quarta-feira, outubro 18, 2006

Quão fino é o véu... (primeira parte)



Na generalidade dos países que separam a
religião do Estado, a fé é (ou deveria ser) uma
questão individual.
E se o Estado nada tem a ver com a fé de cada
um, também a fé de cada um nada pode ter a
ver com o Estado.

Desde logo, existem dois níveis para o problema
do véu enquanto sinal religioso: conforme existe
em países muçulmanos, uns mais ortodoxos que
outros, ou em países laicos, uns com ascendente
católico maior que outros, isto é, mais influenciados
por factores religiosos que outros, apesar de Estado
e religião se encontrarem separados na prática.


imagem:
Poster da UNICEF, "More education for girls in islamic countries"



A proibição do uso de sinais religiosos em lugares como as escolas, por exemplo, é ridículo - e perigoso, precisamente por provocar uma reacção de revolta e desafio nos que se sentem por ela atingidos. Por esta ordem de ideias, as religiosas de uma qualquer ordem católica não poderiam frequentar o ensino laico usando o seu hábito ou um padre o seu característico colarinho branco.
Estão a imaginar um professor universitário a recomendar a uma aluna franciscana uma ida a uma loja como a Zara ou a Adolfo Dominguez antes de frequentar as suas aulas...

A paranóia instalou-se e começa a generalizar-se, fatalmente, a outras religiões. Sinais religiosos como crucifixos ou estrelas de Davi são proibidos. Há quem já tenha sido despedido por usar um pequeno crucifixo ao pescoço. É no que dão estas medidas iluminadas, pois são desenhadas para limitar a liberdade individual mais do que para garantir a liberdade da colectividade, parecendo esquecer que é a primeira que garante a segunda.

Não sou a favor do uso de véus como o fazem as mulheres muçulmanas, pois considero a ocultação deliberada da identidade de forma sistemática uma falta de respeito. Além do mais, nada no Alcorão indica que se devam esconder as feições, sendo o recato feminino similar ao que de mais ortodoxo existe na religião católica, por exemplo. Mas sou inteiramente contra a proibição do uso do véu por parte das mulheres muçulmanas (ou outras que não sejam muçulmanas e que considerem o véu um adereço de moda, já agora), tanto como sou contra a imposição do véu nas sociedades islâmicas mais radicais.

A fé de cada um deve ser respeitada, independentemente de concordarmos com o seu fundamento ou não, logo a sua forma de exprimir essa fé também, desde que tal coisa não implique a prática de crimes (ou teremos gente a queimar pneus por convicção religiosa), mas também cada um deve ser responsável perante a sociedade em que vive.
Se em determinado país é perfeitamente normal (e legal) ter uma fotografia com a cara tapada na carta de condução, isso é uma questão que só a esse país diz respeito - por mais absurdo que a nós, que vivemos em Portugal, tal nos pareça. Mas não podemos admitir que a Direcção Geral de Viação permita a uma muçulmana a residir em Portugal que tenha uma fotografia com a cara tapada numa carta de condução tirada neste país, nem tão pouco podemos admitir que a Brigada de Trânsito considere legal uma carta de condução como a descrita acima no caso de apanhar uma senhora muçulmana a conduzir com essa habilitação. Em sociedades como a nossa, estas situações não são permitidas a ninguém e a fé não pode ser motivo de excepção, ou teremos linhas de identificação policiais com embuçados por motivos de fé.

O que não podemos é extrapolar deste ridículo que é legítimo obrigar, por lei, um indivíduo a ocultar a sua fé. Não podemos transformar a fé, e em última análise a religião, em algo de clandestino, que não se pode demonstrar publicamente. Nesse caso, proibir-se-iam as transmissões televisivas em canal público das manifestações católicas de Fátima a cada dia 13, da mesma forma que se proíbem os crucifixos nas escolas. A mim, nada me dizem tais transmissões televisivas, mas posso sempre mudar de canal. Já as crianças são obrigadas a ir às escolas. Se quiser que um filho meu tenha uma educação católica, ponho-o numa escola católica, onde além de crucifixos nas salas existem capelas e se rezam terços. Se quero que o meu filho tenha uma educação muçulmana, procedo de igual forma colocando-o numa escola muçulmana. Mas se sou a favor da liberdade de escolha e quero educar o meu filho de tal forma que ele possa escolher por si a religião a seguir (ou nenhuma), então espero do Estado que providencie escolas onde a religião não seja um factor intrínseco à instituição.

Mas falamos de pessoas, não de locais.
E se existem locais que não devem ser associados a nenhuma fé, nenhuma pessoa pode ser dissociada da sua fé. O Estado não tem esse direito. Especialmente se é um Estado laico.

Rui Semblano
18 de Outubro de 2006


(ver a segunda parte)

Esta entrada foi publicada em duas partes:
- a primeira parte
- a segunda parte

2 comentários:

  1. Completamente de acordo, caro RS.
    A existência de religiões pressupõe hábitos e rituais que distinguem os seguidores. É um fenómeno de grupo, tal qual o é o fenómeno de vermos os apoiantes de um clube de um lado das bancadas, vestidos a rigor para o momento e, cada um deles, ostentando orgulhosamente a sua "fé" sob a forma de camisolas, cachecóis e pinturas.
    É um hábito antigo como o Homem.

    No entanto, penso que devemos preservar a dignidade humana.

    Sou, por princípio, contra a ostentação de símbolos nas escolas, isto é, no espaço público que é a escola. Os crucifixos ladeados pelo Thomaz, Carmona e Caetano são agora uma recordação de manhãs submersas - e prefiro que assim se mantenham. Não sou da opinião de, porque somos um país de tradição católica, vermos tais aparatos nesses tipos de local.

    Não posso, entretanto, pensar que o indivíduo veja vedado o direito de utilização desses mesmos símbolos. Para além de se tornar rapidamente num atentado à liberdade individual [tanto como proibir um determinado tipo de adereço ou penteado, por exemplo], trata-se de um atentado a um dos princípios básicos da nossa Constituição, a da liberdade de pertencer a um grupo.
    Aliás, não poderei compreender nunca que se possa vir a pensar proibir a utilização de símbolos religiosos e se deixe continuar a captação de membros para a extrema-direita e a utilização de símbolos de natureza fascista e nazi.

    Eu sou ateu por convicção [e não existe símbolo para isso] mas reconheço nas religiões a possibilidade de, uma vez que adquiram a capacidade de se inserirem nos tempos que correm e deixem dogmatismos exacerbados de parte, poderem contribuir para a escalada de valores que estão actualmente em decadência.
    Tenho para mim que o Porto ou Braga não seriam as cidades maravilhosas que são sem a miríade de capelas e igrejas que por lá se encontram, assim como não consigo conceber o oriente em geral sem as suas mesquitas e templos diversos.

    Os nossos filhos devem compreender a liberdade no seu todo: a de associação, a de ter e formular uma opinião, a de poder aderir a uma religião e, em todas elas, ostentar orgulhosamente a sua divisa.
    O estado deve compreender que não pode perseguir, em caso algum, uma tomada de posição relativa à fé ou qualquer outro compromisso. Deve, isso sim, manter-se isento.

    Um abraço,
    CT

    ResponderEliminar
  2. CJT:
    Antes de mais, grato pelas palavras. Esta sua intervenção (independentemente de consonante com a entrada a que se refere) vem enriquecer a reflexão sobre este tema (infelizmente) fracturante.

    Espero que a segunda parte seja também do seu agrado, e bem vindo a est'A Sombra, que sei conhecer por "linhas de um caderno travesso".

    Até breve,
    RS

    ResponderEliminar