quinta-feira, novembro 20, 2003

António Augusto Marques da Silva (1935-1991)


Desde que a minha vida se começou a desenvolver no exterior do círculo familiar, que a relação com os meus pais se alterou. Como filho único, sentia-me abafado pelos cuidados excessivos de que era objecto, pelo que, apesar de ser um homem, compreendo bem as dificuldades por que passam as mulheres, na adolescência, quando procuram o seu espaço e a sua "libertação" do jugo paterno. Também eu, não tendo irmãos, tive de travar a minha "guerra de libertação", apesar de ser do sexo masculino; circunstância que os filhos únicos acharão algo familiar.

As "guerras de libertação" deste género são injustas, de um modo geral. Os dois lados lutam com o resultado já determinado; um está condenado a perder, o outro destinado a vencer. Na altura em que travei essa luta ainda não tinha consciência plena deste facto, mas mesmo que tal soubesse, pretendia atingir a vitória num relâmpago, pelo que usei tácticas brutais e fui inteiramente impiedoso. O resultado foi uma "libertação" em tempo recorde. E o preço que paguei pela façanha veio a revelar-se demasiado alto.

A minha mãe e, particularmente, o meu pai, viram negado o acesso ao meu mundo. Passamos a ser como estranhos - mais eu, a seus olhos, que eles aos meus, pois fui eu que transformei a minha vida num mistério indecifrável para eles. Com excepção das frases de circunstância e das conversas banais, um silêncio "bem educado", civilizado, imperou entre nós durante longos anos.

Quando saí de casa, tudo mudou.
Conheci o meu pai de uma forma diferente e ele a mim. Terminaram os silêncios. De repente, o meu pai era o meu melhor amigo e não havia nada de que não pudéssemos falar. E tinha tanto para lhe dizer...
Esta amizade com o meu pai, reencontrada e renovada, surgiu mais forte e deu-me uma paz e uma felicidade que apenas conhecera em criança, quando bebia cada uma das suas palavras e olhava os seus gestos como se de um herói se tratasse. Ele era, de novo, o meu herói. Os anos que passei de costas voltadas (pois fui apenas eu que as voltei) seriam recuperados, finalmente. Decidi encetar a tarefa naturalmente, tranquilamente. Afinal, tínhamos todo o tempo do mundo.

Menos de um ano depois deste reencontro, no dia 20 de Novembro de 1991, a seis dias do seu 56º aniversário, o meu pai morreu. Sem avisos... Sem alarmes. Estava a trabalhar; foi depois de almoço; sentiu-se mal. Chegou ao hospital já sem vida. Eu cheguei lá depois. Não consegui vê-lo. Não pude falar-lhe.
Será o meu castigo pelos anos de orgulho e arrogância, o não poder recordar-me das suas últimas palavras. Quando as ouvi, não sabia que seriam as últimas.
E esqueci-as.

Estaria escrito, algures, que pagaria o meu erro com a prova de uma felicidade de que não conheci mais que uma miragem... Um vislumbre. Que perderia de novo o meu melhor amigo depois de o ter reencontrado, pois antes lhe voltara as costas e me achara melhor que ele. E não haveria outra oportunidade. O tempo acabara.

Hoje, exactamente doze anos depois desse dia, continuo a tentar o impossível: tentar chegar a ser metade do homem que foi o meu pai.

Não tenho palavras para terminar.
Socorro-me das de um velho amigo...


All of old. Nothingelse ever.
Ever tried. Ever failed. No matter.
Try again. Fail again. Fail better.



A meu pai.

Rui Semblano
Porto, 20 de Novembro de 2003

Sem comentários:

Enviar um comentário