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Porto Editora há muito que é um caso de sucesso no ramo editorial didáctico. Os seus manuais escolares são adoptados por inúmeras escolas e muitos dos que eu próprio tive, nos idos de 70 e 80 eram da sua responsabilidade. A forma como trabalha a relação com os professores é um exemplo de boa gestão empresarial e tem estado atenta às novas tecnologias de informação, sendo das primeiras a lançar conteúdos em CD-Rom e a publicar
sites próprios na Internet. Na base de tudo isto, não o esqueçamos, continua a estar o Dicionário da Língua Portuguesa, hoje na sua enésima edição, embora a sua manufactura seja bem inferior às fabulosas encadernações dos anos 60...
Um bom exemplo, portanto. Ou não?...
A julgar pelo recente caso "Big Brother" (ver entrada "
Bredaguês", n'A Sombra), que resulta da edição do manual do 10º ano "
Comunicar" pela própria Porto Editora, não estamos já perante um bom exemplo, no que respeita às edições didácticas e, particularmente, escolares desta editora.
Vasco Teixeira (filho), seu administrador e filho do fundador homónimo, explica como pode um manual escolar deste calibre ser editado pela sua casa:
"O manual cumpre o programa. (...) [É normal que os autores destes livros escolares] façam experiências pedagógicas. O concurso [Big Brother] existe, está na televisão e é bom que os alunos conheçam o seu regulamento."
Leram bem.
Vem escrito no Diário de Notícias de hoje (
DN, 14Out2003, p.22).
Para o responsável máximo da Porto Editora, assim, é absolutamente normal e, mais, "é bom" que este facto se verifique. Mais ainda, afirma que "está na televisão" e pronto. Ainda veremos manuais escolares da Porto Editora com textos sobre o "Herman SIC" com perguntas do género "porque achas que o tio Herman perguntou ao Valentino se ele era limpinho"? Talvez.
Para quem não conhece a Porto Editora por dentro, este facto poderá parecer um mero percalço; as afirmações de Vasco Teixeira um simples acto de Relações Públicas, destinado a controlar os danos causados por um incidente isolado que instalou a polémica na praça pública. Não é bem assim.
A Porto Editora aparenta ser uma empresa moderna e dinâmica, aberta à inovação e às novas tendências, de espírito liberal, na verdadeira acepção da palavra. Na realidade, porém, trata-se de um reduto industrial do século XIX, que convive muito mal com a concorrência, e um dos paradigmas do conservadorismo empresarial português.
Vasco Teixeira, aliás, não é um qualquer administrador da Porto Editora. Ele é a Porto Editora. Nessa perspectiva, as suas declarações assumem uma proporção insólita.
A adaptação desta editora à realidade social portuguesa é manifesta na edição deste escabroso "Comunicar", com o mesmo à vontade com que as televisões editam um qualquer
reality show de bosta. O povinho gosta, o povinho compra, o povinho fica satisfeito. E volta. Sobrevivência?
A Porto Editora é considerada, ainda e de forma geral, uma referência na edição de manuais escolares e didácticos, mas as afirmações de Vasco Teixeira trazem à luz do dia algo que há muito é familiar a quem conhece melhor a sua editora; uma empresa que adoptou a política de produção conduzida pelo mercado, por oposição à que molda o mercado. Este facto tornado público, finalmente, pode bem ser o anúncio da sua morte enquanto tal. Não sei o que fará a Porto Editora para recuperar deste escândalo editorial, mas Vasco Teixeira, a falar assim, em nada ajuda a essa recuperação.
Já há muito que verifico e reverifico o conteúdo de qualquer edição da Porto Editora que deseje adquirir (dicionários incluídos), mas esta situação foi a gota de água. Agora terei de verificar uma terceira vez, ainda. E se um dia me surgir no monitor do computador uma janela onde me é perguntado se devo confiar sempre nos conteúdos a carregar com origem na Porto Editora, vou responder "não, muito obrigado".
Assim se mata uma referência.
Rui Semblano
Porto, 14 de Outubro de 2003
nota:
Há muito, muito tempo, numa Galáxia semelhante a esta, colaborei como ilustrador e maquetista na Porto Editora e para a Porto Editora e continuo a considerar as minhas reuniões com os autores e as autoras dos manuais escolares em que trabalhei como das experiências mais surreais por que passei, apesar de já ter passado por outras bem estranhas!
Nem vou tentar explicá-las aqui, pois não tenho talento que chegue para as retratar condignamente. Foram demasiado... intensas.
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