004 em Portugal Continental:
Chuviscos ou chuva. (o trânsito vai estar péssimo...)
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