Notas para a análise da Universidade Privada em Portugal.
Parte 3 de 3
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III. Universidade e emprego
No Público de 02Out2003, pode ler-se uma citação de Emídio Rangel, extraída de declarações prestadas à TSF, em que este afirma que "quem não quer pagar propinas, vá trabalhar!" e também que "os estudantes ou estudam ou têm que ser postos na rua. E os reitores que não têm coragem para tomar decisões devem ser demitidos."
Como é possível alguém, seja quem for, dizer barbaridades destas em plena rádio? É simples. Deve-o aos estudantes, que, ano após ano, balem "não pagaamos, não pagaamos". Pode dize-lo e toda a gente lhe dá razão. Têm que lhe dar razão. Eu dou-lha.
Dando de barato que esses estudantes, na sua esmagadora maioria, não pagam nem nunca pagaram propinas (alguém as paga por eles), uma das razões pelas quais não deviam pagar é a péssima relação licenciatura/emprego que o Estado criou, à custa de tanta e tão grossa asneira cometida em matéria de Ensino. Por um lado, permite-se a entrada na Universidade a qualquer um, por outro, as vagas para o Ensino Superior não têm relação nenhuma com a realidade do mercado. Esta última consideração é polémica em cursos que nada têm a ver com este tipo de relação, mas, para esses, resultam outros factores, como a incapacidade de filtrar decentemente os candidatos, que vão encher as Faculdades até ao limite, sendo este relacionado com factores que nada têm a ver com qualidade, antes com quantidade.
Mas caberá ao Estado, no caso da relação licenciatura/emprego, esse papel? Não será o mercado, ele mesmo, que se deve encarregar de estabelecer limites? A resposta é sim, para ambos os casos.
Se o mercado deve marcar a procura, ao Estado, como responsável pela Universidade pública, cabe regular a oferta. No caso do Ensino Superior privado é lógico que tal não suceda, mas o público deve ir mais além que o privado, que pretende, antes de mais, responder proactivamente ao mercado. Ao Estado cabe a prevenção e o bom senso.
Caso o problema da educação não fosse global, mas apenas do Superior, esta desregulação desenfreada estaria já a ser corrigida pelos próprios candidatos, pois estes, se detentores de outros atributos intelectuais, deixariam de concorrer a cursos que sabem, à partida, terem esperança de emprego muito reduzida. Apenas os que, realmente, têm vocação e vontade de seguir tais licenciaturas e, consequentemente, tais profissões, concorreriam a esses cursos. Do modo que a situação está, milhares de estudantes entram nas diversas Faculdades porque é para elas que têm média e não por o desejarem.
Quantos de nós não conhecem, pelo menos, um caso de um estudante que pretendia Medicina, mas, como não tem média para tal, opta por Informática ou Biologia ou outra coisa qualquer... Os cursos de entrada com médias negativas estão cheios de gente assim. Os que têm na família ou nos amigos "aquela cunha" que lhes permite um bom emprego desde que tenham um DR antes do nome, qualquer que ele seja, estão garantidos, mas não há tantas cunhas assim em Portugal. Os restantes vão para o desemprego.
A confusão é instalada ao relacionar conceitos sem nexo absolutamente nenhum, como o da Universidade gratuita, dando a entender que tal é o mesmo que falar da Universidade ao alcance de todos. Não é.
Ainda recentemente, no Público de 01Out2003 ("Novamente as propinas"), Fernando Rosas vem levantar de novo o "esplendor" do Ensino Superior público "universal e tendencialmente gratuito", como se de gémeos siameses se tratasse, desígnio "nacional" da grande marcha socialista que nos levará à vitória da Cultura sobre o Capital. Caro Fernando Rosas, nós já demos para esse peditório.
No dia em que os meus impostos pagarem, na íntegra, o curso de um médico, não espero menos que ser atendido por ele gratuitamente, sempre que necessite, seja num hospital do Estado, seja no seu consultório privado - mas que digo! Nesse caso, não existiriam consultórios privados!
Um curso superior é um meio de promoção pessoal, mas é, sobretudo, um meio de promoção social e capitalista, que irá proporcionar ao licenciado uma forma de ganhar a vida bem melhor que um não licenciado - e nem me falem em Belas Artes, pois tive colegas que estavam longe de terminar o curso e já pediam, na altura, 400 contos por uma tela de dimensões médias.
Porque haveria tal coisa de ser gratuita?
Que se crie um sistema justo (de verdade) de bolsas e empréstimos é uma coisa, mas o Ensino Superior nunca poderá ser gratuito. Nunca poderá existir uma Universidade em cada aldeia e um doutor em cada esquina.
Todos devemos garantir, através dos impostos, uma escolaridade obrigatória universal, gratuita e de qualidade (o que não sucede ainda!), como garante do nível cultural das gerações vindouras, afinal, os nossos filhos, mas o Ensino Superior não é obrigatório.
Só entra quem quer (e pode, devendo ser o "pode" uma questão de conhecimento e não de dinheiro) e só paga quem quer e pode (aqui, sim, uma questão de dinheiro). Quem não tem condições económicas e merece entrar, esses sim, devem ser ajudados - mesmo que isso signifique não pagarem um cêntimo durante todo o curso. Mas, mesmo esses, não deverão estar isentos de o pagar.
Aqui reside a grande diferença entre o Ensino Superior privado e o público.
Os que recebem ajudas do Estado, que se licenciam com o dinheiro público, deverão pagar de volta essa verba, uma vez a trabalhar no ramo das suas licenciaturas. Isto instituído, seria bom de ver o Estado preocupado com a regulação da relação licenciatura/emprego - pois se permitisse a licenciatura de milhares de desempregados não veria um cêntimo do seu dinheiro.
No privado, isto seria válido para os cursos que o público não oferece, obedecendo às mesmas regras, naturalmente, para evitar que uns bons milhões de euros entrassem nos cofres das Universidades privadas à custa de cursos como "Filosofia Ambiental" ou "Marketing Aquático". Fora isso, nenhuma intervenção do Estado deveria ser feita no Ensino Superior privado; isto é, querem ter esse tipo de licenciaturas? Força! Nem sequer seriam controlados currículos ou a qualidade da docência, para além das óbvias condicionantes legais.
Mas já vimos que nada disto sucede.
Criou-se o mito da Universidade como direito de berço de cada português, esquecendo que cada português tem de merecer esse direito. E criou-se o mito da Universidade socialista inserida numa sociedade capitalista como um princípio pelo qual vale a pena lutar.
Quer-me parecer que se o Che fosse vivo e ouvisse os Fernandos Rosas deste País a falar morreria de novo, e desta vez sem "ajuda". Uma sociedade capitalista comporta na perfeição um sistema de base gratuito, seja no Ensino ou na Saúde ou em outros campos fundamentais do Estado, mas não pode tolerar que um cidadão tenha que ser pago pelo que não é obrigado a fazer. Um Estado-providência não é um Estado gratuito nem parvo. Garantir aos cidadãos condições dignas e igualdade de oportunidades em áreas como o Ensino não significa pagar luxos - e a Universidade é um luxo, numa sociedade capitalista, pois proporciona aos que a frequentam viver acima do nível dos que não a frequentam - em todos os casos.
Há muitos médicos desempregados? Não. Há muitos médicos sem emprego por opção própria. O que há é muitos hospitais a necessitar de médicos e - imagine-se - até escolas sem professores.
Ou querem convencer-me que as "meninas" e os "meninos" não sabiam que já existem médicos e professores que chegam e sobram em Lisboa e no Porto quando escolheram essas profissões? Mas até isso se perdeu.
Hoje, quantos estudantes universitários sabem o que querem ser "quando forem grandes"? Muito poucos. "Primeiro o canudo, depois se verá", dirá a maioria deles. E os professores ajudam. Não era raro que um professor de Pintura, por exemplo, ficasse escandalizado ao saber que um aluno seu pretendia pintar, acabado o curso. Pergunta imediata, de boca aberta: "Pintar? Mas... Não quer dar aulas?"
A situação atingiu o ridículo ao banalizar o Ensino Secundário a tal ponto que do tal "direito de berço" à entrada na Universidade à comparação das Universidades privadas a estabelecimentos particulares do Ensino Secundário foi um pequeno passo. Nada mais falso.
As Universidades privadas estão ao mesmo nível das públicas, sendo as diferenças fundamentais questões técnicas, como as bolsas aplicáveis ao privado ou a garantia da manutenção de licenciaturas ditas "não lucrativas" - pelo sector público; para o privado, tirar as aspas, se faz favor. Estes pontos já aqui foram focados, pelo que não me vou repetir.
Existem licenciados em demasia e técnicos em falta - quase ninguém (excepto alguns, mais atentos, que ganham mais dinheiro que muitos "doutores") quer ser um técnico, e as possibilidades de o ser são, ao nível do Ensino, cada vez mais reduzidas. Já se formam técnicos de turismo em Universidades, c'os diabos, com direito a praxe, traje, canudo e tudo! E chamam-lhes "doutores", no fim da prova. A oferta universitária é esmagadora - veja-se os esforços titânicos de alguns politécnicos para obter equivalências! Ridículo.
No dia em que entendermos que entrar numa Universidade é, apenas, uma opção entre muitas começará a verdadeira reforma do Ensino em Portugal. Até lá, continuaremos a assistir às cínicas tentativas dos Governos, do CRUP, dos docentes universitários e dos estudantes em geral (que a febre começa no Secundário!) para tornar mais e mais acessível a entrada na Universidade aos filhos de todos os portugueses. Porque todos temos o direito e o dever de ser doutores.
É neste processo que reside a história do triste Ensino Superior que temos hoje - público e privado.
A constatação deste facto, porém, não significa que a Universidade esteja condenada em Portugal. Claro que a média cultural dos discentes universitários é cada vez mais baixa; claro que bem para cima de metade dos docentes universitários o são por necessidade (a sobrevivência obriga) ou por dinheiro (que ainda é um aliciante, no sector público, onde a reforma é factor de peso). Mas esta junção incrível de ignorantes, necessitados e mercenários não pode ser o futuro da nossa Universidade.
É preciso depositar alguma esperança nos que entendem que o problema está longe de resolvido - alunos, professores, pais e governantes - e estão na disposição de tentar que o Ensino Superior público e privado retomem a dignidade e o crédito que perderam.
Uma e outra vez mais é preciso ser realista.
E exigir o impossível.
Rui Semblano
Setembro e Outubro de 2003
"Seamos realistas, exijamos lo impossible"
Ernesto Che Guevara (1928-1967)
Índice deste tema, n'A Sombra:
1. Qual o Ensino Inferior? O público ou o privado?
2. CRUP - Opus Ensemble
2.a Anexo: Autonomia Universitária para que te quero!
3. Universidade e Emprego
nota. Considerações finais