sexta-feira, novembro 21, 2003

Os cadeados e a democracia


Eu, junto com colegas meus, fechei a minha Faculdade a cadeado. Foi no ano de 1998. Nessa altura, nas páginas do Público, expliquei as nossas razões numa carta que foi publicada na íntegra e que aqui reproduzo. Chamava-se...

"O porquê do cadeado.

Decidimos fechar a nossa Faculdade a cadeado durante cinco dias. Não foi uma decisão fácil. Fazemo-lo para protestar contra a injusta lei de financiamento do Ensino Superior e, paralelamente, contra a falta de condições e qualidade que sofremos dia após dia na nossa Faculdade. Eu sou um dos responsáveis por esta decisão; fui um dos que primeiro a propuseram e votei-a favoravelmente.
Não foi fácil porque, como o Magno Reitor da Universidade de Coimbra, também eu não gosto de cadeados. Mas gosto ainda menos que os outros nos façam de palhaços, sobretudo quando os outros são, supostamente, nossos colegas.

Vivemos um período difícil a muitos níveis e não será a Expo-98 a resolver os problemas que afectam o país em áreas vitais como a Assistência Social, o Emprego, a Saúde e o Ensino. Como estudante, bato-me principalmente pelo Ensino e com perfeita consciência de o fazer pelo futuro, para conseguir alterações que só muito à tangente me vão beneficiar e que só os estudantes futuros apreciarão na sua totalidade.

Somos perto de 800 alunos na minha Faculdade. Estes problemas dizem respeito a cada um deles e cada um deles tem a sua opinião, com todo o direito a tê-la. No entanto, em Assembleias Gerais de Alunos onde tais problemas são discutidos e são decididas formas concretas de acção para os resolver, surgem apenas cento e poucos desses 800 quando o assunto é polémico (como foi o caso em que se debateu a lei de financiamento e o encerramento da Faculdade) e, na maior parte dos casos, muitos menos comparecem... Trinta ou quarenta, ou ainda menos.

Como seriam as Assembleias em 1969? Não sei. Tinha seis anos em 69. Dizem que não havia cadeados e que ninguém ia às aulas. Mas sei como são as Assembleias em 1998, por isso não posso concordar que estudantes que não tenham respeito por si próprios e muito menos pelos seus colegas venham estragar o trabalho que, apesar deles, está a ser feito.
Quem pensa que nada tem a fazer numa Assembleia Geral de Alunos e deixa nas mãos de outros o seu destino perde, desde então, o direito de o alterar. Mas se esta é uma verdade universal, a realidade do passado mostra-nos que não é assim que acontece. Depois de tomadas decisões importantes que dizem respeito a todos os estudantes, são aqueles que nada fizeram para tomar parte na discussão de tais decisões, e que tão-pouco as votaram, que surgem supostamente indignados por serem sujeitos às suas consequências. Lamento que seja assim. Não gosto de cadeados, mas vejo bem a sua necessidade e razão.

Como diria um "sans-culotte" convicto a um seu colega, no romance de Anatole France, quando este se queixou de que só uma trintena de entre 900 cidadãos comparecia às assembleias da sua secção parisiense:
«Se eles viessem todos, os patriotas ficariam em minoria...»

Rui Semblano
Faculdade de Belas Artes
da Universidade do Porto"


in Público, Cartas ao Director, 30Jan1998


Como ainda é actual este texto, infelizmente. Experimente-se trocar a Expo-98 pelo Euro 2004 e passar da FBAUP para Coimbra...
A decisão grave de encerrar uma Faculdade, por parte dos seus estudantes, deve ser suportada por uma base legítima: sempre uma deliberação tomada em Assembleia Geral de Alunos (também designada por Reunião Geral ou Assembleia Magna de Alunos, conforme as instituições onde se realiza ou o âmbito da mesma). Essa Assembleia tem de ser previamente anunciada de modo claro, constando do aviso a sua data e ordem de trabalhos exacta. A partir daí, quem não aparece é demissionário. Não tomar parte de uma Assembleia em que se votam assuntos sérios ligados aos estudantes e depois dizer que se é injustiçado é o mesmo que não ir às urnas e queixar-se do Governo.

Mas a legitimação destas acções apenas respeita ao universo académico; isto é, e neste caso concreto, obviamente que encerrar uma Faculdade a cadeado é ilegal. É tão ilegal como cortar uma estrada ou entupir uma portagem. É uma forma limite de luta e quem a toma tem de estar preparado para assumir a sua responsabilidade perante a sociedade e as suas leis - em último caso justificando a sua acção perante um juiz que pode mostrar pouca simpatia ou compreensão pela acção escolhida. Quando eu assumi, enquanto dirigente associativo, a responsabilidade pelo encerramento da FBAUP, estava plenamente consciente de duas coisas: da necessidade do acto ilegal e da possibilidade de ser punido por ele. Mas isto é uma situação clara.

Outra, completamente diferente, é escrever contra o encerramento das Faculdades a cadeado com o pretexto de tal acção ser um atentado aos direitos dos alunos que pretendem ir às aulas, como alguns fazem.
Quem assim escreve não faz prova de grande capacidade intelectual, para dizer o menos. É o mesmo que escrever que as leis do Governo PSD/CDS são um atentado aos direitos dos cidadãos que não foram votar.

Como escrevi em 1998, não faço ideia como foi em 69, mas deve ter sido grandioso. Conseguir mobilizar os estudantes de modo a que cada um interiorizasse que aquela luta era dele mostra bem o nível cultural de então.
Em 2003 já só de cadeado... Como já em 98...
Isto diz bem de como os estudantes encaram o seu papel na sociedade. E é o espelho exacto dela, para nossa desgraça.


Rui Semblano
Porto, 19 de Novembro de 2003

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