Em breve chegará o dia 11 de Setembro de 2003.
Nessa data serão recordados os atentados de Nova Iorque e Arlington e um certo campo no Estado da Pensilvania. Nessa data serão recordadas as pessoas que pereceram nesses atentados. Nessa data serão cumpridos minutos de silêncio por todo o mundo.
É uma data infame. Nada existe a comemorar. É a evocação de um desastre. Deveria ser um dia de completo silêncio, para reflectir sobre as suas consequências, dois anos volvidos ainda imprevisíveis...
Por isso não espero pelo 11 de Setembro de 2003 para escrever sobre o 11 de Setembro de 2001. Por isso escrevo hoje.
A repetição
ad nauseam das imagens dos aviões a percutir as torres gémeas do
World Trade Center naquela manhã de Setembro ficará gravada para sempre na minha memória. Não as imagens, simplesmente, mas a sua repetição, uma e outra vez... Uma e outra vez...
A compensar o gosto por sangue das televisões, no seu "melhor estilo" vampiresco, estiveram a abnegação e a coragem de bombeiros, polícias, paramédicos e simples cidadãos anónimos que elevaram, de novo, a raça humana ao seu ponto mais alto.
Hoje, passados dois anos, fica o saber amargo - sim, o
saber - de que esse momento se esgotou em si mesmo.
De nada adiantou a onda de solidariedade sem precedentes que se ergueu a favor dos Estados Unidos; de nada adiantaram os pedidos dos familiares das vítimas dessa trágica manhã para que mais inocentes não fossem mortos em actos de vingança; de nada adiantou, afinal, o heroísmo dos que souberam estar à altura do momento e que com os seus últimos minutos de vida nos recordaram o que é ser-se humano. Foi tudo em vão.
Como resultado do 11 de Setembro de 2001, quantos mais milhares de inocentes morreram em todo o mundo nos últimos dois anos?
Como um raio olímpico, a espada norte-americana abateu-se sobre o Afeganistão, que acolhia a Al-Qaeda de Osama Ben Laden e os Taliban do
mullah Omar.
Resultados: o regresso ao poder dos senhores da guerra que fizeram os Taliban parecer anjos quando estes tomaram o poder; o retomar da produção de ópio; a divisão do país em feudos; mas, também, a ocupação de pontos geo-estratégicos pelos EUA e um envolvimento efectivo da NATO como reforço das tropas enviadas por Washington, numa lógica distorcida e pervertida de "defesa" mútua.
Objectivos alcançados: nem um único - a mudança de regime resultou num pior que o existente; o "Governo" afegão é uma anedota que mal se tem em pé; Osama Ben Laden anda a monte; o
mullah Omar escapa de motocicleta por entre os dedos do mais poderoso exército do mundo...
Isto dura há quase dois anos e ninguém imagina quanto tempo mais será necessário para estabilizar o Afeganistão. Não importa. Para os EUA, o país está estabilizado o suficiente (como outrora esteve o Iraque de Saddam Hussein). Um exemplo perfeito de como dividir para conquistar, sendo essa divisão assegurada pela multiplicação dos dólares pagos aos diversos "senhores" afegãos.
E a Europa - toda a Europa - embarcou alegremente neste logro, quer para não parecer insensível ao "legítimo" desejo de vingança norte-americano como sensibilizada em excesso pelo "humilde apelo" do "presidente" G. W. Bush: "Connosco ou contra nós!".
O Afeganistão um caos? Não importa. Os desígnios de Washington não podiam esperar mais, sobretudo quando as suas reservas petrolíferas mal davam para os próximos vinte anos e quando o Iraque de Saddam Hussein indexava o seu ouro negro ao euro, incitando os vizinhos a fazer o mesmo. Seria, portanto, o Iraque a próxima conquista do Império. Os resultados são os que se conhecem.
E do 11 de Setembro de 2001? Alguém se lembra? E a memória dos que perderam a vida nesse dia? Alguém a honra? E o resultado das investigações aos atentados? Alguém o conhece?
Com um milionésimo dos custos das campanhas do Afeganistão e do Iraque seria possível construir uma réplica exacta da ala do Pentágono destruída a 11 de Setembro de 2001 e fazer um Boeing teleguiado entrar por ela dentro. Seria muito interessante de observar. Talvez, mesmo, demasiado interessante.
Mas tudo isso esquece.
Tudo pertence a um passado que há muito começou a ser convenientemente reescrito a cada dia que passa, até que não haja memória do que realmente sucedeu nesse trágico dia; até que as pessoas já não lembrem como a mesma organização que ignorou todos os indicadores de potenciais atentados e terroristas nos EUA foi capaz de produzir em dois dias uma lista detalhada de 19 nomes "e estamos seguros que todos estavam a bordo dos aviões e que foram eles quem provocou os incidentes"; até que ninguém recorde o patético agente governamental que brandiu um passaporte novo em folha com o nome e a foto de Mohammed Atta, exclamando: "Esta é a prova! Encontrámos este passaporte nos escombros do WTC!"; até que se esqueça aquela página no
site da Casa Branca em que o "presidente" George W. Bush afirma ter visto o primeiro avião embater no WTC, em directo (1), na televisão... Já ninguém quer saber disso para nada.
Um dia, existirá um muro de mármore negro onde estarão gravados os nomes dos que morreram em vão no 11 de Setembro de 2001. Quanto aos muitos mais que os seguiram, como resultado da sua "vingança", nunca terão os seus nomes em memorial algum. Permaneça a memória de uns e de outros nos nossos corações, assim como a vontade e a coragem que a outros falta (2) e que gostariam não tivéssemos. A de os honrar lutando por um mundo justo onde não haja lugar para a violência gratuita - seja ela terrorista ou preventiva.
Aqui fica - hoje, já - o que tenho a escrever sobre o 11 de Setembro de 2001. A 11 de Setembro próximo nada escreverei. Nesse dia não haverá palavras. Apenas o insuportável silêncio em memória de uma humanidade perdida.
Ou quase.
Rui Semblano
Porto, 5 de Setembro de 2003
nota:
Porque não apenas "11 de Setembro"? Porque apenas 9-11 ("nine-eleven") o significa assim. Porque "11 de Setembro" é muito mais. Porque em 1973 também existiu um "11 de Setembro". Porque escrito assim, o ano não é redundante. É mesmo necessário.
(1) Excerto original seguido de tradução:
"(...) I was in Florida. And my Chief of Staff, Andy Card -- actually, I was in a classroom talking about a reading program that works. I was sitting outside the classroom waiting to go in, and I saw an airplane hit the tower -- the TV was obviously on. And I used to fly, myself, and I said, well, there's one terrible pilot. I said, it must have been a horrible accident. But I was whisked off there, I didn't have much time to think about it. And I was sitting in the classroom, and Andy Card, my Chief of Staff, who is sitting over here, walked in and said, "A second plane has hit the tower, America is under attack." (...)"
(George W. Bush, Orange County Convention Center, Orlando, Florida, USA, December 2001)
"(...) Eu estava na Flórida. E o meu chefe de gabinete, Andy Card -- na verdade, estava numa sala de aulas falando sobre um programa de leitura que funciona. Estava sentado fora da sala à espera de entrar, quando vi um avião embater na torre -- a TV estava ligada, obviamente. E eu próprio costumava voar e disse, bom, aí está um péssimo piloto. Disse, deve ter sido um acidente terrível. Mas fui levado dali, não tive muito tempo para pensar sobre aquilo. E estava sentado na sala de aula, e Andy Card, o meu chefe de gabinete, que está ali sentado, entrou e disse, "um segundo avião embateu na torre, a América está a ser atacada." (...)"
(George W. Bush, Centro de Convenções do Condado de Orange, Orlando, Florida, EUA, Dezembro de 2001)
in www.whitehouse.gov
(2) ver "
À baioneta", n'A Sombra.