sábado, outubro 04, 2003

Tintin e o Público


A nossa entrada "Tintin por Tintin" foi enviada ao jornal Público, em forma de carta ao seu director. Pela primeira vez desde que envio cartas ao Público, e apesar de esta não ter merecido (e bem, a meu ver) honras de publicação, o director respondeu directamente.

As cartas que envio "ao director" não são mais que uma forma de ajudar o Público a perceber o impacto que a sua acção exerce no... público. A percentagem de escritos enviados por mim que foram publicados é, naturalmente, motivo de satisfação, mas o objectivo é sempre mais o de fazer chegar a mensagem aos responsáveis do jornal que o de ser lido pelo público em geral.

Dada a curiosa e simpática resposta, e ao abrigo do "direito de resposta" n'A Sombra, aqui fica registada a resposta de José Manuel Fernandes à entrada "Tintin por Tintin".

--- quote ---

From: José Manuel Fernandes [mailto:jmfernan@publico.pt]
Sent: 29 September 2003 14:08
To: [e-mail reendereçado via serviços do Público para Rui Semblano]
Subject: RE: Carta ao director


Tem razão no que diz, mas não pelas razões que invoca. O papel que tínhamos acordado com o o nosso fornecedor é aquele com que foi distribuído o "Explorando a Lua" e não o do "Rumo à Lua". Não houve tempo de devolvermos o fornecimento e por isso é que a edição foi para a rua. E não colocámos de imediato um esclarecimento aos leitores pois só na véspera da distribuição do 2º album tivémos a certeza que vinha com o papel bom.
Como deve compreender, nós fomos os mais penalizados pelo que sucedeu com o primeiro número. Queríamos causar a melhor impressão para conseguir fidelizar mais leitores, e saiu-nos um livro com um papel muito defeituoso. Mas isso é assunto que estamos a tratar nos lugares próprios.
Quanto à sua sugestão para quem fizer toda a colecção, vou entregá-la a quem de direito dentro da empresa.
De resto, como amante igualmente da banda desenhada, também prefiro a edição francesa, mas entre as duas edições disponíveis em português - a brasileira e a editada pela Verbo - optámos por esta última por respeito para com o português que se fala em Portugal, mas com consciência dos defeitos que contém. Mesmo assim eu, por mim, vou fazer a colecção (pagando-a, pois apesar de ser director, não ma oferecem).
Com os melhores cumprimentos

José Manuel Fernandes

--- end quote ---


:)

Of birds and bees


As boas vindas d'A Sombra ao Miguel (aka Migalhas) e ao seu simpático blog. Em raras ocasiões um primeiro encontro motiva uma entrada directa de um blog para a nossa lista permanente de Blog Links. Esta é uma delas.

Como Falcões que somos (alguns de nós) a passarada é sempre motivo de alegria! A classificação da listagem de blogs do Miguel (excelente) considera-nos como Picanços Reais. Agradecemos a analogia (sobretudo pelo sangue azul - RS e FJ) e é com prazer que A Origem do Amor passa a estar direccionada em permanência entre os predilectos d'A Sombra.

Pel'A Sombra,
RS

nota:
Esta ligação, pela primeira vez desde há muito, não implicou a remoção de qualquer dos blogs pour le mérite (plm) da lista de Blog Links.
Isto complica-se! :)

O Ensino Superior privado n'A Sombra - nota

Notas para a análise da Universidade Privada em Portugal.
Considerações finais
(ver índice aqui ou no final desta entrada)


Terminado o conjunto de três entradas sobre o tema em epígrafe, esta breve nota final destina-se a salientar que o meu ponto de vista, embora incidindo sobre o sector privado, passou em excesso pelo público, na medida em que não é possível, para mim, pensar nos dois de outra forma que complementar.

Saliento ainda que a entrada 2.a é um verdadeiro anexo, destinado mais a contextualizar a minha visão do CRUP e da(s) Universidade(s) que regula, de modo a ajudar à compreensão das minhas opiniões pelos que as lêem.

Apenas agora vou iniciar a ronda pelo que sobre este assunto se tem escrito na blogosfera, pois não quis alterar o que tinha para dizer pelo conhecimento prévio de mais opiniões, nem na forma como expus as minhas nem no seu sentido.

Termino agradecendo a paciência dos que acompanharam a publicação espaçada destas entradas e pedindo desculpa por alguns atrasos na publicação das mesmas, bem como pela ocorrência de alguns erros técnicos e humanos na sua edição e publicação.
Considere-se a versão definitiva das mesmas a partir das seis horas da manhã de Sábado, 04Out2003, momento da última revisão.

Pel'A Sombra
Rui Semblano


Índice deste tema, n'A Sombra:

1. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?
2. CRUP - Opus Ensemble
2.a Anexo: Autonomia Universitária para que te quero!
3. Universidade e Emprego
nota. Considerações finais

sexta-feira, outubro 03, 2003

O Ensino Superior privado n'A Sombra - III

Notas para a análise da Universidade Privada em Portugal.
Parte 3 de 3
(ver índice aqui ou no final desta entrada)


III. Universidade e emprego

No Público de 02Out2003, pode ler-se uma citação de Emídio Rangel, extraída de declarações prestadas à TSF, em que este afirma que "quem não quer pagar propinas, vá trabalhar!" e também que "os estudantes ou estudam ou têm que ser postos na rua. E os reitores que não têm coragem para tomar decisões devem ser demitidos."
Como é possível alguém, seja quem for, dizer barbaridades destas em plena rádio? É simples. Deve-o aos estudantes, que, ano após ano, balem "não pagaamos, não pagaamos". Pode dize-lo e toda a gente lhe dá razão. Têm que lhe dar razão. Eu dou-lha.

Dando de barato que esses estudantes, na sua esmagadora maioria, não pagam nem nunca pagaram propinas (alguém as paga por eles), uma das razões pelas quais não deviam pagar é a péssima relação licenciatura/emprego que o Estado criou, à custa de tanta e tão grossa asneira cometida em matéria de Ensino. Por um lado, permite-se a entrada na Universidade a qualquer um, por outro, as vagas para o Ensino Superior não têm relação nenhuma com a realidade do mercado. Esta última consideração é polémica em cursos que nada têm a ver com este tipo de relação, mas, para esses, resultam outros factores, como a incapacidade de filtrar decentemente os candidatos, que vão encher as Faculdades até ao limite, sendo este relacionado com factores que nada têm a ver com qualidade, antes com quantidade.
Mas caberá ao Estado, no caso da relação licenciatura/emprego, esse papel? Não será o mercado, ele mesmo, que se deve encarregar de estabelecer limites? A resposta é sim, para ambos os casos.

Se o mercado deve marcar a procura, ao Estado, como responsável pela Universidade pública, cabe regular a oferta. No caso do Ensino Superior privado é lógico que tal não suceda, mas o público deve ir mais além que o privado, que pretende, antes de mais, responder proactivamente ao mercado. Ao Estado cabe a prevenção e o bom senso.
Caso o problema da educação não fosse global, mas apenas do Superior, esta desregulação desenfreada estaria já a ser corrigida pelos próprios candidatos, pois estes, se detentores de outros atributos intelectuais, deixariam de concorrer a cursos que sabem, à partida, terem esperança de emprego muito reduzida. Apenas os que, realmente, têm vocação e vontade de seguir tais licenciaturas e, consequentemente, tais profissões, concorreriam a esses cursos. Do modo que a situação está, milhares de estudantes entram nas diversas Faculdades porque é para elas que têm média e não por o desejarem.
Quantos de nós não conhecem, pelo menos, um caso de um estudante que pretendia Medicina, mas, como não tem média para tal, opta por Informática ou Biologia ou outra coisa qualquer... Os cursos de entrada com médias negativas estão cheios de gente assim. Os que têm na família ou nos amigos "aquela cunha" que lhes permite um bom emprego desde que tenham um DR antes do nome, qualquer que ele seja, estão garantidos, mas não há tantas cunhas assim em Portugal. Os restantes vão para o desemprego.

A confusão é instalada ao relacionar conceitos sem nexo absolutamente nenhum, como o da Universidade gratuita, dando a entender que tal é o mesmo que falar da Universidade ao alcance de todos. Não é.
Ainda recentemente, no Público de 01Out2003 ("Novamente as propinas"), Fernando Rosas vem levantar de novo o "esplendor" do Ensino Superior público "universal e tendencialmente gratuito", como se de gémeos siameses se tratasse, desígnio "nacional" da grande marcha socialista que nos levará à vitória da Cultura sobre o Capital. Caro Fernando Rosas, nós já demos para esse peditório.
No dia em que os meus impostos pagarem, na íntegra, o curso de um médico, não espero menos que ser atendido por ele gratuitamente, sempre que necessite, seja num hospital do Estado, seja no seu consultório privado - mas que digo! Nesse caso, não existiriam consultórios privados!

Um curso superior é um meio de promoção pessoal, mas é, sobretudo, um meio de promoção social e capitalista, que irá proporcionar ao licenciado uma forma de ganhar a vida bem melhor que um não licenciado - e nem me falem em Belas Artes, pois tive colegas que estavam longe de terminar o curso e já pediam, na altura, 400 contos por uma tela de dimensões médias.
Porque haveria tal coisa de ser gratuita?

Que se crie um sistema justo (de verdade) de bolsas e empréstimos é uma coisa, mas o Ensino Superior nunca poderá ser gratuito. Nunca poderá existir uma Universidade em cada aldeia e um doutor em cada esquina.
Todos devemos garantir, através dos impostos, uma escolaridade obrigatória universal, gratuita e de qualidade (o que não sucede ainda!), como garante do nível cultural das gerações vindouras, afinal, os nossos filhos, mas o Ensino Superior não é obrigatório.
Só entra quem quer (e pode, devendo ser o "pode" uma questão de conhecimento e não de dinheiro) e só paga quem quer e pode (aqui, sim, uma questão de dinheiro). Quem não tem condições económicas e merece entrar, esses sim, devem ser ajudados - mesmo que isso signifique não pagarem um cêntimo durante todo o curso. Mas, mesmo esses, não deverão estar isentos de o pagar.

Aqui reside a grande diferença entre o Ensino Superior privado e o público.
Os que recebem ajudas do Estado, que se licenciam com o dinheiro público, deverão pagar de volta essa verba, uma vez a trabalhar no ramo das suas licenciaturas. Isto instituído, seria bom de ver o Estado preocupado com a regulação da relação licenciatura/emprego - pois se permitisse a licenciatura de milhares de desempregados não veria um cêntimo do seu dinheiro.
No privado, isto seria válido para os cursos que o público não oferece, obedecendo às mesmas regras, naturalmente, para evitar que uns bons milhões de euros entrassem nos cofres das Universidades privadas à custa de cursos como "Filosofia Ambiental" ou "Marketing Aquático". Fora isso, nenhuma intervenção do Estado deveria ser feita no Ensino Superior privado; isto é, querem ter esse tipo de licenciaturas? Força! Nem sequer seriam controlados currículos ou a qualidade da docência, para além das óbvias condicionantes legais.
Mas já vimos que nada disto sucede.

Criou-se o mito da Universidade como direito de berço de cada português, esquecendo que cada português tem de merecer esse direito. E criou-se o mito da Universidade socialista inserida numa sociedade capitalista como um princípio pelo qual vale a pena lutar.
Quer-me parecer que se o Che fosse vivo e ouvisse os Fernandos Rosas deste País a falar morreria de novo, e desta vez sem "ajuda". Uma sociedade capitalista comporta na perfeição um sistema de base gratuito, seja no Ensino ou na Saúde ou em outros campos fundamentais do Estado, mas não pode tolerar que um cidadão tenha que ser pago pelo que não é obrigado a fazer. Um Estado-providência não é um Estado gratuito nem parvo. Garantir aos cidadãos condições dignas e igualdade de oportunidades em áreas como o Ensino não significa pagar luxos - e a Universidade é um luxo, numa sociedade capitalista, pois proporciona aos que a frequentam viver acima do nível dos que não a frequentam - em todos os casos.

Há muitos médicos desempregados? Não. Há muitos médicos sem emprego por opção própria. O que há é muitos hospitais a necessitar de médicos e - imagine-se - até escolas sem professores.
Ou querem convencer-me que as "meninas" e os "meninos" não sabiam que já existem médicos e professores que chegam e sobram em Lisboa e no Porto quando escolheram essas profissões? Mas até isso se perdeu.
Hoje, quantos estudantes universitários sabem o que querem ser "quando forem grandes"? Muito poucos. "Primeiro o canudo, depois se verá", dirá a maioria deles. E os professores ajudam. Não era raro que um professor de Pintura, por exemplo, ficasse escandalizado ao saber que um aluno seu pretendia pintar, acabado o curso. Pergunta imediata, de boca aberta: "Pintar? Mas... Não quer dar aulas?"


A situação atingiu o ridículo ao banalizar o Ensino Secundário a tal ponto que do tal "direito de berço" à entrada na Universidade à comparação das Universidades privadas a estabelecimentos particulares do Ensino Secundário foi um pequeno passo. Nada mais falso.
As Universidades privadas estão ao mesmo nível das públicas, sendo as diferenças fundamentais questões técnicas, como as bolsas aplicáveis ao privado ou a garantia da manutenção de licenciaturas ditas "não lucrativas" - pelo sector público; para o privado, tirar as aspas, se faz favor. Estes pontos já aqui foram focados, pelo que não me vou repetir.

Existem licenciados em demasia e técnicos em falta - quase ninguém (excepto alguns, mais atentos, que ganham mais dinheiro que muitos "doutores") quer ser um técnico, e as possibilidades de o ser são, ao nível do Ensino, cada vez mais reduzidas. Já se formam técnicos de turismo em Universidades, c'os diabos, com direito a praxe, traje, canudo e tudo! E chamam-lhes "doutores", no fim da prova. A oferta universitária é esmagadora - veja-se os esforços titânicos de alguns politécnicos para obter equivalências! Ridículo.

No dia em que entendermos que entrar numa Universidade é, apenas, uma opção entre muitas começará a verdadeira reforma do Ensino em Portugal. Até lá, continuaremos a assistir às cínicas tentativas dos Governos, do CRUP, dos docentes universitários e dos estudantes em geral (que a febre começa no Secundário!) para tornar mais e mais acessível a entrada na Universidade aos filhos de todos os portugueses. Porque todos temos o direito e o dever de ser doutores.
É neste processo que reside a história do triste Ensino Superior que temos hoje - público e privado.

A constatação deste facto, porém, não significa que a Universidade esteja condenada em Portugal. Claro que a média cultural dos discentes universitários é cada vez mais baixa; claro que bem para cima de metade dos docentes universitários o são por necessidade (a sobrevivência obriga) ou por dinheiro (que ainda é um aliciante, no sector público, onde a reforma é factor de peso). Mas esta junção incrível de ignorantes, necessitados e mercenários não pode ser o futuro da nossa Universidade.
É preciso depositar alguma esperança nos que entendem que o problema está longe de resolvido - alunos, professores, pais e governantes - e estão na disposição de tentar que o Ensino Superior público e privado retomem a dignidade e o crédito que perderam.

Uma e outra vez mais é preciso ser realista.
E exigir o impossível.


Rui Semblano
Setembro e Outubro de 2003


"Seamos realistas, exijamos lo impossible"
Ernesto Che Guevara (1928-1967)


Índice deste tema, n'A Sombra:

1. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?
2. CRUP - Opus Ensemble
2.a Anexo: Autonomia Universitária para que te quero!
3. Universidade e Emprego
nota. Considerações finais

O Ensino Superior privado n'A Sombra - II a

Notas para a análise da Universidade Privada em Portugal.
Anexo a da parte 2 de 3
(ver índice aqui ou no final desta entrada)


II. CRUP - Opus Ensemble
II. Anexo a. Autonomia Universitária para que te quero!

Quando a Associação de Estudantes que eu presidi (AEFBAUP) [1] se afirmou favorável ao pagamento de propinas (em 1997/98 e 1998/99) obtivemos dois tipos de reacção: a total confusão dos nossos colegas de outras Associações Académicas (incapazes de relacionar esta posição com a nossa actividade de contestação, que só encontrou paralelo na AEFA/UTL [2], aliás mais activa que nós, fruto de maior adesão dos seus estudantes à luta pelos seus direitos) e o reconhecimento imediato por parte da Reitoria da Universidade do Porto (UP) e do Ministério da tutela (que nos destacou da restante massa associativista estudantil e percebeu bem a ameaça que representávamos).

Fomos a única Associação de Estudantes do país, de uma Faculdade de uma Universidade pública, a receber um convite do então ministro Marçal Grilo, mediada pelo Reitor da UP, à altura Alberto Amaral (1998).
A tal ponto essa reunião era importante para a Reitoria e para o Ministério, que teve lugar mesmo depois de eu ter recusado um ultimato de Alberto Amaral, em que me era exigida, como condição prévia para a reunião existir, a garantia da não existência de manifestações públicas contra Marçal Grilo junto à Reitoria da UP, onde decorreria o encontro, por parte de estudantes da minha Faculdade. A minha resposta foi clara.
"Se é esse o preço deste encontro, professor, então não haverá encontro."
Pois houve. A quase totalidade dos membros da AEFBAUP esteve presente.
E antes, durante e após o mesmo, os nossos colegas faziam ouvir as suas vozes e erguiam os seus cartazes, junto à Reitoria da UP, alguns deles, contrariando a nossa posição, gritando que "não pagavam"; outros, mais conscientes, exigindo que lhes fosse dada a qualidade que iriam pagar antes de o fazerem. A democracia é assim; todos têm direito a manifestar a sua opinião; até os que estão errados.

Se hoje se pagam propinas nas nossas Universidades, é porque a nossa posição era isolada no seio do chamado "movimento estudantil" (uma anedota triste, o "movimento"). Por não nos terem ouvido os colegas a quem repetimos, vezes sem conta, que o caminho para não pagar a "refeição" passava por reclamar e trazer à luz do dia a fraca qualidade desta e não o seu preço excessivo. Toda a gente entende que não se pode pagar por um croquete o mesmo que por um bife, mas ninguém entende que se queira comer sem pagar. Ao escolher o caminho do "não pagamos", a luta perdeu-se antes de começar. E foi pena. Existiam, existem ainda, motivos de sobra para não se pagar propinas, quanto mais para as não aumentar. Mas tudo o que vejo são frases batidas e argumentos estafados. Os estudantes continuam a exigir que os compreendam, ao afirmar que se acham no direito de comer sem pagar. Isto não acontece, nem aconteceu, por acaso ou distracção.
É que muitos deles, talvez a esmagadora maioria deles, não faz a mínima ideia do essencial da questão, isto é, não sabem distinguir um croquete de um bife. Mas talvez esteja a ser demasiado duro com eles. Afinal, a maioria nem escrever sabe...

No processo em que estive directamente envolvido, pela reclamação do "bife" como garantia do pagamento da "refeição", a Reitoria da UP reagiu a dois tempos.
Primeiro, com abertura e compreensão, protagonizadas por Alberto Amaral, que chegou mesmo a pressionar fortemente os presidentes dos órgãos de gestão da FBAUP (o que testemunhei) para darem andamento a processos internos, de avaliação pedagógica e curricular, e que colocou em marcha uma auditoria às contas da Faculdade, que se viria a revelar pacífica em termos de matéria criminal - que nunca foi o nosso problema - mas demolidora em questões de legalidade processual. [3] Alberto Amaral, porém, estava de saída. Não pretendia que o seu nome ficasse associado ao processo da FBAUP de modo ambíguo, e a sua reputação ficou enaltecida pelo empenho que demonstrou em "pôr ordem na casa". Mas ele sabia bem que não lhe caberia terminar o processo. De onde o segundo tempo.

Seguidamente, veio a perfídia e a dissimulação, personificadas na perversa personagem de Novais Barbosa - até hoje, vá-se lá saber porquê, Reitor da UP - que tudo fez para abafar os nossos desígnios, ao mesmo tempo que nos assegurava estar em andamento irreversível a Sindicância à Faculdade, segundo passo a tomar, após a fantochada que foi a avaliação pedagógica e curricular efectuada (realizada - pasme-se! - pelos próprios professores que eram colocados em causa!) e os resultados da auditoria que mencionei acima. Porquê?

A situação da FBAUP era grave, do ponto de vista do Ensino, na forma como eram tratadas as contas, como a gestão era efectuada. Tratava-se, acima de tudo, de incompetência de alguns docentes em postos concretos e fundamentais - ao nível pedagógico, numa cadeira que condicionava todas as licenciaturas da Faculdade, e ao nível da gestão, pela promiscuidade entre o Conselho Administrativo e o Directivo. Não se tratava de mais que isso: pôr termo à incompetência e ao desrespeito pelas normas instituídas pela própria Reitoria, muitas das quais os próprios directores dos órgãos de gestão da Faculdade não conheciam...

Alberto Amaral era claro.
O nível de dificuldade na resolução dos problemas da nossa Faculdade era tão elevado que seria mais simples construir uma nova Faculdade de raiz que endireitar a existente. Mais tarde perceberíamos a real extensão deste raciocínio.
Novais Barbosa, consciente da mesma realidade, sabendo da impossibilidade de partir do zero, optou por abafar o processo, recorrendo à Lei da Autonomia Universitária para conseguir o seu intento.
Sem uma tomada de posição da Faculdade (Conselho Directivo) a Reitoria nada podia fazer; sem um pedido da Reitoria, o Ministério nada podia fazer... A não ser que a Faculdade interviesse! Mas a faculdade era o objecto da investigação, pelo que só através da Reitoria se poderia conseguir alguma coisa... And so on... And so on...

Novais Barbosa fez-nos regredir três anos. Tudo o que conseguíramos com Alberto Amaral se perdeu, por inconsequência. O problema voltou para o interior da Faculdade, que deveria solucionar a questão discreta e internamente - uma questão que nunca quis nem soube como resolver - em sede de onde saíra no primeiro lugar por se terem esgotado todas as formas possíveis de a resolver dentro de portas.
Sim, fomos uns "cristos", mas sem "Herodes" nem "Pilatos" pois como saber qual é qual quando todos recusam assumir a responsabilidade e lavam as mãos ao mesmo tempo? Como habitualmente, em Portugal, a culpa de um problema reconhecido por todos terminou por morrer solteira.

Mas que situação, afinal, motivou o empenhamento de tantas vontades para a silenciar, com o beneplácito, inclusivamente, do Governo e da Assembleia da República? - sim, leram bem. Os documentos que justificavam a Sindicância à FBAUP foram entregues pessoalmente por uma delegação da AEFBAUP, que encabecei, à Comissão Parlamentar para o Ensino Superior. Pastas cheias de documentação foram deixadas à consideração dos deputados da Nação encarregues de examinar em permanência o estado do Ensino Universitário em Portugal. Depois de uma longa reunião, em que defendemos a nossa razão, um painel de todos os quadrantes políticos, escandalizado, comprometeu-se a levar a questão para diante.
Foi o mesmo que ter atirado tudo para um caixote do lixo.
Mais uma vez: porquê?

Não era a investigação em si mesma o problema, mas o que ela significava. Não era por serem despedidos dois ou três docentes, por se puxarem as orelhas a outros tantos e se despedirem dois ou três funcionários mais, todos culpados de uma só coisa: de desperdício.
Era o precedente.

O precedente é que era preciso evitar a todo o custo.
Estamos a falar de um castelo de cartas. A minha Faculdade era um duque de paus, mas quem sabe a carta que suportava? E quem sabe não ruiria todo o castelo, se o duque de paus caísse... Não se pode tolerar tal coisa.
Nenhuma carta, em circunstância alguma e por menos importante que seja, pode cair.

O CRUP é o guardião desse castelo.
E não brinca em serviço.

(continua)

[1]
AEFBAUP
Associação de Estudantes da Faculdade de Belas Artes da UP

[2]
AEFA/UTL
Associação de Estudantes da Faculdade de Arquitectura
Universidade Técnica de Lisboa

[3]
Todas as compras, mas especialmente as de monta, são obrigatoriamente aprovadas em plenário do Conselho Directivo, por imposição estatutária. Em reunião da Assembleia de Representantes, durante a apresentação, pelo então presidente desse Conselho, de um relatório de actividades do ano lectivo transacto, ocorreu este diálogo, que cito de memória, para não ir ao arquivo:
Rui Semblano: Professor, quantas das compras que constam deste relatório foram aprovadas em reunião do Conselho Directivo desta Faculdade?
Presidente do Conselho Directivo: Nenhuma.
RS: Nem uma, professor?
PCD: Não.
RS: De todas as compras aqui relatadas, nenhuma foi aprovada no Conselho Directivo a que preside?
PCD: Não. Nenhuma.
Palavras para quê? Era um artista português.
Agora está reformado. Por inteiro e bem pago!



Índice deste tema, n'A Sombra:

1. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?
2. CRUP - Opus Ensemble
2.a Anexo: Autonomia Universitária para que te quero!
3. Universidade e Emprego
nota. Considerações finais

O Ensino Superior privado n'A Sombra - II

Notas para a análise da Universidade Privada em Portugal.
Parte 2 de 3
(ver índice aqui ou no final desta entrada)


II. CRUP - Opus Ensemble

No texto inicial do Cataláxia, menciona-se o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) como sendo "um poderosíssimo lobby de interesses pessoais, políticos e financeiros, que tem vindo a impor as regras de funcionamento do ensino superior em Portugal". A seu propósito, conclui que "o objectivo do CRUP foi sempre o de rebentar com as privadas, para as públicas não perderem os seus privilégios".

O CRUP é, na realidade, um centro de gestão de interesses e, ordinariamente, de gestão de crises. Fazendo, muitas vezes, jogo duplo, o seu fim, bem definido no Cataláxia, é conseguido através da ocultação, por todos os meios, da real face da Universidade em Portugal - no caso, a pública, mas com evidentes reflexos na privada.

Apesar de algumas excepções, hoje "na reserva", os membros do CRUP são a expressão máxima do feroz corporativismo docente do Ensino Superior público, contribuindo de forma ímpar para a manutenção da mediocridade do mesmo - tantas vezes de forma escandalosa, de tão evidente.
Este proteccionismo, do qual os contributos para a remodelação da famigerada Lei da Autonomia Universitária é um exemplo flagrante, tem levado a que as sucessivas reformas do Ensino Superior se tenham processado do topo para a base, pervertendo de forma irremediável todo esse processo.
Nada existe do lado discente que sirva de contrapeso à influência do CRUP junto do Estado - e não é colocando uns quantos quilos de papel higiénico no prato da balança correspondente que as anedóticas Associações Académicas vão lá.

A muito duvidosa qualidade dos sucessivos projectos para o Ensino, emanados do Ministério tutelar, e a descontinuidade e alteração radical dos mesmos, têm contribuído para que o CRUP permaneça incontestado e mumificado. Muito do que foi apontado sobre o mísero estado do Ensino Superior (público e privado) tem a chancela dos Reitores.

O Cataláxia, porém, evidencia um dos aspectos em que o CRUP tem razão na essência, embora não na forma, ao mencionar o "inferno" criado pelo Conselho de Reitores aos docentes que acumulam funções no Ensino Superior público e no privado.
Indica casos em que, "ganhando melhor e diversificando os seus interesses, muitos deles [docentes que acumulam funções em ambos os sectores] progrediram durante esse período, de forma assinalável, nas suas carreiras académicas e nas suas vidas pessoais".
Não duvido que o autor desta reflexão conheça casos assim, mas eu não tenho essa experiência.

A experiência que tenho, vivida na primeira pessoa e como representante dos meus colegas de Faculdade (que fui em todos os seus órgãos de gestão em que os discentes têm assento), é a de docentes que acumulavam funções em ambos os sectores a abandonar turmas inteiras no público para ir a correr dar as suas aulas "mais importantes" no privado; que nunca tinham disponibilidade para o tempo obrigatório de atendimento extra curricular aos seus alunos por terem de o fazer no privado; de rejeitarem projectos de Escola com incidência na sociedade por estarem a desenvolver projectos semelhantes no privado; que desprezavam a investigação por a fazerem em melhores condições no privado; que obrigavam os seus alunos do público a ginásticas incríveis para proporcionar os melhores horários aos seus homólogos privados...

O regime de exclusividade, em minha opinião, deve manter-se; mais, deve tornar-se de tal forma estanque que torne a sua quebra motivo de expulsão da docência, à imagem do que sucede com os advogados que quebram o seu código.
Ninguém consegue ser leal a dois senhores - fiel, talvez, mas nunca leal.
Quer o Ensino Superior público quer o privado necessitam da lealdade dos seus docentes. Partilhá-los é uma péssima forma de atingir tal desígnio.
Não é possível dar aulas no Porto e em Aveiro mantendo o nível de qualidade mínimo que é exigido a um docente universitário, que é, nunca o esqueçamos, a excelência.
Acumular funções, muitas vezes com sobreposição de horários, não resulta bem em nenhum caso - salvo em raríssimas excepções, mas não é em excepções que um sistema se deve basear, antes na norma.

A única coisa que progride, de facto, na vida dos docentes que acumulam funções na Universidade pública e no Ensino Superior privado, na proporção directamente inversa à progressão da sua qualidade como docente, é o seu saldo bancário.
Para um professor, universitário ou não, é uma progressão negativa.
Já o mesmo não se pode dizer dos mercenários...

(continua)


Índice deste tema, n'A Sombra:

1. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?
2. CRUP - Opus Ensemble
2.a Anexo: Autonomia Universitária para que te quero!
3. Universidade e Emprego
nota. Considerações finais

quinta-feira, outubro 02, 2003

O Ensino Superior privado n'A Sombra - I

Notas para a análise da Universidade Privada em Portugal.
Parte 1 de 3
(ver índice aqui ou no final desta entrada)


I. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?

Os motivos que levaram ao aparecimento da Universidade privada em Portugal, fenómeno posterior ao 25 de Abril de 1974, foram já pormenorizados na entrada do Rui (Cataláxia) que deu início a esta troca de opiniões.

Apesar de correcta, apenas omite um facto que me parece evidente: que o advento do Ensino Superior privado em Portugal ocorreria sempre, em democracia, independentemente de uma qualquer reacção de ordem política e/ou filosófica, pois não nos devemos esquecer que o fundamento de qualquer empreendimento privado é a criação de riqueza, riqueza esta a ser repartida, geralmente, em partes desiguais entre os proprietários e o próprio empreendimento, na forma de investimento potenciador da geração de mais riqueza.
O facto de as universidades privadas serem instituições de Ensino não deve ser confundido com dedicação ao Ensino. O seu objectivo principal é fazer dinheiro; o Ensino é, apenas, o meio de o fazer. São instituições devotadas ao lucro, não ao Ensino, sendo este, portanto, um pormenor técnico e nada mais.

Ao Estado, caberá sempre o papel de preservar e patrocinar, sobretudo com prejuízo financeiro, áreas primordiais nos domínios da Arte, das Letras, da Técnica e da Ciência, estas últimas, sobretudo, ao nível da investigação.
Nos casos iniciais, para evitar que se percam valores que não são atractivos do ponto de vista empresarial; no segundo, para evitar a perversão da Universidade por empresas que exerçam investigação nos mesmos campos e para assegurar ao Estado uma componente de formação neutra ao mais alto nível do ensino científico e técnico, dado serem os seus valores algo mais substanciais que os do sector privado, onde a ética, por exemplo, é uma peça decorativa.
Deste modo, serve também de regulador de tendências e excessos por parte do Ensino Superior privado, ao servir de comparação e, preferencialmente, de referência.

A crise que atinge vastos sectores das Universidades Privadas tornou-se evidente quando começaram a surgir os pseudo-cursos, quais cogumelos, desde a "engenharia publicitária" ao "biomarketing" (são licenciaturas fictícias, se acertei em alguma, tanto pior...), isto apesar e por via do cooperativismo que nelas impera, note-se.
O cooperativismo é, de facto um demérito do Ensino Superior privado, que deve ser removido tão depressa quanto possível, mas não é aí que reside o problema fundamental.

As dificuldades que a Universidade privada enfrenta resultam da duplicação de meios e ofertas relativamente à pública, numa perspectiva que distorce a desejada complementaridade em concorrência, com óbvias desvantagens para a primeira. Mas não se pode, ou não se deveria, falar de concorrência desleal do público face ao privado, neste sector.
A Universidade privada deveria criar oportunidades, não alternativas - sobretudo nas mesmas áreas geográficas. Isto significa que, em primeiro lugar, deveria apresentar, aos candidatos, cursos que ou não têm expressão ou não existem de todo no sector público.
Não foi isso que se verificou e a factura é, agora, demasiado alta.
Concorrer com o Estado é, de facto, inútil, quando este pode, de um momento para o outro, perverter as regras e criar vagas sem limite, médias abaixo de zero e financiamento independente do seu retorno. O jogo perverteu-se para ambos os jogadores e por culpa mútua.

O Estado, em lugar de criar um ensino de excelência nas áreas tradicionais e essenciais do Superior, apressou-se a oferecer mais e mais e mais cursos e a fazer mais e mais Faculdades - na maior parte dos casos desprezando por completo a criação de infra-estruturas que permitissem essa diversidade exagerada. Foi a resposta óbvia e pacóvia à promessa do "paraíso" socialista: uma Universidade em cada aldeia e um doutor em cada esquina.

Este foi o princípio do fim do Ensino Superior de excelência em Portugal, amplificado pelo advento desregulado, ou com regulamento desmiolado, da Universidade privada. Porquê? Por esta última fazer o mais fácil: sangrar, qual vampiro, o Ensino Superior público - sugando-lhe os cursos, mas, em especial, os docentes.

Desde 1977 para cá que se tem licenciado muita gente em Portugal. Esses licenciados foram juntar-se à legião de "doutores-automáticos" dos cursos de 1974, 75 e 76. Muitos deles são, não se tenham ilusões, os professores (alguns catedráticos "de secretária") do Ensino Superior de hoje; público como privado. Os melhores, obviamente poucos, seriam (e são ainda e sempre) aliciados por melhores ordenados e condições de trabalho que o sector privado tem para oferecer. Depois, como não chegassem, privado e público raparam os tachos.

O tempo não pára.
A qualidade de um número suficiente de licenciados permite formar quadros docentes razoáveis, mas os velhos mestres estão a chegar ao fim e os novos, dada a fraca qualidade das últimas "colheitas", não chegam para todos. Quando foi o último ano "Vintage" da Universidade em Portugal? Lembram-se?
O Ensino Superior privado não tem condições de formar os quadros docentes que necessita - além de que "dar" notas é uma coisa, aceitar as "peças" a quem as deram como professores é outra - pelo que a sangria de novos valores que emergem do sector público continua.

Esta perversão mútua não mostra sinais de abrandar, muito pelo contrário! Com as propinas do público, passa a interessar ter muitos, muitos alunos, pelo que, onde o privado emulou o público, hoje o público emula o privado.
As licenciaturas são tantas e tão diversas e tantos são os licenciados, que quase já nada valem; de onde a profusão de mestrados e doutoramentos "a martelo" (não há "Vintage", recordam-se?). Na minha Faculdade, a FBAUP [1], os primeiros mestrados foram ministrados por licenciados para depois, os que assim obtiveram o grau superior, formarem os formadores que os formaram a eles próprios. Uma palhaçada.

Conclusão:
Qual o Ensino Inferior?
Infelizmente, nem um nem outro. Ambos são pobres, paupérrimos, ensinos superiores. Ao mesmo nível de decadência.

(continua)

[1]
FBAUP - Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto


Índice deste tema, n'A Sombra:

1. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?
2. CRUP - Opus Ensemble
2.a Anexo: Autonomia Universitária para que te quero!
3. Universidade e Emprego
nota. Considerações finais

War in our time


A propósito dos esforços dos restantes componentes do "eixo do mal" no sentido de evitar sofrer o mesmo destino do Iraque, José Manuel Fernandes (JMF) veio recordar Chamberlain, na que é, desde há muito, a metáfora predilecta dos apologistas da obscena "guerra preventiva".
Pergunta JMF:
"Por que é que um país que é um dos maiores produtores mundiais de petróleo quer construir uma central nuclear para produzir electricidade?"
(in Público, 30Set2003, p.4, "A ameaça nuclear iraniana")

A este propósito recorda Neville Chamberlain; e fá-lo dizendo claramente (não insinuando) que a II Guerra Mundial devia ter começado um ano mais cedo, partindo da premissa que, assim, talvez, quem sabe, não teria havido uma II Guerra Mundial. Não sugere, afirma, que a Alemanha nazi deveria ter sido atacada antes de efectivar as suas ameaças, antes mesmo de ter anexado os voluntariosos três milhões de alemães dos Sudetas e, por arrasto, a então Checoslováquia, que, tantas vezes se esquece, foi partilhada com a Hungria e com... a Polónia. Pois é.
Nem Churchill ousaria construir semelhante silogismo, pois as suas premissas são uma fantasia. Neville Chamberlain e Edouard Daladier (assim como Vyacheslav Molotov) sabiam muito bem que iniciar as hostilidades em 1938 significaria o fim da Europa e a perda quase imediata da França e da Grã-Bretanha. O tempo que ganharam não chegou para salvar Paris, mas, sem ele, Londres estaria perdida e o futuro seria inteiramente diferente.

Hoje, a História prova estes factos e é evidente que Hitler nunca se contentaria apenas com a Áustria (o Anschluss ocorreu em Março de 1938, sem protestos) e os Sudetas (em Outubro desse ano, um golpe de Estado orquestrado pelos nazis faz, na prática, desaparecer a Eslováquia, dividida com a Hungria), mas tal não era assim tão evidente em Setembro de 1938, para além da nítida falta de preparação dos ingleses e franceses para responder, militarmente, de imediato. Muito fizeram ambos no ano que lhes restou a partir de Munique. A um de Setembro de 1939, a Polónia era, essa sim, atacada e invadida. (1)
"Não importa!" - afirma JMF - "Era liquidá-lo logo! Mandassem um bombardeiro a Berchtesgaden, no lugar de um frouxo de setenta e nove anos!" (2) E assim se resume o conceito "preventivo" destes "iluminados"; com um misto de razão histórica e malabarismo cronológico (aliado a boa dose de "esquecimento").

A História provou o que a Alemanha nazi pretendia, mas nem provou o que o Iraque de Saddam Hussein pretendia, nem o que pretendem agora o Irão e a Coreia do Norte. Não faz mal. Adolf Hitler já o provou por eles.
O "presidente" Bush já o disse: são iguais a Hitler; são piores que Hitler, pois têm a "bomba" (ou procuram tê-la). Há que acabar com eles (e subentende, muito bem, JMF, "como se devia ter acabado com Hitler em 1938!").

José Manuel Fernandes representa, sessenta e cinco anos depois, o diametralmente oposto de Neville Chamberlain.
Uma e outra vez, vem à tribuna acenar um papel com a sua assinatura aposta e dizer-nos: "Acredito que é a guerra no nosso tempo."
Não precisa de o fazer.
É evidente.

A 3 de Setembro de 1939, com a Polónia esmagada entre Hitler e Estaline, Neville Chamberlain dirigia estas palavras ao seu Parlamento:
"Tudo aquilo por que trabalhei, todas as minhas esperanças, tudo aquilo em que acreditava se desfez em ruínas." (3)

Não sabemos o que nos dirá José Manuel Fernandes no dia que se seguir à cada vez mais possível invasão do Irão, mas sabemos o que disse a 20 de Março de 2003:
"Iniciou-se esta madrugada uma era nova. De incerteza e cheia de perigos. Mas também de esperança." (4)

Descubra as diferenças.


Rui Semblano
Porto, 1 de Outubro de 2003



(1)
World War II, 50th Anniversary Commemorative Edition,
Ivor Matanle, Guild Publishing, London, UK, 1989
e
Grande Crónica da Segunda Guerra Mundial, Vol. I,
De Munique a Pearl Harbor, Selecções do Reader's Digest,
Lisboa, 1975
e
The Times Atlas of the Second World War,
John Keegan, Guild Publishing, 1989


(2)
Em 1938, Neville Chamberlain visitou Adolf Hitler por duas vezes, antes de Munique, a primeira das quais em Berchtesgaden (a residência do Fuherer no Sul da Alemanha, perto de Salzburgo, conhecida como "o ninho da águia"). Os seus esforços, secundados pelos dos embaixadores de Londres e Paris em Berlim, eram no sentido de procurar fazer entender a Hitler que a anexação dos Sudetas seria considerada um acto de guerra. Bem informado das reais capacidades militares da França e da Grã-Bretanha e com o plano da divisão da Polónia já acordado com Estaline, Hitler fez cair por terra o bluff franco-britânico. Incapazes de reagir perante o que, de início, parecia ser uma anexação idêntica à da Áustria, com os alemães dos Sudetas a receberem as tropas nazis com flores (de verdade, não como as que, em Bagdad, receberam os norte-americanos), franceses e britânicos assistiram ao golpe de teatro que terminaria com a Checoslováquia, um mês mais tarde. A intervenção da Hungria e da própria Polónia como beneficiários deste processo, veio tornar qualquer reacção ainda mais complexa. Mas, nessa altura, já a lucidez se transformara num "luxo inútil". (a)

(a)
expressão usada por Robert Abirached, in Grande Crónica da Segunda Guerra Mundial, Vol. I, p.54, Selecções do Reader's Digest, Lisboa, 1975:
"(...) Caiu-lhes enfim a venda dos olhos. A Checoslováquia deixou de existir e a lucidez converteu-se num luxo inútil."


(3)
in Prelude to War, World War II, por Robert T. Elson,
Time-Life Books, Alexandria, Virginia, USA, 1977


(4)
in Público, Edição Especial, 20Mar2003, p.5,
"A primeira guerra do Século XXI", por JMF
(após o início da invasão do Iraque, a 19 de Março de 2003)



Carta enviada ao jornal Público - 02/10/2003

terça-feira, setembro 30, 2003

Stupud?


É o que dá passar a noite a trabalhar e escrever uma entrada ainda a tentar abrir os olhos... Sempre podia dizer que era pronúncia de "jerktown, USA", mas tal coisa nunca colaria. Não à Sombra. :)

nota:
O que vale é que o Fabien anda a apanhar "peanuts", caso contrário...

nota2:
Esta entrada é só para os que leram uma das anteriores. E não pensem que vou indicar qual, que não sou "stupud"!

nota3:
Hoje estamos a funcionar em versão "light".
Para que não cuidem sermos demasiado sérios.
E porque foi, realmente, um dia muito, muito comprido...
:)

Será possível?


Só para ter a certeza, tomei um Prozac.
Wou! Isto devia ser proibido!

Já vejo Tetrabombers em todo o lado!

It's fear, stupid!

... ou "O que é Abruptamente obrigatório saber"
(*)

Lido em Abrupto:

--- quote ---

O QUE É ABSOLUTAMENTE OBRIGATÓRIO SABER

sobre armas de destruição massiva, vem num livro, acabado de publicar, de Frank Barnaby, How to Build a Nuclear Bomb and Other Weapons of Mass Destruction , Londres, Granta Books, 2003. Barnaby é um físico nuclear, que trabalhou na indústria de armamento e que foi director de um prestigiado think tank sobre a paz, sediado em Estocolmo. Devia ser leitura obrigatória para todas as pessoas, para lá de ideologias e políticas, que devem saber o futuro que se prepara, O FUTURO QUE É POSSÍVEL TEMER. A questão, verdadeiramente, não é apenas política, porque o acesso a determinadas tecnologias está já ao alcance de um terrorista individual, obcecado com qualquer causa exótica, do tipo do Unabomber.

--- end quote ---


(nota: destaque a maiúsculas e bold d'A Sombra)


Está visto...
Ó José Pacheco Pereira (JPP), então estamos assim por causa de um livrinho escrito em inglês por um obscuro "Barnabé" (Oops, "Bi", quer dizer "Barnaby" - lê-se "bi" não "bai")? "Absolutamente obrigatório saber"? Isso quer dizer que a par com as obras literárias de excepção que os miúdos têm nos liceus, se vai encontrar a do "Barna-bai"? Perdão, a do "barna-bi"?
Tenha calma, homem. Não se assuste com isso.

Se quiser, faça uma experiência: introduza o título desse livrinho edificador junto com "plutonium", "detonators" e "home made" em vários motores de busca. Não está bem a ver o que vai acontecer (não, não lhe vai explodir o portátil, descanse).

E já que falamos em paranóias, havia de ver o que aconteceu a um pobre amigo do meu pai, obcecado com o "perigo soviético". Uma vez leu o "The Nuclear Survival Handbook", de Barry Popkess, e foi o bom e o bonito.
Aliás, ainda é. O desgraçado não dorme em condições desde 1980. Desde que caiu o "muro" e na ex-URSS (leia-se "ursse") se vendem ogivas como se fossem laranjas ainda é pior.

Isso é que é medo, ó José Pacheco Pereira.
Qual Unabomber! Nem o Trinabomber! Mas gostei do "obcecado com qualquer causa exótica", assim como a sua, não é verdade?
(By the way, how was Langley that Summer? It's been a while...) (1)

Mas pronto.
A esmagadora legião de visitas ao Abrupto "convenceu-me".
A sombra vai contribuir para a histeria colectiva que tanto JPP gostaria fosse real e não um "wet dream" como outro qualquer.
Prontos? Um... Dois... Três.

- Bú.


(*) É o medo, estúpido!

(1)
Estavam à espera de quê?
Existirá melhor colónia de férias para ex-maoistas?

Curto...

... e grosso:

Fabien, vai apanhar amendoins.


(Boa noite a todos, até [bem] mais logo.)

O Ensino Superior privado n'A Sombra

Respondendo a um amável convite do Rui (Cataláxia), A Sombra procurará dar o seu contributo para mais um cruzamento blogosférico de ideias.

Lida a entrada que abriu as "hostilidades", no Cataláxia, irei concentrar-me em alguns aspectos nela focados, que tratarei em entradas distintas, servindo esta de índice, como já vem sendo prática corrente, n'A Sombra, para entradas múltiplas sobre um mesmo tema.

Assim, teremos:

1. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?
2. CRUP - Opus Ensemble
2.a Anexo: Autonomia Universitária para que te quero!
3. Universidade e Emprego
nota. Considerações finais

Apesar de generalista, a minha análise não poderá ignorar o meu conhecimento de causa, fruto da frequência da Faculdade de Belas Artes da UP e dos contactos que mantive com as estruturas do Ministério da Tutela, desde os órgãos da própria Faculdade, passando pela Reitoria, até ao próprio Ministro.

Como sempre, espero não defraudar as expectativas
dos que gostam de ler à Sombra. :)

nota:
O título desta entrada foi alterado, passando a incluir "privado", pois é disso que se tratará, embora as referências ao público sejam inevitáveis.
Tratarei, no entanto, de fazer incidir as minhas ideias tanto quanto possível, sobre o Ensino Superior privado, como propõe o Rui.

segunda-feira, setembro 29, 2003

Vista geral...


... sobre as opiniões dos diversos blogs que participaram na exposição de ideias sobre o nosso Sistema Eleitoral e Parlamentar, a que A Sombra se juntou, a convite da Janela para o rio.

É o que se pode adivinhar aqui e, em breve, em sede própria, também da responsabilidade do Blog sem nome.

Os agradecimentos d'A Sombra pelo excelente trabalho de Francisco Mexia Alves e Tiago Machado Matos na compilação de todas as entradas que encontraram sobre o assunto.
Assim esteja elaborado o blog com as referidas entradas, disso faremos eco nesta Sombra.

Rosso


Dunque...

...Será em Suzuka.
A duas semanas e um ponto!

Fangio, addio.



(qui) La Scuderia
(qui) Il Uomo
(qui) La Machina

Rosso è il cuore.

domingo, setembro 28, 2003

Noblesse oblige


TNT ascende a Marquês após revelar a sua identidade. E muito bem. Reacesa a chama, agora com acrescido fogo, novos mundos se abrem na Hora Absurda.

O nosso absurdo milhão de "shares" no blog de TNT obriga a que o coloquemos na lista permanente de Blog Links d'A Sombra, assim como, de qualquer das formas, a isso nos levaria o próprio sangue azul.

Em hora, absurdamente, boa!
Ao Henrique, o nosso abraço.
Ao Marquês de TNT, os nossos respeitos.

Pela Sombra,
RS

O medo

Em um pequeno filme animado integrado em Bowling for Columbine, de Michael Moore, é mostrada a história dos EUA em cinco minutos. Nesse pequeno trecho de animação está representado não só o fundamento da sociedade norte-americana, mas de todo o chamado "mundo ocidental".
Se os EUA são o zénite da sociedade obcecada por mais segurança, a Europa, em particular a ocidental, começa a aproximar-se deles, neste campo.

Não temos o equivalente ao USA/PATRIOT act, mas existe legislação que implementa muitas medidas que lesam os direitos e liberdades individuais dos europeus, criada após o 11 de Setembro de 2001, que tem a ver com a procura de "mais segurança", quer a nível da UE como a nível nacional.

Mais sofisticados que os norte-americanos, os europeus adeptos desta filosofia agorafóbica procuram ir além da inoculação do medo de agentes externos, como os imigrantes, os terroristas, os "selvagens" e os "infiéis". A sublimação desta filosofia, na Europa ocidental, consiste em incutir no subconsciente social um medo mais sombrio e feio: o medo dos seus próprios cidadãos.

Temos de sentir medo das "frotas de autocarros" que os "mártires" de Allah se preparam para fazer explodir por toda a Europa connosco lá dentro, mas temos, sobretudo, de sentir medo dos nossos vizinhos que descem à rua para se manifestar contra o poder. E mais medo ainda temos de sentir se o fizerem sem insígnias, como simples cidadãos sem ligações a estruturas controladas pelo poder, ele mesmo.

O objectivo é inteligente.
Como pode uma manifestação repleta de bandeiras de uma qualquer organização sindical, por exemplo, ameaçar o poder, quando este a controla? Qualquer que seja a importância de tal manifestação e a justiça das suas reivindicações, tudo será decidido em torno de uma mesa afastada da cena pública, quase sempre frustrando as expectativas dos manifestantes. São, dirão os responsáveis pela manifestação, os resultados possíveis.
Mas como controlar cidadãos que se mobilizam à margem das estruturas do poder?
O que querem não é o problema. O problema é com quem pode o poder negociar um "resultado possível"? Tais manifestações são consideradas abomináveis pelos arautos da "civilidade", isto é, da manutenção do seu poder.
A escolha destes exemplos, entre muitos possíveis, faz lembrar as palavras "avisadas" de um notório "opinion maker"; e não por acaso. Como outros "pseudo-intelectuais", esse senhor tudo tem feito para contrariar o movimento natural da história, na tentativa de evitar, em última análise, que esta o cilindre.

A expressão máxima do desespero que já atinge os esforços destes "pseudo-intelectuais" foi a sua reacção às manifestações mundiais contra a recente invasão do Iraque. Tentando, inutilmente, não cair no ridículo, vários deles procuraram fazer crer que esses milhões de manifestantes (a maior parte dos quais sem identificação partidária) eram antiamericanos radicais que se tinham rebolado de prazer com a queda do World Trade Center. À falta da URSS, tentaram colar boa parte desses manifestantes a organizações que a apoiaram no passado e, em busca de uma memória mais fresca, chegaram mesmo a aproveitar a simpatia de muitos deles pelas causas dos povos cubano e palestiniano para acenar os espectros do castrismo e do terrorismo, pretensamente escondidos atrás de cada bandeira branca.

Apesar de ridículos, os seus esforços têm resultado parcialmente, fruto de uma enraizada mentalidade pequeno burguesa em todas as sociedades do "primeiro mundo" e do egoísmo facilmente exorbitável em cada um de nós.
Começamos a ter medo, muito medo, de nós próprios. Veja-se a proliferação de condomínios fechados de alta segurança por toda a Europa. (1)

A "soma de todos esses medos", intrínsecos e extrínsecos, tem como finalidade chegar, rapidamente, aos níveis de ansiedade social atingidos nos EUA.
Sobre a actual situação nos Estados Unidos, pode dizer-se que ela "é um tributo aos empreiteiros militares e aos leaders políticos que tomaram as rédeas do poder instilando o medo na populaça. Isto pode ser detectado, em grande medida, em patrocinadores de campanhas políticas e em lobbies influentes, mas o problema encontra-se ainda mais fundo. O medo penetrou profundamente nas raízes da cultura." (2)

O mesmo processo está a decorrer na Europa, orientado por sectores com idênticos interesses. Tal está a ser realizado através de discretas, mas eficazes, máquinas de propaganda, algumas instaladas aqui mesmo, na blogosfera, que incansavelmente procuram incutir-nos esse cancro. Esse nojo. Esse medo.

Não há razão para ter medo.
Não somos poucos ou pequenos. Se alguns vos parecem enormes e poderosos é porque estais de joelhos. Levantai-vos.
Ou outros por vós se levantarão.


Rui Semblano
Vila Nova de Gaia, 28 de Setembro de 2003


(1)
ver "Des «villes privées» pour les riches Français"
por Hacène Belmessous
Manière de Voir, número 71, Outubro/Novembro 2003
(edição Le Monde Diplomatique)


(2)
in "Other options", de 27Set2003
por Russel Mokhiber e Robert Weissman
(Znet Commentary)



nota:
Aos interessados, A Sombra enviará por e-mail o extracto de animação relativo à história dos EUA, tal como foi visto em Bowling for Columbine. Basta contactar-nos para o efeito.

nota2:
Não deixemos nada ao acaso.
O "pseudo-intelectual" destacado é o autor do Abrupto, como deve ser evidente, mas não surgia identificado.
Democracy is a bitch. Isn't she.

O Futuro Tenso - parte 1


José Pacheco Pereira assina um ensaio intitulado "Futuro Não Futuro Futuros" na Grande Reportagem n. 150, de Setembro de 2003 (GR 150). Esta entrada é relativa a esse texto. No final, ligações às restantes entradas em Futuro Tenso.


A Murphy's sort of Law
ou
A um futuro inesperado.

A democracia é o que fazemos dela. Já critiquei, n'A Sombra, o que hoje conhecemos por esse nome (ver "A Democracia, esse mito") e é certo que o nosso sistema político, como todos, não é perfeito. Também já aqui expus algumas considerações simples de como se poderia melhorar o sistema democrático, através de uma responsabilização clara dos políticos eleitos e de uma participação activa dos cidadãos, que em muito excede uma ida às urnas de quatro em quatro anos (ver "Votos").
Mas se esse sistema fosse "apenas" imperfeito nada mais haveria a dizer além da lógica busca da perfeição, do aperfeiçoamento contínuo e progressivo: a procura do sistema perfeito que nos faz correr - pelo menos a alguns de nós.

José Pacheco Pereira (JPP), no seu ensaio da GR 150, surpreende sem surpresa. Ele é assim mesmo. Por isso, apesar de discordar de quase tudo o que diz e escreve, continuo a seguir o seu trajecto e mesmo quando recordo os seus tempos da "tigelinha de arroz diária" o faço em tom irónico, como podiam comigo ironizar sobre os longínquos tempos em que me situava, então sim, claramente "à direita".

O meu passado, porém, existe e não o renego nunca ou tento conferir ao meu presente uma áurea de intemporalidade atípica. De JPP não sei o que pensar. Por vezes, como neste ensaio, parece que o seu passado existe - mesmo que levemente. Outras vezes, o que é notório até no desenvolvimento do mesmo ensaio, é como se não tivesse passado (coisa que outros já referiram, de onde não ser uma percepção isolada).

O paralelo traçado entre democracia e demagogia é apontado como um dos perigos que a primeira enfrenta, mas, apesar da referência da praxe à Grécia Clássica e ao seu modelo civilizacional e político, JPP evita falar da sua base.
A sociedade democrática grega era constituída por células precisas. Cada vez que um desses módulos excedia um limite preestabelecido, uma nova célula era criada. O número limitado de cidadãos em cada parcela era fundamental para o bom funcionamento da democracia de então, o que basta para entendermos como o nosso sistema já pouco tem a ver com a sua matriz, mas a pedra de toque da democracia grega na Era Clássica, que JPP não mencionou, era a escravatura.

Sem escravos, nunca poderia ter existido democracia na Grécia.
Neste particular, poeticamente, podemos considerar o actual sistema democrático mais próximo do seu original. De facto, como mencionou JPP em outro suporte, existe um grande número de trabalhos que nós, cidadãos "de Atenas", já não queremos executar, mas que são essenciais ao nosso modo de vida, dito "civilizado".
Os nossos actuais "Senados" e "senadores" são escolhidos pelos seus/nossos pares, mas eles e nós assentamos no trabalho escravo que nos fornece tal luxo - e nem é preciso recorrer a imagens globais para o demonstrar.
Com a mesma altivez e desprezo dos cidadãos da Atenas de outrora, também nós "não vemos" esses escravos, ao passar por eles todos os dias, ainda por cima com a vantagem da tecnologia, que nos permite deslocar em automóveis com ar condicionado, sendo assim mais fácil ignorá-los. Não se sente o cheiro.

Quanto às "democracias armadas", JPP há muito que ultrapassou o limite do razoável (como ficou recentemente demonstrado num debate com Mário Soares), encontrando-se no extremo oposto dos "Barnabés" deste mundo (ver "Os Vizinhos").
Sempre considerei as Armas como um dos pilares fundamentais de qualquer Estado, democrático ou não, garante da sua independência, da sua soberania política e económica. Os Estados ditos "neutrais", sem capacidade ou dimensão que lhes permitam assegurar a autodefesa, estão "encostados" a outros mais fortes, que os toleram (sem aspas). Mas serão eles Estados?
A sua independência é mantida à custa de terceiros. No dia em que Espanha quiser, Andorra acaba. No dia em que a França quiser, o Luxemburgo acaba. Quando os terceiros que garantem a defesa desses Estados entenderem, eles deixarão de existir, de um dia para o outro. Os mais fortes, como a Suécia ou a Suiça, têm sistemas defensivos avançados e não prescindem das suas indústrias de armamento.

Mas enquanto eu entendo os militares como garante da defesa dos Estados democráticos, no caso, JPP já há muito os vê como suporte dessa obscenidade a que se chama "defesa preventiva". Uma das conclusões a que JPP chega indica o quanto está próximo desta nova realidade:
"A guerra dos dias de hoje tem como pano de fundo uma resistência global ao alargamento da democracia para fora do mundo ocidental".

Que eu tenha notado, JPP nunca coloca aspas em "ocidental". Depreendo, assim, que considera a Líbia e Angola como fazendo parte do seu "mundo democrático". O equívoco de JPP torna-se deprimente quando demonstra acreditar (mas acreditará?) que o "alargamento da democracia" é uma exportação "ocidental", num perfeito espírito de Cruzada.
Nós, os "brancos", teremos de ensinar os "selvagens" a ser democratas, ao bom estilo de Edgar P. Jacobs. De facto, JPP sempre me lembrou um Mortimer, embora incapaz das suas façanhas físicas, mais balofo.

A democracia não se exporta nem se ensina (ver "À baioneta").
A democracia é o que cada um dela fizer, uma vez a tenha. E tê-la implica conquistá-la; penosamente, lentamente, alicerçada quer em valores de justiça universal como em valores de identidade nacional. A democracia é a rua, em última análise. Sem o apoio da rua, todo o palácio desmorona, mais cedo ou mais tarde. No caso que motiva esta análise da democracia "exportável", o Iraque, mas na Palestina também, ainda se torna mais difícil implementar tal coisa de um dia para o outro, pois não existe rua mais complexa que a Rua Árabe.

Se nós chegamos até aqui e o mundo árabe não, em muito tal se deve ao "ocidente" de JPP. Veja-se a sua atitude - a das potências "ocidentais" do final do século XIX e início do XX - de régua e esquadro em punho, a desenhar "Estados" e a atribuir reinos no Próximo Oriente, ou a garantir a tolerância dos seus valores à canhoneira no Extremo.
E agora, de régua e esquadro atrás das costas, mas não dispensando os canhões, somos nós quem vai "ensinar" a esses "infiéis" o que é a democracia? Quanto tempo durará a democracia no Iraque, se realmente os deixarmos em paz depois de eleições? Um ano? Uma semana?
Será que são assim tão ignorantes?
Será que a querem?...

E que tem o "ocidente" a ganhar com uma verdadeira democratização do mundo árabe? Mas será que quer mesmo democratizar esse mundo? Já imaginaram o que seria uma Arábia Saudita sem os Saud? Com eleições livres em que o partido maioritário baseia o seu programa em três palavras: "Fuck you USA"? Não dá vontade de os "democratizar" já amanhã?

Como confirmaram oficialmente os responsáveis pela política da actual administração norte-americana, para quem quis ouvir, antes da "libertação" do Iraque:
"Queremos um Iraque democrático, mas nunca toleraremos um Governo iraquiano eleito democraticamente com um programa pró-iraniano."
A isto não se chama "democratizar".
Chama-se colonizar.

Chegado a este ponto, interrogo-me se não estarei a tecer considerações sobre um texto de Filomena Mónica - mas não. É mesmo José Pacheco Pereira quem escreve.
Logo, porém, o próprio se dá a conhecer, recorrendo ao exemplo em que faz explodir autocarros no centro de capitais europeias. No Abrupto era só em Paris e Berlim; depois, no Público, já acrescentava mais outras, entre as quais Lisboa. Aqui, no seu ensaio na GR 150, escolhe as capitais dos aliados "ocidentais" ("a Síndroma do Espadão") (1): Londres, NY, Madrid... Deixou Lisboa de lado, desta vez.
Numa óptica fantástica, que lhe deve estar no sangue (2), só lhe falta escrever "Tenham medo! Tenham muito medo!", pois já tem pesadelos com "frotas de autocarros" a explodir por todo o lado.

Os perigos apontados por JPP, no entanto, são reais, mas sem exorbitâncias. Os países europeus que embarcaram com os EUA na sua aventura árabe correm sérios riscos de sofrer atentados no seu solo - e Portugal é um deles (obrigadinho, Zé Manel...) - mas não pelas razões apontadas no ensaio de JPP. Antes pelo seu oposto.

E termina JPP:
"A lei de Murphy diz que tudo o que pode correr mal vai certamente correr mal. Pode ser que não, que algumas coisas deste futuro já presente não vão ser assim. Mas o homem avisado pensa usando a Lei de Murphy."
Curiosa escolha para epílogo.
"Pensa", não "escreve". A troca de verbos seria interessante, mas impediria a existência do ensaio que antecede a conclusão de José Pacheco Pereira - partindo do princípio que ele próprio é um "homem avisado". Apenas se esqueceu do inesperado, que é uma das condições primárias da imponderabilidade e variável fundamental da Lei de Murphy.
Tudo o que pode correr mal vai, certamente, correr mal e quando menos se espera. Não é este o caso.
Esta, já eu esperava.

Rui Semblano
Porto, 25 de Setembro de 2003

(1)
Relativo a "O Segredo do Espadão", de Blake & Mortimer
por Edgar P. Jacobs (1947).


(2).
José Pacheco Pereira é irmão de Beatriz Pacheco Pereira, uma das responsáveis pelo Festival de Cinema Fantástico do Porto - Fantasporto.
De onde o "fantástico" no sangue.




Em Futuro Tenso:
parte 1 - A Murphy's sort of Law - José Pacheco Pereira
parte 2 - Os "rurbanos" - Gonçalo Ribeiro Telles
parte 3 - Manifesto antipunk - Pedro Mexia

Análise dos ensaios destes autores na
Grande Reportagem n. 150 - a última mensal

Isenção e recusa


Lido em A Aba de Heisenberg:

--- quote ---

membro das forças armadas israelitas que recusa a participação em operações ou bombardeamentos dos territórios ocupados alegando razões morais (em virtude da elevada probabilidade de existirem ví­timas inocentes, ou "danos colaterais") geralmente acabam em longas penas de prisão - apenas os judeus ultra-ortodoxos se podem recusar a cumprir o serviço militar por razões religiosas.

--- end quote ---


Já andava para abordar este tema e A Aba de Heisenberg deu-me um bom pretexto para o fazer. A sua chamada de atenção peca por um erro:
Em Israel, os judeus ultra-ortodoxos não precisam de se recusar a fazer seja o que for nas forças armadas porque estão isentos por lei de servir nas mesmas.

Posto isto, e uma vez que o tema merece atenção especial, resta prometer para breve uma análise deste facto sem precedentes (desta dimensão) nas Forças de "Defesa" Israelitas.
Mas antes... O Futuro Tenso de José Pacheco Pereira.
Dentro de momentos.

Aqui não há rato...


Foi através do Nuno P. que conhecemos o Rui.
Hoje, após uma visita mais detalhada ao Cataláxia, decidimos incluir este blog na nossa lista de Blog Links permanentes, inteiramente pour le mérite.

Até porque quem escreve assim não é rato.

Um abraço ao meu homónimo "cataláxico".

Pel'A Sombra,
RS

nota:
Numa primeira reacção, o epíteto escolhido para o Cataláxia foi "Tom not Jerry", mas pareceu-nos redutor, e depois o Tom, coitado, não é um bom exemplo da excelência felina.
Parece-nos mais apropriado um epíteto abrangente, metafórico.
Daí a escolha de "A Genuína Incerteza"
(à qual a Escola Austríaca não é, de todo, alheia).