Fantasporto 1998Inspirado emAlien RessurrectionCarlos Alberto23 de Fevereiro de 1998primeiro fantascontoOs restos de vários sonhos ganham uma dimensão estranha, mal se acende a luz da mesa de cabeceira. Suava copiosamente, ainda. Afastou a roupa da cama e sentou-se, apoiando a cabeça entre as mãos.
Havia uma antiga namorada que regressava, apesar da mãe. Havia um rosto novo e uma voz reconfortante. Restava uma sensação insuportável, não havendo uma memória precisa dos detalhes, como quando se regressa de umas férias bem passadas e se retoma a realidade do quotidiano.
Maquinalmente, estendeu o braço, agarrando o maço de
Luckies. Vazio.
-
Fuck...
No relógio, eram quatro e dez da manhã. Vestiu-se. Ao apertar os cordões das botas olhou para a
Smith & Wesson automática, sobre a cómoda. Levantou-se e pegou nela, verificando se estava carregada e abrindo ligeiramente a câmara. Perfeito. Ao enfiá-la nas calças, junto às costas, o polegar sentiu a posição da segurança. Ajeitou a camisola de lã, agarrou o casaco e apagou a luz, saindo do quarto. Momentos depois estava na rua.
Não havia luar, mas o céu estava limpo. Frio. Voltou os olhos para o fim da rua, levantando o colarinho do casaco de couro negro. Ninguém. Havia uma estação de serviço perto que tinha uma máquina de tabaco. Não ter um cigarro para fumar enquanto se dirigia até lá era enervante. Fez a distância que o separava da bomba de gasolina em passo acelerado. Não era bem a estação que recordava, estava algo mais limpa, mas estava lá. A máquina de tabaco também.
Ignorando o gasolineiro, enfiado no seu aquário a ver as televendas, dirigiu-se a ela, enfiando os dedos no bolso das moedas das
501. Faltava dinheiro. Puxou da carteira e foi até ao
guichet do aquário. Havia um aviso. "Vidro à prova de bala".
- Boa noite. - saudou.
- Boa noite...
- Pode trocar-me dinheiro para a máquina de tabaco, por favor?
- Não tenho.
- Como não tem?
- Lamento.
- Escute, a próxima bomba de gasolina aberta a esta hora fica a cinco quilómetros daqui. Veja lá se não tem moedas.
- Já lhe disse. - ignorou-o o homem, sem tirar os olhos do pequeno televisor.
Guardou a carteira. Talvez se alguém viesse meter gasolina pudesse trocar o dinheiro que precisava. Voltou a olhar o homenzinho do outro lado do vidro.
- Por acaso não tem um cigarro?
- Não fumo. - replicou o gasolineiro, indiferente.
- Não fuma... - murmurou, olhando a avenida deserta. Então, um ruído familiar aproximou-se. Era um
A4 que descia a avenida. Fez pisca na direcção do posto de gasolina e entrou, parando junto das bombas. O homenzinho saiu do aquário, talvez por verificar a natureza do condutor recém-chegado, dirigindo-se ao
Audi. O fumador acompanhou-o. Antes que se aproximassem, a porta do automóvel abriu-se e uma morena de feições duras e uma beleza fora do comum ficou frente a eles. O depósito já estava aberto.
- Cheio, por favor.
O gasolineiro foi cumprir a sua obrigação e o fumador acercou-se da jovem exótica.
- Winona, por acaso não me trocas quinhentos paus?...
Ela mostrou o cartãozinho verde que tinha na mão, sorrindo friamente.
- Só o
Amex. Lamento.
- Por acaso...
- Não fumo. - interrompeu ela, adivinhando o pedido.
- Não fuma... - murmurou, olhando a avenida.
Entretanto, o gasolineiro terminou de encher o depósito e chamou a mulher para ir ao terminal dos cartões. O fumador olhou para o interior do
A4. As chaves estavam na ignição. Uma voz dura arrancou-o dos seus pensamentos.
- Nem penses, menino.
Olhou na direcção dela. Winona apontava-lhe uma
ZW20 automática, uma arma pessoal de tiro rápido e munições perfurantes antiblindagem que é o armamento padrão dos andróides daquela série.
- OK, código, OK... - disse o gasolineiro, como que anestesiado, os olhos colados na arma e a consola
ATM esticada; e acrescentou: - Menina?
Ela continuava com os olhos postos no fumador, alinhado com a mira da
ZW20. Ele teve um movimento descontraído, voltando a olhar para as chaves e levando as mãos à cintura. Quando baixou os braços, a
45 automática apareceu-lhe na mão direita, e apontou-a na direcção da andróide.
Era bom. Foi muito rápido.
- Oh, estou a pensar nisso, sim. - retorquiu então.
Era um impasse. Ficaram assim uns segundos. Ele sorriu.
- A próxima bomba fica a cinco quilómetros. Não me estou a ver a fazer dez
klicks a pé com este grizo, metade dos quais sem tabaco... Agora, nesta beleza, podia ir e vir em cinco minutos.
- Já te disse. - repetiu ela, impassível - Nem penses.
- Suponho que uma boleia está fora de questão.
- Absolutamente fora de questão.
Ele levantou a
Smith & Wesson, abrindo a mão, e continuou:
- E este calibre não te fará mais que um buraquinho...
- Estou a ver que tens ido ao cinema. - finalmente, um sorriso.
O fumador, aparentemente resignado, baixou o braço. Ela fez o mesmo, baixando também a sua arma. O gasolineiro suspirou de alívio, e repetiu:
- Menina? OK, código, OK.
Ela olhou-o e, nesse instante, o fumador apontou e disparou um só tiro.
Na mesma fracção de segundo, a andróide elevou a
ZW20 na direcção do atirador, mas era demasiado tarde. O seu vestido ficara cheio de sangue. Vermelho sobre negro.
-
Fuck me! - exclamou ela.
O fumador levantou os braços, sorridente.
- Noutra altura. - e colocou a
45 atrás das costas, enfiada nas
Levi's.
Aproximando-se, ajoelhou junto ao gasolineiro que tremia de uma das pernas, estatelado no chão. Abriu a bolsa de dinheiro que ele trazia à cinta. Estava cheia de moedas.
- Eu sabia. Cabrão de merda.
Tirou a quantia exacta para o
Lucky Strike, dirigiu-se à máquina de tabaco e comprou um maço, que abriu de imediato, colocando um cigarro na boca. Ao fazer estalar o
Zippo, olhou Winona, a chama nos olhos. Continuava na mira dela.
- OK, duas vezes. Suponho que é a crédito, não? - disse, acendendo o cigarro.
Ela escondeu a arma na sua bolsa e apanhou a consola, meio pegajosa do sangue do infeliz gasolineiro. Fez o pagamento e deixou cair o aparelho sobre o cadáver. Depois olhou o fumador. A chama desaparecera.
- Essas coisas vão matar-te, um dia. - disse ela.
Ele teve um esgar de complacência.
- Possivelmente. - e acrescentou -
Sorry about the dress.Voltou-lhe as costas e regressou a casa, saboreando o cigarro, sem pressas.
Ao chegar à porta do prédio, atirou a beata para o chão; entrou e subiu até ao seu andar. Em casa, dirigiu-se ao seu quarto, colocou o maço de tabaco na mesa de cabeceira com o
Zippo em cima, despiu-se e deixou-se cair na cama. Adormeceu de imediato, mas não por muito tempo.
Acordou. Acendeu a luz. Os restos dos sonhos ganham uma dimensão estranha quando se acende a luz, a meio da noite. Suava. Maquinalmente, estendeu a mão na direcção do maço de
Luckies sobre a mesa de cabeceira. Agarrou-o. Nem um cigarro.
-
Fuck...
Rui SemblanoThe Smoker - Fantas 1998Este é dedicado à
Cat, no seguimento
deste outro. Estava prometido. ;)
Nota post(erior):O Picasa tem destas coisas. A imagem foi carregada às 20h de dia 25, mas a entrada completa só foi editada por volta da uma e meia de 26. Raramente altero uma data, mas esta tem de ser. ;)Além disso, fiz umas alterações ligeiras no texto. Já não o lia desde 98 e parece-me melhor assim.