Conto participante no
4º desafio de criação literáriainterblogs (a destempo!)
O mote era esta imagem da Beatriz.DesvanecerTeria chegado demasiado cedo? Não estava ninguém por perto e o local, assim deserto, mais se assemelhava àquele que em sonhos despertos sempre visitava. O passar do tempo alterara um pouco o aspecto do velho banco de madeira e ferro. Tinham passado trinta anos... Quase trinta e um, de facto.
Não se sentou. Tendo chegado primeiro, teria o privilégio de a ver chegar. Acendeu um cigarro, inspirando o fumo profundamente. O seu olhar fixou-se nas réguas de madeira do banco, a descascar do sol e da chuva, do frio e do vento... Relembrou a imagem que vira no espelho, essa manhã, quando se barbeava; aqueles trinta anos haviam sido tão gentis quanto impiedosos, permitindo-lhe recordar cada dia passado como se fosse sempre o anterior àquele em que ali estivera pela última vez, a cada manhã que se olhava no espelho. Ilusões. Agora, ali, mais fortes eram, quase reais; quase palpáveis. Então, trazido pela brisa, o perfume dela chegou.
Os anos passados desvaneciam-se a cada passo que aquela mulher dava na sua direcção. Ao chegar junto dele, tinham desaparecido por completo, todos os trinta.
- Perdoa a espera.
Ele sorriu.
- Acabo de chegar. - e indicou-lhe o banco.
- Entre todos os bancos deste parque, é mesmo este?
- Já não te recordas?
Ela não respondeu. Como poderia?
- Desculpa. - pediu ele, desviando o olhar daquelas íris que jamais saberia se azuis se verdes...
Sentaram-se.
Permaneceram em silêncio, por momentos. Ele tinha pensado e repensado mil vezes tudo o que tinha para lhe dizer, mas nada do que quisera dizer-lhe nos últimos trinta anos lhe ocorria, agora. Teria ela conseguido, de facto, anular o tempo e, com isso, todas as suas palavras por dizer? Teria o tempo, além de desvanecido, parado?
- Se tudo fosse diferente - começou ela - eu nunca estaria aqui, agora.
- Assim é.
Os olhares de ambos encontraram-se e, com isso, as suas almas também.
- Não vejo arrependimento em ti.
- Porque nenhum existe. - afirmou ele, num tom de voz sereno e verdadeiro.
Nos lábios da jovem nasceu um sorriso e a sua mão tocou o rosto do homem, que a tomou na sua, beijando-a.
- E, no entanto, - continuou ela - sinto que sem ti eu não seria quem sou. Seria, certamente; mas não eu. Não é estranho?
- Não para nós.
- Devo ouvir-te.
Sim; para isso fora ali a pedido dele. Mas o que lhe poderia dizer? Tudo o que pretendia dizer-lhe estava já nos olhos dela. Talvez o melhor fosse aproveitar aquele momento a seu lado, simplesmente. Desviou o olhar para o bosque. Continuavam sós. Apenas uma ligeira brisa e o perfume dela, ainda. Sempre.
- Tu és tudo o que poderia dizer-te. - e nada mais.
Ficaram assim, sentados em silêncio, como há trinta anos, ouvindo as árvores e os pássaros e a água a correr, mais abaixo. Ocorria-lhe agora que foi graças a essa circunstância que agora lhe era dado estar ali com ela. O mistério revelado, enfim. E fez-se tarde.
A noite chegaria, em breve. Sem uma palavra, levantaram-se, abraçando-se, e ele ficou ali, a vê-la partir pelo mesmo caminho por onde chegara; exactamente como há trinta anos. Não lhe tinha dito adeus.
Nunca lhe diria adeus.
Rui Semblanonota:Por circunstâncias a que a minha vontade é alheia, apenas hoje publico o meu conto. Aos que participaram neste desafio e aos que visitaram A Sombra na expectativa de o ler mais cedo, as minhas desculpas.nota2:Os contos participantes nesta edição encontram-se nas entradas dos seguintes blogs e autores:Ashfixia (Raquel): A História perdida no orvalho, Wisdom, that's what i've aspired (Beatriz): Aquele banquinho de madeira, Realidade Torta (Bill): Doces Sonhos, Instantes Clarissa (Clarissa): Instantes XLVII, Conteúdo Manifesto (Conteúdo Latente): Parque, Do Lado do Mar (Doladodomar): Conto do banco, Espreitador (PiresF): Trono dos meus sonhos (in A Rua dos Contos), Tetros (Ipslon): Pirralho, A quilómetros de mim (Maite): A Catedral Verde, Incomplete (Parrot): Local de encontro, Poetando (Pedro Pinto): s/ título, Pedaços de Papel (Vanessa): Banco de Jardim: Aquele, o único.A todos os participantes, de novo as minhas desculpas e a promessa de voltar a cada um para ler com calma as vossas palavras, como merecem ser lidas. Um abraço, RS.nota post(erior):Por lapso, a responsabilidade do mote foi atribuida à Clarissa, quando na realidade foi por iniciativa da Beatriz que escrevemos sobre esta sugestiva imagem. Está corrigido, com as minhas desculpas!
Amigo Rui, não me espanta este seu conto, eu já sabia pela leitura que fiz de outros mais antigos, que o rui escreve bem, de qualquer forma, não posso deixar de sublinhar que a introdução narrada é sublime e não resisto a sublinhar a bold a frase final:
ResponderEliminar“Então, trazido pela brisa, o perfume dela chegou”.
É daquelas frases que ficam e que eu adoro. Excelente conto, todo ele.
Parabéns e um abraço.
Meu caro Rui.
ResponderEliminarDevo ser sincero como sempre sou com meus amigos, este conto me deixou triste e alegre ao mesmo tempo, me vi ali, esperando, ansioso e me vi também sem palavras para comentar tamanha beleza, mais não da jovem e sim do seu conto.
Adorei, simplesmente magnífico.
E nem precisas essas desculpas meu caro, esse conto vale por tudo e mais um pouco.
Ainda voltarei para ler novamente, ainda estou curioso com esse conto intrigante.
Ótimo fim de semana pra tu.
Bem hajam.
[s]s
Rui... em primeiro lugar um esclarecimento: desta vez o mote foi dado pela Beatriz. O grupo vai-se alargando e vai cabendo a cada um a vez de dar o mote.
ResponderEliminarNa altura fiquei um pouco preocupada por não ver o post do desafio, fico mais descansada agora, sabendo que está tudo bem.
Quanto ao texto... adorei o perfume, o tempo sem Tempo, compromisso de duas almas, a comunicação dos silêncios...
«Sem ti eu não seria o quem sou»... ainda há pouco tempo estas foram as palavras que dirigi a alguém...
Lindo. Gostei muito!
Um abraço apertado :)
PiresF:
ResponderEliminarObrigado pelas tuas palavras. O perfume dos sonhos é o que melhor recordamos, ainda que não o saibamos colocar nas nossas memórias. Sabemos que é ele, mas de onde o conhecemos? Quando a realidade atinge este nível, tudo se torna sublime; mais simples e, ao mesmo tempo, muito mais complexo. Como deves ter percebido, a jovem que comparece ao encontro nunca poderia ter sido a mulher que lá esteve trinta anos antes. É essa a chave.
Um abraço,
RS
Bill:
Bem vindo seja a esta Sombra, caro Bill. E ainda bem que o intriguei (era essa a minha intenção). Desvendei uma das chaves na resposta ao PiresF, acima. Espero que o conto lhe agrade ainda mais, na segunda leitura.
Até breve,
RS
Clarissa:
Oops! Vou fazer a correcção!
(Beatriz, desculpa.)
Sim, está tudo bem; questão de desmontar do tigre, nada mais (sorriso). Quanto ao conto:
Os momentos fora do Espaço e do Tempo são tão preciosos como perigosos. Em alturas assim, a mente pode perder-se definitivamente. A loucura fica no passo seguinte à revelação, e é difícil não dar mais um passo depois de entrar na dimensão do sonho que, talvez, não o seja.
Obrigado.
RS