segunda-feira, fevereiro 06, 2006

The spit




















As horas passadas em voo desde a Alemanha esbateram-se à abertura da porta do 737 que partilhara com cento e sessenta companheiros, parte da força que integrava e que regressava após um ano de comissão no Ultramar.

A hospedeira, loira, os olhos de um azul irreal que faziam escurecer o do seu uniforme, aguardava que saísse, mas ele ficou a olhar a luz projectada nos cabelos dela, levemente ondulados da brisa quente que entrava pela porta aberta que o esperava. Atrás dele, os seus companheiros esperavam um gesto, como tantas vezes haviam feito, em outras circunstâncias.
Estava na frente. Bastar-lhe-ia uma indicação e todos se protegeriam e assumiriam as posições correspondentes; de cobertura, de ataque; de espera... O halo de calor que se concentrava na saída da aeronave começava a infectar o ar condicionado. Que temperatura faria lá fora? O alcatrão da pista devia estar a ferver... Como a areia que deixaram para trás. Aquele momento durava uma eternidade, pois ele não conseguia ver naqueles cabelos loiros acariciados pelo vento suave e quente aqueles outros, morenos, embalados pelo mesmo vento, quem sabe, mas tão diferentes... Talvez estivesse na vitalidade, a diferença.

Alheou-se desse pensamento e, colocando os Ray-Ban, deu o primeiro passo. Não se deteve junto da jovem loira, que lhe desejou as boas-vindas... O sol bateu-lhe no rosto e, no mesmo instante, uma banda começou a tocar uma marcha de John Philip Sousa, "The Invencible Eagle". Iniciou a descida das escadas, seguido dos seus camaradas. Via a banda dos Fuzileiros, os políticos de ocasião, as famílias que acenavam, o povo em fundo. Recordava-se das imagens da chegada dos militares do Extremo-Oriente, nos anos sessenta. Sabia que podia repetir-se. Estava preparado para isso. Era um fuzileiro.

Não havia ninguém à sua espera; a sua família era o Corpo de Fuzileiros. Atravessou a pista na direcção da massa ululante, mantendo a calma. E então percebeu. Não eram insultos. Aquela multidão ovacionava-o. Ao passar por entre ela, verificou que o queriam tocar, que lhe davam palmadas nas costas e lhe esticavam as mãos para o cumprimentar, como se fosse uma estrela pop... Estavam em delírio.

Um tipo gordo, com ar de quem teria sido defesa central na sua juventude, quebrou a barreira que o separava da populaça e dirigiu-se a ele, sorridente, com uma revista numa mão e uma esferográfica na outra. Esfuziante, pediu-lhe para assinar a página em que a revista estava aberta. Tinha impressa uma caricatura de Maomé com um turbante em forma de bomba. Fora por aquele desenho que ele fora para o Ultramar. Fora por ele que perderam a vida tantos dos seus amigos e que matara tantos outros que nunca teriam a hipótese de o ser. Fora por ele que aqueles cabelos negros ondularam sem vida, ao vento do deserto.

Retirou os óculos de sol, olhando nos olhos o homem que não parara ainda de sorrir.
E cuspiu-lhe em cima.

Rui Semblano

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