sábado, setembro 06, 2003

Nine Eleven


Em breve chegará o dia 11 de Setembro de 2003.
Nessa data serão recordados os atentados de Nova Iorque e Arlington e um certo campo no Estado da Pensilvania. Nessa data serão recordadas as pessoas que pereceram nesses atentados. Nessa data serão cumpridos minutos de silêncio por todo o mundo.
É uma data infame. Nada existe a comemorar. É a evocação de um desastre. Deveria ser um dia de completo silêncio, para reflectir sobre as suas consequências, dois anos volvidos ainda imprevisíveis...
Por isso não espero pelo 11 de Setembro de 2003 para escrever sobre o 11 de Setembro de 2001. Por isso escrevo hoje.

A repetição ad nauseam das imagens dos aviões a percutir as torres gémeas do World Trade Center naquela manhã de Setembro ficará gravada para sempre na minha memória. Não as imagens, simplesmente, mas a sua repetição, uma e outra vez... Uma e outra vez...
A compensar o gosto por sangue das televisões, no seu "melhor estilo" vampiresco, estiveram a abnegação e a coragem de bombeiros, polícias, paramédicos e simples cidadãos anónimos que elevaram, de novo, a raça humana ao seu ponto mais alto.
Hoje, passados dois anos, fica o saber amargo - sim, o saber - de que esse momento se esgotou em si mesmo.

De nada adiantou a onda de solidariedade sem precedentes que se ergueu a favor dos Estados Unidos; de nada adiantaram os pedidos dos familiares das vítimas dessa trágica manhã para que mais inocentes não fossem mortos em actos de vingança; de nada adiantou, afinal, o heroísmo dos que souberam estar à altura do momento e que com os seus últimos minutos de vida nos recordaram o que é ser-se humano. Foi tudo em vão.
Como resultado do 11 de Setembro de 2001, quantos mais milhares de inocentes morreram em todo o mundo nos últimos dois anos?

Como um raio olímpico, a espada norte-americana abateu-se sobre o Afeganistão, que acolhia a Al-Qaeda de Osama Ben Laden e os Taliban do mullah Omar.
Resultados: o regresso ao poder dos senhores da guerra que fizeram os Taliban parecer anjos quando estes tomaram o poder; o retomar da produção de ópio; a divisão do país em feudos; mas, também, a ocupação de pontos geo-estratégicos pelos EUA e um envolvimento efectivo da NATO como reforço das tropas enviadas por Washington, numa lógica distorcida e pervertida de "defesa" mútua.
Objectivos alcançados: nem um único - a mudança de regime resultou num pior que o existente; o "Governo" afegão é uma anedota que mal se tem em pé; Osama Ben Laden anda a monte; o mullah Omar escapa de motocicleta por entre os dedos do mais poderoso exército do mundo...

Isto dura há quase dois anos e ninguém imagina quanto tempo mais será necessário para estabilizar o Afeganistão. Não importa. Para os EUA, o país está estabilizado o suficiente (como outrora esteve o Iraque de Saddam Hussein). Um exemplo perfeito de como dividir para conquistar, sendo essa divisão assegurada pela multiplicação dos dólares pagos aos diversos "senhores" afegãos.
E a Europa - toda a Europa - embarcou alegremente neste logro, quer para não parecer insensível ao "legítimo" desejo de vingança norte-americano como sensibilizada em excesso pelo "humilde apelo" do "presidente" G. W. Bush: "Connosco ou contra nós!".

O Afeganistão um caos? Não importa. Os desígnios de Washington não podiam esperar mais, sobretudo quando as suas reservas petrolíferas mal davam para os próximos vinte anos e quando o Iraque de Saddam Hussein indexava o seu ouro negro ao euro, incitando os vizinhos a fazer o mesmo. Seria, portanto, o Iraque a próxima conquista do Império. Os resultados são os que se conhecem.

E do 11 de Setembro de 2001? Alguém se lembra? E a memória dos que perderam a vida nesse dia? Alguém a honra? E o resultado das investigações aos atentados? Alguém o conhece?
Com um milionésimo dos custos das campanhas do Afeganistão e do Iraque seria possível construir uma réplica exacta da ala do Pentágono destruída a 11 de Setembro de 2001 e fazer um Boeing teleguiado entrar por ela dentro. Seria muito interessante de observar. Talvez, mesmo, demasiado interessante.

Mas tudo isso esquece.
Tudo pertence a um passado que há muito começou a ser convenientemente reescrito a cada dia que passa, até que não haja memória do que realmente sucedeu nesse trágico dia; até que as pessoas já não lembrem como a mesma organização que ignorou todos os indicadores de potenciais atentados e terroristas nos EUA foi capaz de produzir em dois dias uma lista detalhada de 19 nomes "e estamos seguros que todos estavam a bordo dos aviões e que foram eles quem provocou os incidentes"; até que ninguém recorde o patético agente governamental que brandiu um passaporte novo em folha com o nome e a foto de Mohammed Atta, exclamando: "Esta é a prova! Encontrámos este passaporte nos escombros do WTC!"; até que se esqueça aquela página no site da Casa Branca em que o "presidente" George W. Bush afirma ter visto o primeiro avião embater no WTC, em directo (1), na televisão... Já ninguém quer saber disso para nada.

Um dia, existirá um muro de mármore negro onde estarão gravados os nomes dos que morreram em vão no 11 de Setembro de 2001. Quanto aos muitos mais que os seguiram, como resultado da sua "vingança", nunca terão os seus nomes em memorial algum. Permaneça a memória de uns e de outros nos nossos corações, assim como a vontade e a coragem que a outros falta (2) e que gostariam não tivéssemos. A de os honrar lutando por um mundo justo onde não haja lugar para a violência gratuita - seja ela terrorista ou preventiva.

Aqui fica - hoje, já - o que tenho a escrever sobre o 11 de Setembro de 2001. A 11 de Setembro próximo nada escreverei. Nesse dia não haverá palavras. Apenas o insuportável silêncio em memória de uma humanidade perdida.
Ou quase.

Rui Semblano
Porto, 5 de Setembro de 2003



nota:
Porque não apenas "11 de Setembro"? Porque apenas 9-11 ("nine-eleven") o significa assim. Porque "11 de Setembro" é muito mais. Porque em 1973 também existiu um "11 de Setembro". Porque escrito assim, o ano não é redundante. É mesmo necessário.


(1) Excerto original seguido de tradução:

"(...) I was in Florida. And my Chief of Staff, Andy Card -- actually, I was in a classroom talking about a reading program that works. I was sitting outside the classroom waiting to go in, and I saw an airplane hit the tower -- the TV was obviously on. And I used to fly, myself, and I said, well, there's one terrible pilot. I said, it must have been a horrible accident. But I was whisked off there, I didn't have much time to think about it. And I was sitting in the classroom, and Andy Card, my Chief of Staff, who is sitting over here, walked in and said, "A second plane has hit the tower, America is under attack." (...)"
(George W. Bush, Orange County Convention Center, Orlando, Florida, USA, December 2001)

"(...) Eu estava na Flórida. E o meu chefe de gabinete, Andy Card -- na verdade, estava numa sala de aulas falando sobre um programa de leitura que funciona. Estava sentado fora da sala à espera de entrar, quando vi um avião embater na torre -- a TV estava ligada, obviamente. E eu próprio costumava voar e disse, bom, aí está um péssimo piloto. Disse, deve ter sido um acidente terrível. Mas fui levado dali, não tive muito tempo para pensar sobre aquilo. E estava sentado na sala de aula, e Andy Card, o meu chefe de gabinete, que está ali sentado, entrou e disse, "um segundo avião embateu na torre, a América está a ser atacada." (...)"
(George W. Bush, Centro de Convenções do Condado de Orange, Orlando, Florida, EUA, Dezembro de 2001)

in www.whitehouse.gov

(2) ver "À baioneta", n'A Sombra.

sexta-feira, setembro 05, 2003

Back to the old drawing board...


É com satisfação que assinalo o regresso do amigo Lourenço (LAC) e do seu excelente "O Projecto", um dos blogs favoritos d'A Sombra.
Bem vindo de volta!
Também a Catarina regressou há alguns dias e o 100nada está de volta em "(almost) full swing"! Um abraço de boas vindas para uma autora que se confessa incapaz de escrever um livro, mas que excela no blogging (ainda que isso possa significar passar de um cigarrinho aqui e outro acolá para dois packs por dia! - Easy, Cat!).

São sinais, entre outros regressos, de que o Outono se aproxima da Blogosfera. Não penso esperar pelo 11 de Setembro de 2003.

quinta-feira, setembro 04, 2003

À baioneta


José Pacheco Pereira (JPP) "volta ao Iraque" (Público, 04Set2003, p. 5, "Voltando ao Iraque") para assinar - outra vez - a certidão de óbito da ONU. Não posso deixar de a subscrever - outra vez. Como aqui escrevi, a ONU morreu - outra vez - com Sérgio Vieira de Mello.
Já se tornou evidente que as Nações Unidas serão irrelevantes enquanto os EUA persistirem na sua actual estratégia de Segurança Nacional, como definida publicamente por G. W. Bush em Setembro de 2002 (há um ano atrás):

"Hoje, a humanidade tem nas suas mãos a oportunidade de ampliar o triunfo da liberdade sobre os seus inimigos. Os Estados Unidos aceitam de bom grado a sua responsabilidade na liderança desta grandiosa missão."

(The National Security Strategy of the United States of America (versão integral), in New York Times, 20Set2002)

Pouco importa se tal responsabilidade é assumida unilateralmente, em total desrespeito pelo Direito internacional e desprezo pela ONU. JPP e muitos mais entendem que os EUA sabem o que é melhor para todos nós. E se cometem erros - e a ocupação do Iraque é um deles - temos de viver com isso, pois, como explica JPP, não existe alternativa. Entre os EUA "irresponsavelmente interventivos" e a ONU "responsavelmente ponderada", que venham os primeiros!

A vertigem da História, para JPP, não se compadece com pausas para reflexão ou atrasos para reunir consensos - é preciso avançar "e em força!"; avançar sempre, contra tudo e todos, nem que seja irreflectida e irresponsavelmente. Qualquer coisa é preferível a ficar parado - incluindo o uso de armas nucleares tácticas de baixa potência, como pretende o Governo norte-americano.

JPP coloca a lápide no túmulo da ONU com a afirmação:
"As Nações Unidas já não têm a capacidade política, nem a vontade, de defrontar os muito complexos problemas iraquianos (...)".
Mas os EUA têm ambas. Aliás, foi precisamente por os EUA terem relegado a ONU para plano "terciário" que a ONU as perdeu - é o que se subentende desta espantosa afirmação de JPP.
Pode ele dormir descansado. Algures no mundo, um marine norte-americano monta guarda à sua liberdade.

A manifesta relutância da Europa, ou de alguma Europa, em seguir de olhos fechados a "cavalgada heróica" dos EUA na sua "cruzada pela democratização do mundo" terá como resultado, segundo JPP, a explosão de autocarros "no meio de Paris ou Berlim". (Vá-se lá saber como estas cidades lhe ocorreram como exemplo!...)
E termina o insigne eurodeputado:
"Os americanos já não têm essas ilusões, porque os aviões do 11 de Setembro as resolveram de forma trágica."
Antes do 11 de Setembro de 2001, os EUA também, como a Europa de hoje, se mostravam "relutantes" em interferir nos assuntos internos de países terceiros, do modo que o fez, desde então, no Afeganistão e no Iraque. Por essa "inactividade e relutância" pagaram com o 11 de Setembro de 2001.
Se a Europa não começar já a agir "à americana", levando a "democracia" na ponta das baionetas aos "ignorantes do mundo árabe", o "nosso 11 de Setembro" há-de chegar!

Realmente, José Pacheco Pereira, só à baioneta...

Desatinos


PCP e Bloco de Esquerda
O outro lado da cegueira


Regressado de mini-férias, vejo que na "esquerda" nada mudou.
Já Augusto M. Seabra "me dizia" no Público de domingo último ("A mentira e a cegueira", p. 6, 31Ago2003) como fora triste a prestação de Miguel Portas no Diário de Notícias (21 e 28Ago2003), que perante o infame atentado contra a sede da ONU em Bagdad nada mais encontrou para dizer que o estafado "Yankees go home!".

Já quase a partir para as terras d'O Falcoeiro tinha lido no Público um artigo intitulado "PCP está contra a GNR no Iraque" (p. 9, 27Ago2003), em que é citada uma carta aberta dos comunistas a Figueiredo Lopes, protestando contra o envio da Guarda para o Iraque, alertando para a possibilidade de os 130 elementos destacados serem "um alvo natural da resistência patriótica" iraquiana. Nada como arquitectar um argumento pertinente de forma impertinente para o deitar por terra.

Pois hoje, no mesmo Público, Fernando Rosas assina um artigo intitulado "A intifada iraquiana" (p. 5, 03Set2003), onde nos brinda, entre outras barbaridades, com expressões como "onusinos", para definir os funcionários das Nações Unidas que pereceram no atentado em que morreu Sérgio Vieira de Mello.
Só o calibre do título diz tudo. Diz que Fernando Rosas não quer entender (ou dar a entender que entende) o que se passa no Iraque. E, claro, a solução é mandar os "yankees" e os "onusinos" (que termo bestial...) para casa e deixar que os iraquianos celebrem a liberdade "em paz", não se percebendo muito bem se tal significará ver Saddam sair de baixo de alguma pedra, assistir a uma guerra civil entre xiitas e sunitas ou qualquer outra coisa do género.

Definitivamente, confirmo o que já sabia muito antes das manifestações contra a invasão do Iraque em que participei e de alguns contactos mais próximos com elementos destacados do PCP e do BE: o melhor que esta "esquerda" pode fazer para ajudar a causa dos milhares (milhões em todo o mundo) que se batem pela paz e pela justiça no Oriente Próximo é ficar quieta e calada.
Nós agradecemos.

Parafraseando, livremente, uma frase do velho Independente, por altura da visita a Portugal de Mikhail Gorbatchov, ainda a Perestroika era uma miragem, e dos comentários que esse evento mereceu do Avante:
É por estas e por outras que a democracia em Portugal se deve construir não só sem esta "esquerda", mas contra esta "esquerda".

nota:
Para os que tentam "catalogar" A Sombra, esta entrada deverá criar alguns problemas. É que o pobre Ferro Rodrigues já nos mereceu honras de bombo de festa... Será desta que nos colocam no "F"? Hmm...

nota2:
Hoje, apenas à custa do meu inseparável Kuffiyeh, chamaram-me de "bloquista". Gentilmente, sorrindo, recusei a etiqueta (foi a primeira vez que me disseram tal coisa!). "E o senhor será?..." indaguei. A resposta veio pronta: "Católico e de direita!" Acabamos a cantar Bryan Ferry...
Foi interessante.

Promessas


in Diário Económico (01Set2003)

"Há momentos na vida política - e Durão Barroso já percebeu que este é um deles - em que os eleitores estão fartos da realidade e querem promessas."
(Miguel Coutinho)

(citado pelo Público em Diz-se, 02Set2003)

Crónicas d'O Falcoeiro . II


Sobre o Islão em Portugal.

A propósito dos interessantes artigos publicados no Público (Cultura, p. 34 e 35, 31Ago2003). Um memorando assinado por Lucinda Canelas, com o concurso de Cláudio Torres, director do campo arqueológico de Mértola; memorando pois mais não faz que recordar o que hoje todos deveríamos saber, quando seria de esperar que o manto da "herança romana" (e românica!) deixasse de cobrir quase tudo o que ao Islão diz respeito neste país.

Ainda assim, apesar da bem ilustrativa afirmação "Geo-historicamente, o Islão corresponde ao Mediterrâneo. Só vai até onde chega a oliveira.", o mapa publicado junto com este artigo ("O Islão em Portugal") apenas abrange o território português do Algarve até às Beiras, quando o al-Andalus ia muito além de Alfaiates - para Norte (ver Panorama n. Zero, Boassas - Uma aldeia de fronteira no Garb al-Andalus. Cinco Séculos de esquecimento. por Manuel da Cerveira Pinto).

Apesar disso, fico satisfeito ao ver este tema merecer este destaque num jornal como o Público, contribuindo para o desfazer deste equivoco. Existem mitos que servem fins muito pouco recomendáveis. O da "invasão" da Península Ibérica pelos "mouros" é um deles. Acabe-se com ele.
E comecemos a olhar as oliveiras com outros olhos.


Falcoeiro, Alvaiázere (topónimo árabe original al-Baiaz)

(edição: Tomar; publicação: Porto)

segunda-feira, setembro 01, 2003

Crónicas d'O Falcoeiro . I


Sobre o 47º Congresso da União Internacional dos Advogados.

Não é de estranhar que uma classe ligada ao Direito sugira alterações em campos a ele relativos, mas tiro o chapéu aos advogados reunidos em Lisboa por ocasião do 47º Congresso da UIA. Além de proporem o fim do direito de veto como forma de o Conselho de Segurança (CS) da ONU recuperar alguma da sua credibilidade, também eles, como tantos outros no passado, se interrogam se não será já tempo de mudar a sede das Nações Unidas para um país "neutro".

Esta ideia aparece referenciada em "Camelot 2003 . 2 . Anexo b", como eco de um episódio descrito por Diogo Freitas do Amaral, do tempo em que presidiu à Assembleia Geral da ONU.
(Diogo Freitas do Amaral, in Do 11 de Setembro à crise do Iraque, Bertrand, Lisboa, 2003)

Não entendo como "miraculosa" a solução do fim do veto no CS, mas apenas como um passo na direcção certa, ou seja, evolutivo. Já a transferência da sede da ONU para outro local, território dito "neutro", seria "um passo de gigante para a humanidade" (maior, quem sabe, que o dado por Armstrong...). Quando menciono Lisboa como opção (Camelot 2003), faço-o como ligação com o livro de Freitas do Amaral, evocando uma das "propostas" dos diplomatas que com ele conversaram, nada mais.
De facto, a sede da ONU em qualquer país da UE dará no mesmo que nos EUA. Territórios em situação de a acolher não faltam, desde a Suécia à Nova Zelândia, passando pelo Mónaco. É só escolher. Não "fica à mão"? E Nova Iorque "fica à mão" para quem?


Falcoeiro, Alvaiázere (topónimo árabe original al-Baiaz)

(edição e publicação: Tomar)