domingo, dezembro 28, 2003

O Passado Imperfeito - Parte 1


Não me desagrada o politicamente correcto "Person of the year" que desde há alguns anos vem substituindo a designação típica "Man of the year" na revista Time. De facto, o último "Homem do ano" na Time foi Andrew Grove, um dos fundadores da Intel, em 1997; em 1998, a distinção foi atribuída a dois homens: Bill Clinton e Kenneth Starr, protagonistas do evento do ano: as aventuras extraconjugais do presidente dos EUA. Foi o último ano em que a designação foi usada, dessa feita no plural, "Men of the year", sendo o contexto quase insultuoso para o género em causa e transformando a adopção do título assexuado, no ano seguinte, numa anedota. Aliás, a informática regressaria em 1999, com Jeff Bezos, administrador da Amazon.com, como primeiro detentor do título "Person of the year".

É uma designação mais lógica, dado estar em causa a personalidade que mais destaque mereceu no ano que passou, do ponto de vista da Time, seja ela masculina ou feminina ou... uma máquina, como em 1982, ano em que o Computador Pessoal levou o troféu e foi usada a designação "Machine of the year" (Time, January 3, 1983).

A decisão da Time, ao atribuir a distinção de 2003 ao soldado norte-americano, apanhou-me de surpresa, mas suponho que a sua razão de ser é clara, tanto mais que, em termos de individualidades, em especial ligadas à política, este ano foi muito mau. Para além dos cromos repetidos, como o de 2000, no que respeita aos EUA as figuras de proa da administração do Estado encontram-se em "low profile mode", à espera de melhores dias - e a essas, a captura de Saddam Hussein não foi suficiente para fazer surgir à luz dos media como protagonistas de coisa alguma. São demasiado experientes para isso.
Quanto à ONU, estamos conversados. Desde 1993 (o ano de Rabin, Arafat, de Klerk e Mandela) que a cena internacional não tem estadistas ou diplomatas que se destaquem pelo seu papel positivo - e mesmo nesse ano, Arafat foi à boleia, para equilibrar a foto. Hoje como ontem, apesar da "abertura" da administração Clinton e do "multilateralismo" que o actual Governo dos EUA diz perfilhar, inclusivamente na pedra de toque da sua política: a Estratégia de Segurança Nacional, de 2000, a ONU atravessa um período apagado, inglório e humilhante, reduzida a um simbolismo tão deprimente quanto evidente.

Quanto a figuras europeias, os sucessivos escândalos relativos ao dossier iraquiano eliminaram Tony Blair da corrida ao título muito cedo, ao passo que os restantes protagonistas da Europa nunca poderiam fazer parte dela - os "amigos" dos EUA por demasiado apagados e os seus opositores por isso mesmo, para além de nada de realmente relevante terem feito, no sentido positivo.
Do resto do mundo, que personalidade política destacar? Ninguém com real impacto no "mercado ocidental" fez nada digno de nota, pelo menos que mereça um destaque como o dado à "Pessoa do ano".
Pensando bem, politicamente, 2003 foi um ano para esquecer; desde o peru de G. W. Bush ao autismo paranóico de Kim Jong Il, passando pela actuação de Paris e Berlim na (des)constituição da Europa. Quanto ao Oriente Médio, neste momento a competição entre Arafat e Sharon é mais para "Asno do ano" que para "Pessoa do ano"...

Para mim, aliás, o homem do ano seria Michael Schumacher, pelo seu feito desportivo sem precedentes. Mas é alemão, além de que atribuir uma distinção a um desportista profissional num ano de guerra e de tensões seria fugir ao problema - e de que a Fórmula Um permanece uma curiosidade conhecida de meia dúzia de norte-americanos, num país onde fazer um circuito com mais de duas curvas é um delírio.
A opção da Time não foi fruto desta pobreza em matéria de destaque individual político e/ou empresarial positivo. Ao ver a capa da sua edição de 29 de Dezembro, já à venda, não consegui lembrar-me de outra ocasião em que tal se tenha passado, isto é, em que o destaque fosse para o G.I. Joe (ou será G.I. Person?). Não me recordava de tal coisa com razão; a única outra vez que tal sucedeu foi em 1950, a propósito da guerra da Coreia. Não precisei de fazer nenhuma pesquisa; a própria Time esclarece este ponto nesta edição, numa pequena nota em que faz eco da notícia de há 53 anos.

Hoje, a capa tenta ser politicamente correcta, representando dois homens (um deles negro) e uma mulher no uniforme dos Old Ironsides, a 1ª Divisão Blindada dos EUA. Chamam-se Whiteside, Buxton e Grimes; fazem parte dos Tomb Raiders, um pelotão de Old Ironsides que a Time acompanhou em detalhe no artigo "Portrait of a platoon" - a escolha de um pelotão com este cognome, aliás, demonstra que os norte-americanos continuam tão subtis como elefantes numa loja de porcelanas. O fantasma do resgate da soldado Lynch percorre-me a espinha, mas ao ler o artigo, parece-me legítimo e verdadeiro. Mas esta é apenas uma secção da parte da revista dedicada à "Pessoa do ano". Antes, uma introdução justificativa da escolha e uma série de fotos dramáticas; depois... Donald Rumsfeld.

A tentação de colocar Donald Rumsfeld como "Person of the year" deve ter existido. É a única forma de explicar a presença de um artigo tão exaustivo como o dedicado aos soldados, com o secretário da Defesa norte-americano, incluído na secção dedicada à "Pessoa do ano". Depois de ter sido chamado de "herói dos nossos dias" nos jornais, chega a consagração na Time. Uma consagração tímida, mas uma consagração. Os Tomb Raiders estão ali apenas para preparar o terreno, como tantas vezes o fazem, mas desta vez é para o próprio "patrão".

De um modo geral, o conjunto é uma peça banal do ponto de vista jornalístico, sendo os artigos dedicados aos soldados uma mera introdução a Rumsfeld. O artigo dos Tomb Raiders podia até encontrar-se em qualquer uma das edições da Time, com um título do género "Um dia na vida dos Old Ironsides" ou coisa parecida. Claro que a maior parte das pessoas, incluindo os soldados norte-americanos, simbolicamente representados pelos Old Ironsides, "agraciados" pela distinção, jamais conhecerá o interior desta revista, isto é, será a capa que lhes ficará na memória. Por esse motivo, o fim é parcialmente atingido: elevar o moral das tropas e, em particular, das suas famílias.

Se a invasão do Iraque se justificasse, tendo Saddam Hussein atacado um país vizinho ou se fosse provado para além de qualquer dúvida (e não apenas da razoável) que estava a desenvolver um arsenal de armas nucleares ou biológicas ou químicas com intenção de as usar ou vender a potenciais terroristas, talvez fizesse sentido colocar na capa desta Time capacetes azuis, dando-lhes o título de "Pessoas do ano".
Demais, se pensarmos no número de missões ainda existentes que envolvem capacetes azuis e mesmo nos casos em que soldados europeus e de outros continentes estão envolvidos em missões de estabilização - como é o caso da NATO nos Balcãs e no Afeganistão, por exemplo, a capa e a distinção da Time chegam a ser insultuosas.

Para os países que envolveram tropas no Iraque - em especial para o Reino Unido - a Time "Person of the year" chega a ser uma bofetada na cara. Em Itália, as famílias dos Carabinieri que morreram no Iraque também devem ter achado imensa graça à capa desta Time. De facto, internacionalmente (e convém não esquecer que é uma distinção internacional), esta escolha da Time é descabida, arrogante e insultuosa.
Já nos Estados Unidos ela vem mesmo a calhar, numa altura em que existiram já muitas centenas de cadeiras vagas ao redor das mesas de "Thanks Giving" - é preciso não esquecer os feridos, cujo número não é publicitado. Nem a captura de Saddam Hussein elevou o moral, pois as mortes continuam, como esperado. Já Miguel Sousa Tavares, no Público, avisava que só um imbecil esperaria o contrário...

O unilateralismo dos EUA não consegue disfarçar-se. A visão do mundo que é hoje a de Washington, condensada de forma evidente no parágrafo da Estratégia de Segurança Nacional que escolhi para ombrear com o que define o porquê da escolha da Time (ver entrada "Strategy makes the Person", abaixo, já traduzida), permanece messiânica e tão autista como a de Kim Jong Il que, se fosse governante da única megapotência à face da Terra, já se encontraria às portas da Europa, no seu esforço para levar o culto do pai (e o seu) aos "ignorantes infelizes" do resto do mundo...

Há muitos anos, via os EUA como bastião da democracia e da liberdade. Havia saído de uma ditadura e encontrava na junção dos ecos ainda fortes da Normandia com a inegável abominação soviética uma boa razão para os ver assim. Depois cresci. Veio o Vietname que encontrei nos livros, fossem eles escritos por adeptos fervorosos da veracidade do incidente do Golfo de Tonkin ou pela mão de Bertrand Russel, e nas imagens, fossem elas protagonizadas por John Wayne ou por Martin Sheen. Veio a América Latina de Che a Allende, de Fidel a Pinochet, de Roosevelt a Kennedy... Veio a Palestina, de Golda Meir a Rabin, de Arafat a Darwish.
As ilusões foram ficando para trás; romances desfeitos por uma realidade impiedosa que fui encontrando sozinho, sem guias iluminados, em textos escritos por muitos punhos e ditados por variadas cabeças. E é a realidade que hoje se impõe ao sonho, ironicamente apoiada em imensas fábricas de miragens... Como a Time, precisamente.

Se o mundo não abrir os olhos, a começar pelos próprios norte-americanos, agora apostados no desenvolvimento de armas nucleares tácticas e plataformas militares flutuantes gigantescas, em breve não restarão outras opções que as de escolher viver sob a Stars and Stripes... ou não. O problema é que nesse "não" se encontram, desgraçada e inevitavelmente, todos os que se opõem à "democratização" do mundo pelos EUA - desde o fanático muçulmano mais empedernido até eu próprio. Assim, como já é apanágio de alguns intelectualóides da nossa praça, acabaremos todos por passar de "antiamericanos primários" a "fanáticos terroristas". Já faltou mais.

Para trás ficarão as tentativas egoístas de alguns para adquirir mais poder para si mesmos, como é o caso da Alemanha; o encolher de ombros dos que pensam ainda poder viver isolados nas suas fortalezas, como a Suíça; os que desenvolveram um instinto de sobrevivência apurado e se tentam enganar com processos de segundas intenções que nunca serão atingidas, como a Líbia...

O que nos resta, então?
Talvez a "esperança dos loucos"... A única que existe para lá da de Pandora, que essa já há muito se perdeu. Mas continuo um romântico, apesar de tudo. Continuo convencido que, globalmente, estamos condenados ao entendimento, sob pena de não sobreviver.

A isto estamos reduzidos, portanto.
A única esperança de entendimento da humanidade está no seu instinto mais básico, alimentado pela mais vã das ilusões: a de que, como ela, também nós sobreviveremos. Nós, que estamos condenados a morrer desde que nascemos.


Rui Semblano
Porto, 28 de Dezembro de 2003


ver O Passado Imperfeito - Parte 2

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