domingo, março 19, 2006

An Illegal War Journal . Day 1 . 2003/03/19







Dia um
A hora zero.


Possivelmente, a entrada mais longa do diário, sendo o início da guerra... (n.a.)

Estou em casa, frente ao televisor.
Em todos os canais se acompanha a contagem decrescente.
O relógio, a um dos cantos do écran, aproxima-se do zero.

Zero.

Começará de imediato? Com que intensidade? No Reino Unido, os B-52 estão de prontidão, mas não parecem ir sair tão cedo. Em Baghdad, a surpresa: Todas as luzes da Cidade Magnífica estão acesas.
Não há black-out.
Os iraquianos têm razão. Para quê? Com os modernos aparelhos de localização, qualquer piloto norte-americano encontraria qualquer um dos prédios da cidade no mais denso breu. Ao menos assim as operações dos paramédicos, dos bombeiros e da polícia serão mais fáceis... É a derradeira ironia.
A noiva do Médio Oriente não se apaga. Espera, apenas, o inevitável.

Escolho o canal 1 da RTP, mesmo sobre a CNN. Carlos Fino e o operador de imagem Paulo Camacho, através de um vídeo-telefone, estão em ligação contínua. Os comentadores convidados são, também, os mais equilibrados. Na SIC, já não há pachorra para Nuno Rogeiro e os seus imperfeitos - e até ridículos, dada a situação - modelos baratos de aviões e helicópteros norte-americanos, estupidamente colocados sobre a ponte de um grosseiro modelo de um porta-aviões (incluindo o bombardeiro B1 e o helicóptero Apache!).
Apesar de acertar uma de vez em quando, ao mexer nos modelos parece um rapazola a brincar às guerras com uma guerra real em fundo... Chega mesmo a invocar Edgar P. Jacobs para descrever o bombardeiro stealth B2, cujo modelo não conseguiu arranjar.
"Parece o Asa Vermelha!" - exclama ele - "O avião do Olrik!" Deus meu...
Mas isso seria mais adiante, já Fernando Rosas, outro convidado da SIC, que havia sido enxovalhado toda a noite por Rogeiro, decidira ir para casa. Foi o que fez melhor.

Quanto à TVI, a situação não era diferente.
O sr. Rato (o Vasco) era o "Bushman" de serviço, além de um rapazola do qual não sei o nome (que confunde "prevenção" com o código da estrada e acha que a ONU sanciona na sua Carta os ataques "preemptivos" - seja lá o que isso for em português!). Quanto ao Bloco de Esquerda, a pandeireta de festa era Joana Amaral Dias, uma jovem bem intencionada, mas muito verde... A certa altura, afirma que a cimeira dos Açores deu a Portugal uma visibilidade que não passaria despercebida aos terroristas. Todos a percebemos, "menos" o rapazola e o Rato. O rapazola tenta confundi-la, o que consegue, enervando-a, e a juventude dela vem à tona... Para ilustrar a sua "tese", recorre a um exemplo difícil e complexo, demasiado para s sua idade, talvez: a parábola do Pirata e do Imperador, da autoria de S. Agostinho.
Utilizada por Noam Chomsky para estabelecer um paralelo entre o terrorismo de indivíduos na clandestinidade e o aberto terrorismo de Estado, é uma imagem forte, complicada e com implicações tão sérias que, a menos que se esteja bem preparado para a defender, nunca deve ser invocada. Joana fê-lo e, dada a inocência com que o fez, o sr. rato veio em socorro do rapazola: "Não quer dizer com isso que os EUA são terroristas, pois não?" - pergunta. E diz, de imediato, a rapariga: "Não!" - só lhe faltando acrescentar um "credo!".
Um sorriso irónico passa pelo rosto do sr. Rato, que conclui, logo a seguir: "Ainda bem! É que Noam Chomsky queria mesmo dizer isso!" Pobre Joana. Foi um momento triste; até porque o sr. Rato, para tirar dúvidas, logo explicou à Joaninha "o que é o terrorismo", afirmando ser o uso da morte de inocentes para atingir fins políticos... Ainda que, então, Joana Amaral Dias tivesse visto a oportunidade de destruir o rato (o que duvido), já nada podia fazer. O seu "Não!" anterior condenou-a ao silêncio. Ficou assim por dizer, ao sr. Rato e aos telespectadores, que foi exactamente isso o que os EUA e outros andaram a fazer no Iraque durante os últimos doze anos. Mas isto também seria mais tarde.
Regressemos à hora zero.

Como o Nuno Rogeiro e o seu porta-aviões de brinquedo e o sr. Rato e o rapazola não me diziam nada de novo, decidi-me pela RTP 1. José Rodrigues dos Santos, que conduzia a emissão como "âncora", também me aborrece um pouco, mas não tanto, e teria um reflexo fabuloso, mais adiante.

Carlos Fino está na janela do seu quarto de hotel, com vista para a cidade. As sirenes tocam. Momentos depois, as antiaéreas disparam. Começou. Em 1991, os céus de Baghdad iluminaram-se com o fogo da artilharia AA e as suas tracejantes. Que diferença! Uns segundos de tiro e, de novo, o silêncio.
Instantes depois, era anunciado que o ataque não correspondia ao início dos bombardeamentos. Tratou-se de aproveitar um "alvo de oportunidade". (*) O alvo era a cadeia de comando iraquiana, possivelmente o próprio Saddam Hussein. Não se conhecem os resultados. Seriam 2:35 da manhã, em Portugal. Hora e meia depois da hora zero. O conhecimento prévio do local a atingir neste ataque implica, ou pelo menos sugere, informações a partir de Baghdad.
A presença de tropas especiais na capital iraquiana é avançada como hipótese, pouco provável. Também se diz que a informação teria sido dada por "dissidentes". A História o dirá. Certo é que começou. A confirmá-lo, é anunciada uma comunicação em directo de G. W. Bush. Aguardemos.

E então acontece!

O sinal vídeo, desde a Casa Branca, é colocado no ar pela RTP. G. W. Bush senta-se à secretária. Parece que vai começar, mas não. Desde técnicos de TV a maquilhadoras e cabeleireiras, todos andam em redor de W. Bush, medindo a luz, penteando-o ou sacudindo a caspa dos seus ombros! Inacreditável! E J. R. dos Santos exclama, expontâneo:
"Não dá para acreditar!"
E não dá mesmo. George Walker Bush, o olhar vazio de sempre, olha a câmara e os seus lábios vão formando as palavras "my fellow americans" enquanto o penteiam. Depois ri-se para alguém atrás da câmara e faz um gesto descontraído, tipo "let's rock!"... Nos momentos que antecedem a comunicação do início de uma guerra, G. W. Bush comporta-se como se estivesse a preparar-se para um discurso de campanha eleitoral. É deprimente. (**)

Lembro-me da imagem de JFK, tristemente só à janela da Sala Oval, antes do ultimato à URSS. Que diferença. Mas, como diria mais tarde um amigo meu, não é possível comparar um rato a um homem.
A declaração começa, depois de cinco minutos de "nonsense". (...) os dados estão lançados.
Que seja rápido.

RS, An Illegal War Journal, 19/03/2003










O pequeno W&N...
Imagem: Rui semblano



(*)
A propósito das expressões "target of opportunity" e "window of opportunity", aplicadas ao ataque de 19 de Março de 2003 que iniciou a guerra, os comentadores e jornalistas de todos os Media portugueses (em especial nas televisões) fizeram um verdadeiro filme, traduzindo-as das formas mais aberrantes e explicando-as com as imagens mais absurdas... O triste circo do protagonismo bacoco das "estrelas do telejornal" começa.

(**)
Chamada de atenção no topo da página dedicada a G. W. Bush na Wikipedia (hoje):
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8 comentários:

  1. Crítica contundente à mediocridade do jornalismo nacional.

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  2. Antonio:
    Foi triste, não foi?
    E o pior é que continua, rumo ao abismo.
    A sede de sangue e a avidez com que os pivots se lançam sobre tudo o que é desgraça e dor é arrepiante. Tão arrepiante como a piscadela de olho do J. Rodrigues dos Santos no fim do telejornal, ou o antigo esgar de M. Moura Guedes, quando dizia "Pois é...".
    Benditas Sky, BBC World e TF1...
    Até a CNN parece um paradigma de jornalismo depois de um quarto de hora de zapping nacional...

    O "diário" conta contigo e com as tuas memórias destes dias, se te apetecer partilhá-las.
    Abraço,
    RS

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  3. Como dizia o nosso grande amigo Américo Thomaz, só tenho um adjectivo para qualificar esta posta.
    GOSTEI

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  4. J. M. Ferreira:
    A "posta" ainda vá lá (sorriso), agora "grande amigo"? Explique lá essa, caro J. M. Ferreira.

    Até breve,
    RS

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  5. Caro Rui,

    Volto a bater nesta tecla: Mas o iraque não era uma ditadura sanguinária?? Eu concordo com o mau timing, as razões falsas, os interesses do petróleo, etc, etc... Mas não havia ali uma ditadura que tinha de ter um fim?? Se calhar, se os americanos não tivessem intervido, hoje estavam a criticá-los por não fazerem nada... è uma faca de dois gumes! O que faz com que umas ditaduras mereçam um fim e outras não?...

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  6. Sá Morais:
    Um país soberano, ditadura ou democracia ou o que seja, não pode ser invadido e ocupado com base em questões internas. Claro que não me agrada a quantidade de pessoas que vivem sob ditaduras por esse mundo fora, do Irão a Cuba, da Bielorússia à Arábia Saudita, da Coreia do Norte à Líbia. Nunca disse tal coisa. O que me agrada ainda menos é que se tenha aberto o precedente de intervir militarmente contra um país que nada tinha feito para merecer a agressão, excepto ser uma ditadura, naturalmente. Por esse motivo se fabricaram as provas falsas de ADM's e se dizia nas televisões que o Iraque estaria em condições de lançar um ataque devastador (contra quem?) em "15 minutos". Depois, passou a dizer-se que, afinal, foi um dos países envolvidos no 11 de Setembro de 2001 (quando Baghdad era o único regime laico do Médio Oriente, odiado por Bin Laden!) e, finalmente, em desespero de causa, afirma-se agora que foram invadidos para serem libertados da ditadura de Saddam!

    Não acredito que o Sá Morais preferisse que fossem militares norte-americanos, depois de reduzir a escombros o país, a "libertar" Portugal da ditadura de Caetano. Esse papel coube aos militares portugueses, na impossibilidade de o fazerem os civis, mas portugueses.

    As questões internas de cada país devem ser resolvidas pelos cidadãos desse país, quando muito com a ajuda indirecta do exterior (como aconteceu na África do Sul, por exemplo). A alternativa dá no que acontece hoje no Iraque.

    Espero que continue a acompanhar o "diário". Um abraço,
    RS

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  7. Rui, eu percebo o seu ponto de vista. Existe todo um rol de enganos em relação à invasão do Iraque. Em minha opinião, Saddam devia ter sido retirado do poder aquando da 1ª Guerra do Golfo, aí havia a agressão do Iraque a um país soberano e julgo que esse argumento bastaria. Era entrar remover o Saddam e sair...
    No entanto, a questão de deixarmos um país tratar das suas questões internas é um assunto delicado. Em certas conjunturas, isso até pode funcionar, porém existem outras situações em que o preço a pagar é muito elevado. Muitas vezes, enquanto a comunidade internacional espera por essa resolução interna, acontecem genocídios, limpezas étnicas, etc, etc... Era bom que houvesse uma força da ONU credível para actuar nestas situações, mas a verdade é que os capacetes azuis são uma força militar incapaz, mal armada e sempre a servir de joguete de interesses politicos. O que resta?! Os USA... E estes também protegem os seus interesses especificos, como bom "império" que são... É este o problema...
    No caso de Portugal assistimos a um transição praticamente sem sangue ( não temos uma cultura de violência ou questões religiosas ou étnicas a dividir-nos... ), mas não teria sido humano ( vamos usar este termo ) se tiveese havido uma intervenção atempada na Jugoslávia que tivesse precavido aquele imenso banho de sangue? Caro Rui, a conjuntura de certos países não é propicía a resoluções internas... O resultado é sangue e mais sangue...
    Abraço.
    Sá Morais

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  8. Sá Morais:
    É exactamente como diz:
    Saddam Hussein devia ter sido derrubado em 1991, mas não foi e os xiitas que na altura se sublevaram foram abandonados à sua sorte pelos mesmos que agora os querem libertar à baioneta.
    O preço de só intervir em legítima defesa (incluindo ameaças reais e comprovadas e não só agressões efectivas) é sempre alto, mas o custo de sacrificar esse princípio no altar das "prevenções à medida" é muitíssimo mais elevado.
    Como estamos a ver hoje e como vimos ontem, com as estúpidas sansões ao mesmo Iraque, que mataram meio milhão de crianças.
    Haverá pior que isto? Há. O Holocausto, por exemplo. Portanto, até que morram seis milhões de iraquianos, está tudo em ordem. Mas não está. Pois não?

    Um abraço,
    RS

    nota:
    Não estou a rebater a sua ideia pela negativa; ela é mesmo sensata num mundo ideal. Mas no mundo real, ou se joga pelas regras ou se quebram as regras. Não há romantismos, utopias ou meios termos. Num mundo onde os que têm o poder real só vêem a preto e branco, a lei internacional, e só ela, pode proteger os que o vêem como ele é: cinzento.

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