quinta-feira, janeiro 05, 2006

Factos de 2005 - III - Gitmo



Gitmo.
O real espelho de uma "América"
que Alexis soube prever em 1835.
Falamos de Guantanamo, Cuba, USA.

Entrada actualizada abaixo. Posted by Picasa


Já no regresso d'A Sombra se falou do Patriot Act (na entrada "Acto Patriótico", que, a propósito, não é uma tradução do nome do decreto, mas português cristalino, que significa "acção patriótica", sendo uma ironia, e a semelhança com a sigla inglesa um mero trocadilho).

Desde o 11 de Setembro de 2001 (e não desde que G. W. Bush foi eleito para o primeiro mandato, como muitos pensam) que os EUA estão cheios de patriotas (sem aspas). Uns, acenando a Carta dos Direitos e a Constituição, afirmam que o governo está a cometer um atentado contra a liberdade dos cidadãos e os seus direitos; outros, em peregrinação ao Ground Zero antes de partir para as "Neocruzadas", acusam os seus detractores de cegueira e irresponsabilidade perante tão grave ameaça à segurança da Nação, portanto de todos eles, uns e outros. Na entrada do local de trabalho de G. W. Bush como na entrada do seu local de recreio, os familiares dos mortos em combate "contra o Mal" acampam, dividindo-se nos mesmos dois grupos e, claro, acusando-se mutuamente de falta de patriotismo. A verdade talvez esteja entre os dois campos, como normalmente está, em tudo na vida.

O certo é que, no que diz respeito ao país a que, na Europa Ocidental, devemos a liberdade, pois à antiga URSS apenas a Europa Oriental deve alguma coisa (e não é a liberdade), muito mudou desde aquele dia de Junho, em 1944, mas não tanto como se julga. O sacrifício dos jovens norte-americanos na Normandia é conhecido de todos, mas quantos conhecem o sacrifício dos franceses que morreram sob as bombas dos Aliados na preparação dos desembarques? Entre ingleses, canadianos e norte-americanos, 10.300 baixas mortais; entre os civis franceses, 15.000 a 20.000 mortos, quase exclusivamente vítimas de "fogo amigo" vindo do céu.

Carta de Franklin D. Roosevelt a Winston Churchill, sobre os bombardeamentos de preparação para o Dia D, 11 de Maio de 1944:

Partilho consigo inteiramente a preocupação face às vítimas mortais entre a população francesa. Por mais lamentável que seja a estimativa de perdas civis, não estou preparado para impor, a esta distância, qualquer tipo de restrição ao curso de acção militar decidido pelos comandantes responsáveis no terreno que, em sua opinião, possa contribuir para o insucesso da operação Overlord ou causar baixas adicionais às forças aliadas envolvidas na invasão.

4 de Janeiro de 2006. Ontem. Jornal Público, sobre o Iraque:

Catorze membros de uma família morreram num bombardeamento norte-americano numa casa em Baiji, 200 quilómetros a norte de Bagdad, disse ontem um iraquiano, responsável de um grupo de ligação entre forças dos EUA e do Iraque. Segundo testemunhas citadas pelas agências e pela BBC, oito corpos já tinham sido retirados dos destroços: os de um rapaz de 9 anos, uma rapariga de 11, três mulheres e três homens. O Exército dos EUA alegou ter atacado depois de três suspeitos de colocarem bombas de estrada terem sido vistos a entrar na casa.

Passando sobre aquilo que os espíritos mais simples considerarão ser um disparate proporcional entre os dois casos, o cerne da questão é que, já em 1944, em especial para os EUA (mas não só), o papel dos militares não era o de proteger os civis, mas antes era aos civis que cabia a defesa dos militares (para que estes os defendessem, naturalmente). Como hoje.
Esta perversão do que deve ser um militar está na génese de Gitmo.

Guantanamo é apenas um de muitos locais onde estão aprisionados suspeitos de actividades não só terroristas como subversivas (o que, dependendo da latitude que se der a "subversivas", pode ser dar um copo de água a um vizinho de Bin Laden ou atirar um seixo contra um Bradley...). Um destes suspeitos, que não foi enviado para Cuba, mas para um outro Gitmo qualquer, é um indivíduo "perigoso" de nome Khaled al-Masri. Só o nome já assusta. Este suspeito pretendia entrar na Macedónia quando foi apanhado pelas "autoridades" e enviado para o Afeganistão, num daqueles voos que não existem ou que, a existirem, pelo menos nunca passaram pela Europa Ocidental. Já devem ter ouvido falar deste suspeito. Não é iraquiano, mas alemão. Esteve retido sem direito a ajuda jurídica ou qualquer outra durante cinco meses, em 2004, sendo depois libertado com uma palmadinha nas costas. Hoje, tem a correr um processo contra a CIA por rapto e tortura contra a sua pessoa. Afinal, apesar do nome, não era um terrorista. Era só um tipo qualquer, que pareceu a alguém ser um terrorista e que, por esse simples facto, perdeu cinco meses de vida (para não falar dos abusos físicos que estão por provar).

Mas isto só é válido para os EUA. Pobre do estrangeiro que suspeitar que um cidadão norte-americano é parecido com um criminoso e mais pobre ainda se decidir prendê-lo e julgá-lo! Um batalhão de comandos de negro vai saltar do nada e seja na Holanda ou onde for, abrir-lhe-á a porta da cela, com um familiar: "US Rangers, Sir. We're here to take you home."
Gitmo é o expoente máximo do desrespeito que os EUA têm pelo resto do mundo, da ONU a Kyoto, passando pelo TPI. De facto, o que Tocqueville previu como real perigo está a acontecer. A "democracia na América" é hoje não apenas uma fantochada, mas sobretudo um monstro.
E insaciável.

Rui Semblano


Outros factos de 2005, n'A Sombra:
Factos de 2005 - VI - Nuclear? Depende, obrigado.
Factos de 2005 - V - Paris já está a arder?
Factos de 2005 - IV - Have a smoke...
Factos de 2005 - III - Gitmo
Factos de 2005 - II - Superpotência e Prepotência
Factos de 2005 - I - Dresden 13.02.1945

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