quinta-feira, maio 18, 2006

Desvanecer...










Conto participante no
4º desafio de criação literária
interblogs (a destempo!)

O mote era esta imagem da Beatriz.





Desvanecer

Teria chegado demasiado cedo? Não estava ninguém por perto e o local, assim deserto, mais se assemelhava àquele que em sonhos despertos sempre visitava. O passar do tempo alterara um pouco o aspecto do velho banco de madeira e ferro. Tinham passado trinta anos... Quase trinta e um, de facto.
Não se sentou. Tendo chegado primeiro, teria o privilégio de a ver chegar. Acendeu um cigarro, inspirando o fumo profundamente. O seu olhar fixou-se nas réguas de madeira do banco, a descascar do sol e da chuva, do frio e do vento... Relembrou a imagem que vira no espelho, essa manhã, quando se barbeava; aqueles trinta anos haviam sido tão gentis quanto impiedosos, permitindo-lhe recordar cada dia passado como se fosse sempre o anterior àquele em que ali estivera pela última vez, a cada manhã que se olhava no espelho. Ilusões. Agora, ali, mais fortes eram, quase reais; quase palpáveis. Então, trazido pela brisa, o perfume dela chegou.

Os anos passados desvaneciam-se a cada passo que aquela mulher dava na sua direcção. Ao chegar junto dele, tinham desaparecido por completo, todos os trinta.
- Perdoa a espera.
Ele sorriu.
- Acabo de chegar. - e indicou-lhe o banco.
- Entre todos os bancos deste parque, é mesmo este?
- Já não te recordas?
Ela não respondeu. Como poderia?
- Desculpa. - pediu ele, desviando o olhar daquelas íris que jamais saberia se azuis se verdes...
Sentaram-se.
Permaneceram em silêncio, por momentos. Ele tinha pensado e repensado mil vezes tudo o que tinha para lhe dizer, mas nada do que quisera dizer-lhe nos últimos trinta anos lhe ocorria, agora. Teria ela conseguido, de facto, anular o tempo e, com isso, todas as suas palavras por dizer? Teria o tempo, além de desvanecido, parado?
- Se tudo fosse diferente - começou ela - eu nunca estaria aqui, agora.
- Assim é.
Os olhares de ambos encontraram-se e, com isso, as suas almas também.
- Não vejo arrependimento em ti.
- Porque nenhum existe. - afirmou ele, num tom de voz sereno e verdadeiro.
Nos lábios da jovem nasceu um sorriso e a sua mão tocou o rosto do homem, que a tomou na sua, beijando-a.
- E, no entanto, - continuou ela - sinto que sem ti eu não seria quem sou. Seria, certamente; mas não eu. Não é estranho?
- Não para nós.
- Devo ouvir-te.
Sim; para isso fora ali a pedido dele. Mas o que lhe poderia dizer? Tudo o que pretendia dizer-lhe estava já nos olhos dela. Talvez o melhor fosse aproveitar aquele momento a seu lado, simplesmente. Desviou o olhar para o bosque. Continuavam sós. Apenas uma ligeira brisa e o perfume dela, ainda. Sempre.
- Tu és tudo o que poderia dizer-te. - e nada mais.
Ficaram assim, sentados em silêncio, como há trinta anos, ouvindo as árvores e os pássaros e a água a correr, mais abaixo. Ocorria-lhe agora que foi graças a essa circunstância que agora lhe era dado estar ali com ela. O mistério revelado, enfim. E fez-se tarde.

A noite chegaria, em breve. Sem uma palavra, levantaram-se, abraçando-se, e ele ficou ali, a vê-la partir pelo mesmo caminho por onde chegara; exactamente como há trinta anos. Não lhe tinha dito adeus.
Nunca lhe diria adeus.


Rui Semblano


nota:
Por circunstâncias a que a minha vontade é alheia, apenas hoje publico o meu conto. Aos que participaram neste desafio e aos que visitaram A Sombra na expectativa de o ler mais cedo, as minhas desculpas.

nota2:
Os contos participantes nesta edição encontram-se nas entradas dos seguintes blogs e autores:

Ashfixia (Raquel): A História perdida no orvalho,
Wisdom, that's what i've aspired (Beatriz): Aquele banquinho de madeira,
Realidade Torta (Bill): Doces Sonhos,
Instantes Clarissa (Clarissa): Instantes XLVII,
Conteúdo Manifesto (Conteúdo Latente): Parque,
Do Lado do Mar (Doladodomar): Conto do banco,
Espreitador (PiresF): Trono dos meus sonhos (in A Rua dos Contos),
Tetros (Ipslon): Pirralho,
A quilómetros de mim (Maite): A Catedral Verde,
Incomplete (Parrot): Local de encontro,
Poetando (Pedro Pinto): s/ título,
Pedaços de Papel (Vanessa): Banco de Jardim: Aquele, o único.

A todos os participantes, de novo as minhas desculpas e a promessa de voltar a cada um para ler com calma as vossas palavras, como merecem ser lidas. Um abraço, RS.

nota post(erior):
Por lapso, a responsabilidade do mote foi atribuida à Clarissa, quando na realidade foi por iniciativa da Beatriz que escrevemos sobre esta sugestiva imagem. Está corrigido, com as minhas desculpas!

4 comentários:

  1. Amigo Rui, não me espanta este seu conto, eu já sabia pela leitura que fiz de outros mais antigos, que o rui escreve bem, de qualquer forma, não posso deixar de sublinhar que a introdução narrada é sublime e não resisto a sublinhar a bold a frase final:

    “Então, trazido pela brisa, o perfume dela chegou”.

    É daquelas frases que ficam e que eu adoro. Excelente conto, todo ele.

    Parabéns e um abraço.

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  2. Meu caro Rui.

    Devo ser sincero como sempre sou com meus amigos, este conto me deixou triste e alegre ao mesmo tempo, me vi ali, esperando, ansioso e me vi também sem palavras para comentar tamanha beleza, mais não da jovem e sim do seu conto.
    Adorei, simplesmente magnífico.
    E nem precisas essas desculpas meu caro, esse conto vale por tudo e mais um pouco.
    Ainda voltarei para ler novamente, ainda estou curioso com esse conto intrigante.

    Ótimo fim de semana pra tu.

    Bem hajam.

    [s]s

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  3. Rui... em primeiro lugar um esclarecimento: desta vez o mote foi dado pela Beatriz. O grupo vai-se alargando e vai cabendo a cada um a vez de dar o mote.

    Na altura fiquei um pouco preocupada por não ver o post do desafio, fico mais descansada agora, sabendo que está tudo bem.

    Quanto ao texto... adorei o perfume, o tempo sem Tempo, compromisso de duas almas, a comunicação dos silêncios...
    «Sem ti eu não seria o quem sou»... ainda há pouco tempo estas foram as palavras que dirigi a alguém...

    Lindo. Gostei muito!
    Um abraço apertado :)

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  4. PiresF:
    Obrigado pelas tuas palavras. O perfume dos sonhos é o que melhor recordamos, ainda que não o saibamos colocar nas nossas memórias. Sabemos que é ele, mas de onde o conhecemos? Quando a realidade atinge este nível, tudo se torna sublime; mais simples e, ao mesmo tempo, muito mais complexo. Como deves ter percebido, a jovem que comparece ao encontro nunca poderia ter sido a mulher que lá esteve trinta anos antes. É essa a chave.

    Um abraço,
    RS

    Bill:
    Bem vindo seja a esta Sombra, caro Bill. E ainda bem que o intriguei (era essa a minha intenção). Desvendei uma das chaves na resposta ao PiresF, acima. Espero que o conto lhe agrade ainda mais, na segunda leitura.

    Até breve,
    RS

    Clarissa:
    Oops! Vou fazer a correcção!
    (Beatriz, desculpa.)
    Sim, está tudo bem; questão de desmontar do tigre, nada mais (sorriso). Quanto ao conto:
    Os momentos fora do Espaço e do Tempo são tão preciosos como perigosos. Em alturas assim, a mente pode perder-se definitivamente. A loucura fica no passo seguinte à revelação, e é difícil não dar mais um passo depois de entrar na dimensão do sonho que, talvez, não o seja.

    Obrigado.
    RS

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