sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Intocáveis


Posted by Picasa







"Como foi possível?"
Manchete do Público de hoje.




A Sombra parece ser leitura obrigatória, tal a quantidade de vezes que acerta na mouche.
No Público de hoje, por exemplo, vpv (shitlist no. 4) considera um facto consumado a guerra civil no Iraque (ver entrada "A Arte da Guerra", ponto 4), disparando para todos os lados sem apontar uma única saída - quer dizer, é deixar andar e ver no que dá; ao passo que jmf (shitlist no. 1) vai avisando da nossa "inumanidade inata" em editorial (ver entrada "Anima Mundi").

É sobre este caso que deixo aqui algumas palavras.
A morte deste sem-abrigo, provocada pela violência homicida de um grupo de jovens "inimputáveis", ocorreu a escassos minutos a pé de minha casa. Por muito imparcial que se seja, é um facto que me deixa muito mais preocupado do que ler sobre facto idêntico ocorrido em South Central Los Angeles, nos subúrbios de Tóquio ou até na Cova da Moura.

O que importa saber é se não basta já de tanta vitimização e desculpabilização.
Em partes necessariamente desiguais, mas de idêntica importância, esta circunstância atribui-se a dois factores sociais do nosso tempo: a integração dos desfavorecidos e a educação (ou a falta de ambas).
Não podemos ignorar que este crime teve como intervenientes pessoas socialmente excluídas, em graus diversos: a vítima era um sem-abrigo minado pela hepatite, travesti e toxicodependente, e os agressores são miúdos sem ambiente familiar, a maior parte entregue à Oficina de S. José, uma Instituição Privada de Solidariedade Social (IPSS).

As IPSS são, aliás, um pântano de areia movediça; muitas delas verdadeiros pequenos paraísos fiscais dentro de portas, autênticas lavandarias de dinheiro duvidoso, no mínimo, ou mesmo sujo, no máximo, providenciando um conjunto de serviços e actividades que servem de fachada ao negócio muito lucrativo da gestão de donativos isentos de impostos e que ainda beneficiam fiscalmente os inúmeros doadores. De fonte segura (estou disponível para o afirmar e provar, se necessário), as impressoras de recibos de doações funcionam quase 24 horas por dia, em algumas IPSS. Adiante.

Independentemente de se tratar de um crime marginal, na máxima amplitude do termo, ele demonstra o nível de inadaptação da sociedade às novas (mas não tanto) realidades. Se é um facto que se vive mais tempo, levando a que se encare o trabalho de forma diferente do até aqui habitual, também não é menos certo que uma criança de 12, 13 ou 14 anos já nada tem de criança, a maior parte das vezes, tal como entendíamos "criança" há uns anos (já largos).

Seja por enfrentar dificuldades que só deveria encontrar como adulta ou por ter o privilégio de um enorme acesso à informação, a criança de hoje tem um conhecimento que seria considerado precoce no passado. De uma forma ou de outra, os miúdos de hoje, independentemente do extracto social a que pertencem ou de frequentarem uma IPSS ou um Colégio exclusivo, são tudo menos as crianças que nós fomos (e eu pouco mais tenho que 40 anos).

Penso que chegou a altura de admitir que, por motivos sociais idênticos aos do aumento da idade de reforma, isto é, pela natureza da sociedade actual, se deve aumentar o limite mínimo a partir do qual alguém pode ser julgado e punido por um crime, dentro do quadro legal existente e correspondente ao mesmo.
Afirmar, como agora fazem estes jovens, que "não sabem" porque mataram o infeliz sem-abrigo não serve de desculpa para nada; até poderá ser assim, mas o efeito é o mesmo que se fosse um adulto a dizer tal coisa. Não houve motivo? Acredito. Não sabiam o que estavam a fazer? Não é verdade. Um deles terá mesmo ficado de fora, horrorizado, observando os colegas a agredir a vítima, segundo ele próprio diz.

É lamentável que isto suceda, mas se a lei não endurecer (a par com maior atenção às políticas e meios de integração social) qualquer dia teremos um rapazola à porta de casa, todo sorridente e de cocktail molotov na mão, a dizer: "sou uma criancinha e vou incendiar a tua casa porque me apetece". Evidentemente, se pregarmos um chapo na "criancinha" vamos presos; se ficarmos a olhar para as chamas não lhe acontece nada.

A alternativa ao endurecimento da lei, a eterna cultura do "coitadinho-é-a-sociedade", mais tarde ou mais cedo leva aos esquadrões da morte brasileiros, encarregues de fazer "justiça" por incapacidade do Estado em lidar com o problema, a montante e a jusante do mesmo.
Uma criança apontar uma arma criminosamente esquecida a alguém e disparar é uma coisa; uma criança espancar um débil sem-abrigo em dois dias consecutivos e atirar o seu cadáver para um poço é outra.
A justiça distingue homicídio e legítima defesa; será obrigada a distinguir entre acidente e incidente, nos casos ocorridos com menores. Ou isso ou o caos total.

Rui Semblano


nota post(erior):
Inicialmente, foi identificada a IPSS que acolhia a maior parte dos jovens em causa como sendo as Oficinas de S. José, mas trata-se da Oficina de S. José. A correcção está efectuada.

nota pot(erior) 2:
Curiosamente, um título idêntico foi já usado ao desta entrada foi já usado n'A Sombra. Foi aqui!

Sem comentários:

Enviar um comentário