quinta-feira, dezembro 04, 2003

Cinismos


O João de Rezende, no seu Castelo de Cartas, interroga-se como pode alguém que desejaria ver israelitas e palestinianos em harmonia sob a mesma bandeira escrever um texto tão cínico como o que escrevi na entrada "Cauchemar".

Caro João,

Ser cínico relativamente à conferência de Genebra é um reflexo de quem assistiu a inúmeras tentativas semelhantes, com a agravante de muitas delas envolverem políticos activos e com grandes responsabilidades, como Camp David ou Öslo, e terem produzido documentos oficiais e não apenas declarações de intenção, como foi o mais recente caso suíço.

Vejam-se as reacções ao plano que saiu de Genebra:
Sharon avisa que o texto de Genebra é muito mais perigoso que o de Öslo (que era, recorde-se, um desastre para os palestinianos); Arafat congratula-se, mas diz logo que o direito de retorno dos palestinianos à Palestina geográfica é inegociável; a União Europeia aplaude de pé e acha o plano uma maravilha, mas não tem como o implementar; os Estados Unidos, até agora, não dizem nada - imagino como devem andar furibundos os lobbies judaicos em Washington (em especial os que têm afinidades com o ramo militar da indústria!)...

Resumindo (e repetindo-me): um circo inútil.
Todos ficam satisfeitos e vão para casa, enquanto Arafat continua a financiar os "mártires de Allah" (e as suas contas bancárias) e Sharon os empreiteiros judeus e os industriais norte-americanos. BAU... (1)

A comunidade israelita está condenada, mas não só pela inexorável explosão demográfica palestiniana. Ainda que consiga eleger um Governo trabalhista moderado (o que é um eufemismo israelita), Arafat não vai abandonar o poder. Neste momento, Arafat constitui um obstáculo maior que Sharon a qualquer iniciativa para a paz no Oriente Médio apenas por esse facto: Sharon pode ser afastado do poder, mas ele terá de querer afastar-se.

Tendo em conta a reacção dos responsáveis israelitas, palestinianos e norte-americanos (as únicas partes com voto nesta matéria, o resto é paisagem), o plano de Genebra não servirá para nada (as folhas em que é escrito têm demasiada goma, não servirão para nada mesmo). Diz-se que serviu para mostrar ao mundo como existem pessoas de ambos os campos realmente empenhadas na paz para a Palestina. E depois? Esse é o ovo de Colombo de que falava em "Cauchemar". É como afirmar que o Big Brother é importante porque mostra ao mundo o que acontece quando se enfia uma mulher e um homem debaixo de um chuveiro. Importante porquê? Mas haverá alguém que não saiba? Existirá alguém que duvide que a maior parte dos palestinianos e a cada vez maior parte dos israelitas se está a marimbar para os respectivos "Deuses da Guerra"?

Se em Genebra se tivessem encontrado altos responsáveis do Likud e do Hamas e houvesse uma séria intenção de dizer basta, seria um encontro histórico; assim, como foi, com Dreyfus a apelar a um encontro imediato de sexto grau e Mandella no vídeo, não significa nada em termos concretos. E a Palestina não precisa de lindos discursos e bravos aplausos. Como o inferno, está cheia de boas intenções.
"Deeds not words". É preciso agir.

Genebra, por muito que custe admiti-lo, foi só palavras. Bonitas, lindíssimas, mas só palavras. Estou farto de as ouvir. O que queria era ver. Ver a UE tratar Israel como tratou a África do Sul do Apartheid - e não falo de sanções económicas; falo de humilhação pessoal, mesmo, desde proibirem a participação de Israel no Eurofestival da Canção ao encerramento de todas as representações diplomáticas israelitas na Europa; gostaria de ver um embargo de material militar a Telavive; de ver um presidente da ONU a avisar Israel de que o muro que está a construir não serve para outra coisa a não ser emparedar vivos os próprios israelitas, isolando-os do resto do mundo (e gostaria de ver um verdadeiro exército europeu por trás destas palavras!).
Do que falo, é de deixar cair sobre Israel um manto de vergonha que todos vissem, e quando os extremistas árabes rejubilassem com isso, gostaria de ver a mesma chibata que vergastou os judeus abater-se sobre os fanáticos do Islão e privá-los de armas e agradecer-lhes imenso pelo petróleo, mas não obrigado que já andamos a hidrogénio. Balelas. Não verei nada disso.

E a "Europa" nunca fará nada disso. Existem mais do que suficientes políticos europeus dispostos a qualquer coisa para não perder os favores de Washington, incluindo deixar Israel de freio nos dentes, e para quem sacrificar vidas israelitas e palestinianas não custa nada. Mas todos eles aplaudiram de pé (e para as câmaras!) o bendito plano de Genebra.
É desta gente que tenho nojo. É por sua causa que todos os planos de todas as "Genebras" dão em nada. Pretender que não é assim não é apenas uma inconsciência, é um perigo.

Rui Semblano
Porto, 3 de Dezembro de 2003

(1) BAU, business as usual

nota:
O João de Rezende deve saber a minha posição sobre a Palestina, mas em caso contrário, um pulinho aos nossos arquivos seria interessante.
Desde A Sombra, um grande abraço para o Castelo de Cartas e desejos sinceros que permaneça em pé e por longo tempo.

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