Da Liberalização, da Democracia e dos seus Espelhos
(A propósito de algumas entradas em blogs sobre o papel actual do Estado no que toca à Providência, seja pelo RMG, pela gestão florestal ou pela relação de Portugal com a UE. Resumindo: sobre o tipo de Estado em que vivemos.)
1. Intro
As criticas ao Sistema em que vivemos são as mais variadas e coloridas. Algumas mesmo bem documentadas, com referências a documentos interessantes, cheios de considerações que, independentemente do agrado que nos provocam ou não, têm o mérito de nos pôr a pensar; o que não é nada mau.
O Sistema em que vivemos tem um nome curioso, que apenas aos incapazes de raciocínio não faz rir, seja pela ironia, seja pela tragicomédia que encerra:
Democracia.
Mas que democracia?
Desde logo, convém desfazer um mito que tem circulado na nossa sociedade (e refiro-me à Europa), originado num restrito e maniqueísta nicho, que se tem vindo a repercutir em círculos cada vez mais alargados:
O de que a Democracia que conhecemos na Europa tem tudo a ver com a norte-americana, seguida, rapidamente, da doméstica conclusão de serem os valores portugueses idênticos aos norte-americanos.
Serviu isto de suporte ao tristemente célebre e redutor "connosco ou contra nós", aludindo a uma escolha, de facto descabida, entre o Iraque déspota e os Estados Unidos democratas.
Na realidade, a este respeito, existem duas constatações que são indesmentíveis:
A primeira, que a democracia nos EUA é substancialmente diferente da europeia (os apregoados "valores comuns" que, supostamente, nos unem são muito menos que os "díspares" que nos separam).
A segunda, em sequência directa da anterior, que a democracia europeia (da qual a portuguesa é uma mera variante), bem como a norte-americana, bem entendido, não passa de uma caricatura.
Quantos de nós se riram com a "Mafalda", de Quino, quando esta descobriu o significado e origem da palavra "democracia" num dicionário? E quantos de nós ainda hoje se riem? Eu já não me rio.
A democracia que conhecemos hoje é mais uma bola de borracha, que serve para tudo menos para cumprir os seus próprios fundamentos, a saber: o poder de decisão dos governados sobre os governantes e os seus actos.
É precisamente nesta componente, "e os seus actos", que está o problema.
Falemos de Portugal, então.
Os sucessivos Governos, desde o 25 de Abril de 1974, terão sido eleitos democraticamente? Em princípio sim. Mais, sobretudo "no" princípio, quando a afluência às urnas era grande. O que se tem verificado é que tal afluência tem decrescido. Mas tal parece estar a inverter-se. E, curiosamente, não no número de votos atribuídos aos partidos, mas aos que não são atribuídos aos partidos.
Aos votos em branco.
Imaginemos que, em lugar da abstenção, se verificava uma votação em branco do mesmo nível desta. O que sucederia? Pois nada. É ver-se, a cada ronda eleitoral, a importância dada aos votos em branco e às abstenções.
Pessoalmente, que não abdico do meu direito de voto e o faço em branco como forma de protesto, por não me rever nas forças em presença, fico aborrecido por ver como comentadores e analistas dão maior importância aos que não querem saber do seu direito de voto para nada do que aos que votam em branco.
E se por cada
"x" votos em branco existisse uma cadeira vazia no parlamento?
Em bom português, estou-me borrifando para os que não se dirigem às urnas. Para eles, é indiferente quem os governa. Ao votar em branco, pelo contrário, eu e muitos como eu estão a dizer, bem alto, que não nos é indiferente quem nos governa, mas antes que quem concorreu às eleições não nos merece a confiança para governar.
Este tipo de voto devia ser importantíssimo, pois é ele que mede o nível de descontentamento da sociedade com a classe política (e não os níveis de "
assim-assim" das sondagens). Devia ser um factor de pressão, pois, a partir de uma determinada percentagem, impossibilitaria a constituição de uma nova legislatura, obrigando os políticos a pensar - de verdade - o que correu mal e a tentar corrigir esses aspectos.
Serão os candidatos? Será o programa? Será o quê?
Vejam-se os recentes fogos florestais.
Todos os quadrantes políticos, do BE ao CDS/PP, tentam tirar dividendos desta tragédia e não se vão esquecer de a mencionar, cada um a seu modo, nas próximas eleições.
"Porquê?" não é a pergunta, mas sim "Porque não?".
Vai ser "giro", estará "na moda", será parte "sine qua non" de qualquer campanha que se preze, mas nada mais que isso. No final de contas, o que importa é que existam mais cruzinhas no "martelinho" que na "setinha", na "estrelinha" que na "rosinha", na "laranjinha" que na "mãozinha".
Depois, feito o Governo e terminada a "dança das cadeiras" no parlamento, o povinho tem é de estar calado e aguentar uns anitos, mesmo que o resultado das eleições, em termos de acção do Governo, mal recorde o programa eleitoral que, supostamente, o elegeu. E quanto aos deputados, incluindo ministros, é o mesmo. Ainda que não sejam quem se pensava que eram, há que aguentá-los até ao fim.
Veja-se o escândalo que foi um chefe de estado-maior ter demonstrado falta de confiança no "seu" ministro! Parece que a confiança se exerce apenas de cima para baixo, isto é, que se um primeiro-ministro declarar ter perdido a confiança no povo português, teremos de mudar todos de país...
Mas, alto lá! Aí vem a bola de borracha! (cuidado com as cabeças!):
O povo é "quem mais ordena", ou seja, nós estamos acima dos que elegemos, por via dessa condição! Está claro. O primeiro-ministro não tem esse direito.
Mas, então, nós podemos mandar passear o primeiro-ministro!
(Cuidado com a bola!):
Não! Alto aí! O primeiro-ministro é o chefe de Governo e comanda todos os portugueses! Não se pode pôr em causa a sua legitimidade.
Neste ponto, aquele miúdo esperto do 3º ano do primeiro ciclo levanta a mão e pergunta: "Desculpe, mas se foi o povo que o legitimou, qual a sua legitimidade para se sobrepor ao povo?"
A bola de borracha atravessará a sala, vinda ninguém sabe de onde, e, ao levantarmos as cabeças, verificaremos que o miúdo desapareceu, enquanto o primeiro-ministro, ajeitando o fato, dirá: "Next question, please? CNN, yes."
É esta a nossa "democracia".
E não me falem de "Democracias Directas" ou "Indirectas".
Ou há democracia ou não.
Uma vez que não a temos, deviam-lhe chamar outra coisa, mais aproximada ao que existe no seu lugar. Tecnocracia ou Autocracia ou Mediocracia...
Mas nunca Democracia.
Continua...
(there's more to follow. Stay tuned.)
Este texto compõe-se das entradas:
1. Intro - A Democracia, esse mito.
2. Mezzo - Tragédia Comum.
3. Finale - A expansão da loucura.