quarta-feira, outubro 18, 2006

Quão fino é o véu... (segunda parte)



(ver a primeira parte)

As proibições que hoje se esboçam e se praticam,
do véu ao genocídio arménio, acabam por se tornar
um problema maior que aquele que pretendem
resolver.

Vários Estados já tentaram implementar estas
medidas na Europa, ao longo do tempo. Todos
foram cilindrados pela História.
E se os Estados radicais islâmicos ainda existem
é porque eram mais facilmente controlados pelos
ditos defensores da liberdade e da democracia.
O radicalismo islâmico emergente do século XXI
tem as suas origens na paternalização inicial das
potências "ocidentais" perante os muçulmanos,
preferindo apoiar Sheiks e Shas a terem de se
adaptar a sociedades livres em mutação.



Falamos de proibir pessoas de ostentarem símbolos religiosos, nomeadamente nas escolas, mas também nos empregos, nos locais de lazer, nos supermercados... Na sociedade. Isto é a ditadura do laicismo. Só pode conduzir ao exacerbamento e à radicalização das religiões, à sua exclusão e auto-segregação. À proliferação do pior tipo de fé, que nada tem a ver com escolhas espirituais e tudo tem a ver com a resistência à opressão social. Os judeus são o que hoje vemos por terem sido quase exterminados por fanáticos. Tornaram-se fanáticos eles próprios, coisa que nunca aconteceria sem os nazis, como Israel nunca teria existido sem os nazis. Se seguirmos a linha da proibição dirigida às comunidades islâmicas, terminaremos nos campos de repatriamento, cujas matizes se definirão conforme os Governos e os populismos que os venham a suportar.

Uma professora muçulmana britânica foi recentemente despedida por recusar dar aulas de cara descoberta. Discriminada? Não. Autodiscriminada. As aulas não eram dadas num colégio muçulmano. Ninguém lhe exigiu que mostrasse as pernas ou que usasse decotes generosos. Poderia ter continuado a leccionar vestida com todo o recato, mas o cobrir da cara, nestas circunstâncias, não é admitido nas sociedades laicas. O Reino Unido é um exemplo perfeito do tipo de exageros em que se pode cair ao generalizar estas regras. As suas forças policiais integram elementos de várias comunidades residentes no país. Os códigos de vestuário podem ser alterados para acomodar esses agentes, mas não é pelo facto de existirem unidades que usam balaclavas quando em acção que se passa para o uso de véus por parte de agentes femininos que fazem o patrulhamento normal. Os limites são sempre uma questão de bom senso.

As mulheres muçulmanas são muitas vezes apontadas como as próprias vítimas da sua cultura, sendo obrigadas a usar o Niqab ou outra veste que lhes tapa integralmente as feições, mas todos sabemos que não é assim. Conheço casos em que o código de vestuário islâmico é observado por mulheres que o fazem com orgulho. As que se sentem oprimidas têm o direito de o fazer sentir e procurar auxílio, caso vivam na Europa, por exemplo, e nos países islâmicos são já muitas as que lutam pela livre escolha. Enganam-se os que pensam que é proibindo estas práticas que se ajuda as mulheres muçulmanas que não querem seguir estes hábitos. Bem pelo contrário.

Este é um aspecto, e apenas um, da forma como se encaram hoje as comunidades muçulmanas que vivem na Europa. Conforme as linhas mais ou menos ortodoxas dessas comunidades, assim são os seus usos (existem muitos muçulmanos no Porto e nunca vi nenhuma mulher de cara tapada). A forma como permitimos a sua integração e a clarificação de regras à partida são condições essenciais para uma relação saudável e enriquecedora para todos. As nossas origens são multiculturais e somos o seu reflexo, mas a multiculturalidade não pode ser uma desculpa para a fragmentação - venha ela dos que pretendem tirar às pessoas o direito a usarem os seus símbolos religiosos ou dos que pretendem fazer sobrepor o direito próprio ao do Estado onde vivem.

Separar a religião do Estado é óptimo.
Separar a religião do indivíduo é péssimo.

Rui Semblano
18 de Outubro de 2006


Esta entrada foi publicada em duas partes:
- a primeira parte
- a segunda parte

8 comentários:

  1. Olá Rui. Estou completamente de acordo contigo. O Estado não deve interferir na liberdade religiosa de cada um, a não ser nos casos em que essa liberdade vai contra as leis do país. Como é óbvio a separação entre estado e religião tem que ser observada, mas não exagerada. Legislar contra as liberdades individuais dá azo a revolta. Essa revolta pode originar conflitos graves.
    Um Abraço,
    Nuno

    P.S.- Como é habitual, estes teus dois textos estão excelentes.

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  2. Outsider:
    Há quem entenda o mundo a preto e branco. Há quem não veja que proibir é um verbo que se deve conjugar com muito cuidado e o menos possível. Começa-se com a proibição de uma cruz ao peito ou um véu na cara e acaba-se a proibir as reuniões de mais de quatro pessoas. A distância entre estas proibições é muito menor do que se pensa. Imagina que alguém conseguia proibir o Islão. Parece-te uma boa ideia?
    Pois a alguns parece uma excelente ideia.

    Apetece olhar para o céu e perguntar para quando a construção da tal hipervia intergaláctica que passa mesmo pelo planeta Terra...
    Olho nos golfinhos, gente.

    Um abraço,
    :)
    RS

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  3. Caríssimo
    Vejo que a nossa conversa deu resultados... e bons! Fico satisfeito e estou completamente de acordo com a generalidade das tuas acepções.
    "Da discussão nasce a luz"... Ainda bem que assim é! O mundo está a ficar muito escuro, mas não é, seguramente, por causa desta "sombra".
    Abraço
    Manuel

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  4. Caro amigo,

    É claro que foi ela que se autodiscriminou e isto é um sinal dos tempos. Os muçulmanos, querem impor a sua religião e a sua cultura em países que não a querem. Este crescendo de afirmação, e a condescendência do ocidente com algumas práticas, ainda vão dar muitos problemas.

    Não se tenta separar a religião do indivíduo, da mesma forma, que se não quer, que nos tentem impor a sua à força. O Niqab, é um símbolo religioso que podem usar na rua ou em casa. Nada mais que isso e assim o terão de compreender.

    Abraço.

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  5. Vanessa descoberta. Aqui: http://vozcalada.blogspot.com/

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  6. Cerveira Pinto:
    Caro Cerveira,
    Mas era isto que eu te estava a tentar dizer. :)
    O facto de me indignar perante a tentativa de alguns em impor os seus valores religiosos a uma sociedade em que esses e quaisquer outros do género são há muito parte apenas da esfera do indivíduo, não significa que não me indigne tanto ou mais ao ver essa sociedade querer impor a esses e a todos os outros indivíduos restrições à sua liberdade religiosa (ou outra qualquer). Mais uma vez, os limites são encontrados no bom senso, não em obrigações ou proibições. Um bom senso que deve imperar em todos os quadrantes, para evitar a tentação do excesso populista e fácil.

    Grande abraço,
    RS

    PiresF:
    É incrível como coisas tão simples e pacíficas causam tamanha desordem... E é incrível que a mesma ideia que entende por bem a demissão da professora que menciono também por bem entenda o despedimento de uma hospedeira de bordo pelo mero ostentar de um símbolo religioso ao pescoço...
    Tudo se mistura... Ao ponto de esta minha posição ter sido considerada "inteligente" por parte de gente acéfala e xenófoba (passe a redundância) que clama bem alto a proibição de religiões como quem proíbe fumar em recintos desportivos...

    Obrigado pela tua intervenção.
    Quanto à Vanessa, já tinha dado com ela - mas grato pelo "toque".

    Abraço,
    RS

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  7. Vejo que também és um fã do Hitchhickers guide to the galaxy. Eu vou estar de olho nos golfinhos... :)
    Um Abraço.

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  8. Outsider:
    É que, realmente, os argumentos que temos para evitar a "demolição" já são fraquinhos há muito. Cada vez mais me convenço de que apenas os golfinhos seguram as pontas. Se dependesse do Homem, apenas, já a "galáxia" se tinha marimbado para nós. Somos cada vez mais uma nódoa na face deste planeta, mas a esperança resiste.

    Abraço,
    RS

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