O financiamento do Ensino Superior público tem sido um verdadeiro quebra-cabeças. Se é certo que a Universidade, naturalmente, não sendo parte da escolaridade obrigatória nem básica, não deve ser isenta de propinas, também é certo que estamos longe de poder considerar as mesmas como justificadas. Bem longe.
É a
história do "croquete" e do "bife", sempre pertinente.
Como será de esperar que o Estado legisle globalmente para o Ensino, não é por se terem tornado menos graves alguns casos (algumas Universidades podem ter melhorado a sua qualidade, mas tê-lo-ão conseguido para todas as suas licenciaturas?) que se justifica a aplicação da propina.
A aplicação de tal princípio deve ser universal e não caso a caso, de onde, dado o estado do Ensino Superior público, não se justifica a existência de propinas; muito menos as que agora são implementadas.
As propinas não servem para garantir a qualidade de ensino de forma directa, isto é, o financiamento da Universidade pública não pode ser construído a partir da propina. Podem e devem servir as propinas para complementar tal financiamento, libertando verbas do OGE para aplicação em sectores básicos que, esses sim, devem ser gratuitos na totalidade.
E aqui começam os equívocos: as propinas não podem entrar nos planos orçamentais do Estado a não ser
a posteriori, ou seja, como suplementos.
Se o orçamento para o Ensino Superior é de "mil" e as propinas são "cem", isso significa que podem ser aplicados "cem" do orçamento projectado em outras áreas.
Não é um desvio de verbas - a verba consagrada ao financiamento da Universidade, definida sem considerar o encaixe das propinas, tem que ser mais do que suficiente para garantir o ensino de qualidade.
Se o factor propina for considerado como integrante do financiamento desde a projecção do orçamento, isso significa a introdução de uma variável perversa na operação. Imaginemos um ano em que o número esperado de matriculas no Superior fica muito abaixo da expectativa e teremos um orçamento reduzido drasticamente.
Outro equívoco: fala-se em "aumento" das bolsas de estudo para o valor mínimo da nova propina. mas mesmo que esse "aumento" fosse pontualmente aplicado, bolseiro por bolseiro, de acordo com a propina em vigor nas suas Faculdades, não se trata de aumento nenhum.
As bolsas são, por definição, ajudas de custo, que permitem aos estudantes carenciados suportar despesas relativas ao seu estudo - como material didáctico, alimentação e estadia (estas últimas, principalmente, ao nível dos deslocados, fatia maior dos bolseiros). Desde que a propina foi instituída como a conhecemos hoje que isto é uma grande treta.
As bolsas existem apenas para que o estudante carenciado pague as propinas (na maior parte dos casos nem isso...). Ou seja, não recebe um cêntimo que o ajude a comprar um livro, a pagar uma refeição ou a completar o aluguer do seu quarto.
Para cúmulo, a "bolsa" que, supostamente, paga a propina é entregue pelo Estado ao estudante carenciado e não ao seu estabelecimento de ensino - apenas e só para que não se diga que os bolseiros não recebem um chavo. Isto é obsceno.
Qualquer bolseiro teria direito ao pagamento integral das suas propinas - mas pago pelo Estado directamente ao estabelecimento de ensino que frequenta. Esse dinheiro nunca deveria entrar na conta pessoal de um bolseiro e nem sequer devia fazer parte da bolsa de estudo. Deveria ser chamado pelo que é: um subsídio para o pagamento de propina - nada mais.
A bolsa, essa sim, deveria ser entregue ao estudante carenciado, para as despesas que este tem de enfrentar, que descrevi acima.
O financiamento da Universidade pública pelo Estado pode ser complementado por programas de investimento privado específicos (muito precisos e regulamentados) ou por uma política consistente e atractiva de mecenato, em que as empresas que doassem grandes somas à Universidade seriam beneficiadas por consideráveis abatimentos aos seus impostos. Tais doações seriam feitas ao Estado e não à Faculdade A, B ou C, e este as trataria como as propinas.
Supondo o mesmo orçamento de "mil" e os tais "cem" de propinas, acresceriam, por exemplo, "quinhentos" de doações pelo mecenato, pelo que o projecto de orçamento ficaria reduzido a "quatrocentos" reais, libertando "seiscentos" para outras áreas.
Poder-se-á argumentar que, assim, não existe verdadeiro investimento nem real melhoria, mas apenas a manutenção de um orçamento já estabelecido.
Terei de concordar, caso os orçamentos continuem a ser projectados como até aqui, isto é, com valores de miséria, destinados a manter (e mal!) o que já existe. Mas um orçamento de verdade deve contemplar desde logo valores que permitam a melhoria constante e sustentada do seu objecto.
O erro tem sido esse. Faz-se um orçamento de "cem" e espera-se que os restantes "novecentos" necessários caiam do céu. Como normalmente não caem, não há dinheiro para a "educação"...
Está mal.
O pagamento da propina, nos moldes que descrevi, serve para mais que isto.
Serve, sobretudo, para responsabilizar os estudantes universitários; para os preparar desde cedo para uma sociedade em que devemos pagar os serviços extraordinários que o Estado nos presta, para que todos possamos usufruir gratuitamente dos que nos são por ele prestados ordinariamente.
Porque não temos um país de excelência - e nem teremos, a continuar assim.
Universidade pública gratuita? Talvez.
Mas antes, uma Saúde verdadeiramente universal e gratuita; uma Segurança Social universalmente justa e digna; serviços públicos (como o Ensino Básico, a Protecção Civil, a Segurança Pública, etc.) de universal excelência.
Depois, talvez, um financiamento integral do Ensino Superior público - e, ainda assim, com a obrigatoriedade de cada licenciado pagar de volta ao Estado o investimento que este nele realizou.
Em alternativa, mas só para os "idealistas", poderiam os licenciados assinar um compromisso de honra em como, a troco do Rendimento Mínimo Garantido, trabalhariam
pro bono publico na área do seu curso, sendo assim concretizado, de facto, o investimento de todos nós na sua formação.
Como é?
Ou são idealistas ou são oportunistas.
Decidam-se!
Rui Semblano
Porto, 5 de Outubro de 2003
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