quarta-feira, novembro 26, 2003

O império


Nós, no nosso jardim queimado à beira mar plantado;
nós, que da desgraça alheia não sabemos mais que o lido nos jornais;
nós, para quem a desgraça própria é uma calamidade imensurável apenas porque é a nossa;
nós, os arrogantes e intolerantes restos de um império construído por espertos, mantido por inaptos e desbaratado por imbecis;
nós, os maiores da nossa rua deserta;
nós, agarrados a uma esperança a crédito mal parado;
nós, os sem espelhos;
nós, os cegos histéricos;
nós, os senhores e príncipes;
nós, por oposição a eles...

Eles, os que poluem a nossa paisagem pelo simples facto de estar ali;
eles, que se arrastam no nosso lixo à procura do inimaginável;
eles, que vivem dos restos do nosso excesso;
eles, os que não ousam olhar-nos por cansaço ou resignação ou medo;
eles, por comparação a nada.

Hoje não coloquei o meu jornal diário para reciclar. Veio um velho curvado e levou-o. Não o pode ler. Juntou-o a um monte de outros jornais e de cartões, no cimo de um pequeno carro, e foi-se, a empurrá-lo, sempre vergado.
Fui eu quem o quebrou, aquele velho.
Eu e o meu império, cujos estandartes ele não verá jamais, por estar proibido de elevar os olhos do chão. Do chão que vou permitindo que pise, à força de o ignorar.


Rui Semblano
Porto, 25 de Novembro de 2003

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