Dia oitoAlvos civis.
Em pleno dia, foi atingido um mercado cheio de gente em Baghdad.Relatos iniciais dão conta de 17 mortos e inúmeros feridos.Reacções:No dia da cimeira de Camp David entre G. W. Bush e Tony Blair, que os Media chamam de "primeira cimeira de guerra" mas que, para mim, é a segunda (a primeira foi a dos Açores, desgraçadamente), Washington e Londres têm reacções diferentes ao bombardeamento do mercado de Baghdad (ocorrido hoje). O Pentágono diz que foi um erro, enquanto os britânicos avisam que o número de vítimas civis vai aumentar. (Os erros não se deviam repetir, mas é o que mais acontece na guerra; ao menos os britânicos são realistas: é inevitável.)O dia que desapareceu da guerra:Dou-me conta que o meu diário tem um dia a mais em relação aos seus congéneres dos Media: o primeiro. Ou seja, para eles, o dia da "Operação Decapitação" não foi um dia de guerra. Deve ter sido o "warm-up".Hoje foi publicada a minha carta "Forma de Vida", no Público (
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. É a terceira, desde o início da crise iraquiana (a primeira foi "Valha-nos a Velha Europa", antes da guerra, e a segunda "A América está a mudar"). E que dia mais a propósito para a terem publicado!A carta é a resposta ao editorial de José Manuel Fernandes (JMF) de dia 24, onde afirmava que os soldados da coligação estavam no Iraque a defender a "nossa forma de vida". Hoje, como era a vez de Manuel Carvalho escrever o editorial, aliás intitulado "Democracia à força" (elucidativo!), JMF reservou para si uma página inteira (fantástico!) e começa a raiar o patético; é uma justificação pública. Chamou-lhe ele "Convicções e dilemas, ou porque apoio esta guerra!" Muita tinta vai correr sobre isto. Parece que estou a ver o Vicente Jorge Silva a pegar na caneta, pela segunda vez.Diz, a certo ponto, JMF: " Gosto de ler a neoconservadora 'Weekly Standard' mas também compro a bíblia dos esquerdistas, o 'Le Monde Diplomatique'. E em casa tenho os livros de Noam Chomsky, apesar de discordar deles quase da primeira à última linha."Aprecio o uso dos verbos "Ler", "Comprar" e "Ter", bem como o tom apologético de todo o artigo. Chegou a hora de o Público ter um novo director. (Mas não me parece...)(...) Nas televisões, o destaque vai para os navios-hospital dos EUA.RS, An Illegal War Journal, 26/03/2003Nos EUA, perante 2.000 soldados e familiares de soldados, G. W. Bush já não fala de dias, semanas ou meses... Apenas de vitória, vitória, vitória. Quando? Um dia, em breve...
E avisa que a guerra será mais longa que o previsto, mas que o resultado "está assegurado". Pois está.
O actor Martin Sheen durante uma vigília pela paz e pelo regresso em segurança dos soldados norte-americanos, junto ao Edifício Federal, em Los Angeles, Quarta-feira, 26 de Março de 2003.imagem: www.angelfire.com War in Iraq
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Forma de VidaQuarta-feira, 26 de Março de 2003É inacreditável que ainda se escreva em suportes incontornáveis que esta guerra se destina a preservar a nossa "forma de vida". A expressão é, em si mesma, pouco clara. Que forma de vida será essa? A da liberdade e democracia? A do respeito pelos Direitos Humanos e pelo Direito Internacional? A da liberdade de expressão e da protecção dos direitos individuais? Todos estes valores poderão caracterizar a nossa "forma de vida", mas todos eles contrariam a natureza de uma guerra ofensiva e contrária à Carta das Nações Unidas.Não passará, então, esta "forma de vida" de uma pobre tradução de uma expressão em língua inglesa que só tem sentido pela adição de uma quarta palavra, "forma de vida americana" (American Way of Life). Mas qual delas? A que pretende, com base na Carta dos Direitos dos EUA, atingir objectivos semelhantes aos enumerados acima? Ou a "forma de vida americana" que tem, sistematicamente, vetado inúmeras resoluções da ONU apelando ao respeito dos Direitos Humanos por parte de membros da organização ou pedindo o fim das armas de destruição em massa ou instando ao cumprimento do Direito Internacional?
Seja como for, que "forma de vida" é esta, que defende a destruição de um país para libertar um povo? Nos locais cercados pelas forças da coligação, isolados de Baghdad, não se assiste a revoltas populares contra o ditador, nem a crianças recebendo os ditos libertadores com bandeirinhas americanas nas mãos, e os campos de refugiados fora do Iraque permanecem desertos. Em lugar destes sinais, tão apregoados como certos, a população pega nas armas que o exército iraquiano vai abandonando, barricando-se nas suas cidades sem água nem luz, dadas hoje como conquistadas pelo Pentágono para serem, amanhã, filmadas pela Aljazeera, resistindo ainda. E são muitos os que entram no país em lugar de fugir, decididos a lutar e morrer, não por Saddam Hussein, mas pela sua terra dilacerada.Não tardará muito, em face desta resistência inesperada, que os bombardeamentos passem de "inteligentes" a "estúpidos", o convencional substituindo a precisão, e será nesse ponto que se tornará claro que Washington e Londres estão decididos a libertar os iraquianos, nem que para isso os tenham de matar indiscriminadamente.Que triste e estranha forma de vida.Rui SemblanoVila Nova de Gaiain Público, Cartas ao Director, 26 de Março de 2003.
Não tenho palavras para exprimir, todos os dias, o apreço por este teu diário de guerra e pelo serviço que prestas à reabilitação destas memórias.
ResponderEliminarVolto a fazê-lo hoje.
Um abraço.
António:
ResponderEliminarMuito do que vou escrevendo (sempre escrevo) vai ficando nas folhas, em pastas e gavetas... Sempre penso que "um dia servirão para alguma coisa". Estas folhas, agora recordadas, servirão para alguma coisa? Creio que sim. E as tuas palavras confirmam essa sensação.
Obrigado, António.
RS